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Existe violência no parto?

Ministério da Saúde deixa de usar a expressão 'violência obstétrica'. Pesquisadoras que coordenam o curso de doulas da EPSJV/Fiocruz defendem que o centro da questão é reconhecer que o parto não é um ato apenas médico
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 10/05/2019 10h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Dificultar o acesso ao pré-natal, não permitir a presença de um acompanhante no momento do parto, ser insultada verbalmente ou ainda ser submetida a procedimentos desnecessários ou más indicações de cesariana. Situações como essas pelas quais muitas gestantes no país passam são consideradas formas de “violência obstétrica” – termo que o Ministério da Saúde acabou de extinguir das políticas públicas e normas. Segundo despacho assinado pelo Departamento de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Atenção à Saúde, no dia 3 de maio, a expressão “tem conotação inadequada” e “prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”, ou seja, durante e após a gestação e no parto. Além disso, a área técnica aponta que “tanto o profissional de saúde quanto o de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” e por isso "estratégias têm sido fortalecidas" para que a expressão pare de ser usada pelo órgão. Essa percepção, no entanto, não é consenso. E, no centro do debate, está a discussão sobre o quanto o parto é um procedimento médico.

Ato médico?

“Essa tensão sob a expressão ‘violência obstétrica’ está relacionada a uma visão de que o ato do parto é exclusivamente um ato médico. Isso vai contra uma visão humanista que entende que o parto é um ato fisiológico sexual da própria mulher e seu protagonismo é imprescindível”, ressalta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Ialê Falleiros, que divide a coordenação do Curso de Qualificação Profissional de Doula, promovido pela Escola Politécnica, com Morgana Eneile, presidente da Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro (Adoulas-RJ).

De fato, procurada pelo Portal EPSJV/Fiocruz, o Ministério da Saúde afirmou, em nota, que atendeu ao “apelo de entidades médicas”. Explicou ainda que o termo “não deve ser usado de maneira indiscriminada, principalmente se associado a procedimentos técnicos indispensáveis para resolução urgente de situações críticas à vida do binômio mãe-bebê relacionados ao momento do parto”. O Ministério cita também que as recomendações para o uso do termo foram publicadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em outubro de 2018, pelo parecer CFM 32/2018, e que a entidade é responsável pela regulamentação da atividade médica no país. Outro exemplo dessa ‘queda de braços’ é que, em fevereiro deste ano, o CFM-RJ proibiu os profissionais do estado de aderirem ao plano de parto das gestantes – um documento que a gestante faz descrevendo suas vontades para a hora do parto e pós-parto ao obstetra, e que pode conter orientações como a presença de acompanhante e doula, a utilização de métodos não-farmacológicos para alívio da dor durante o trabalho de parto e o desejo de que o parto tenha o menor número de intervenções possível. O Conselho justificou que há planos de parto que seriam contraditórios com a ação do médico. “Muitas vezes o plano não corresponderá às circunstâncias no momento do parto, mas é importante que a equipe que a acompanha tenha conhecimento dessas expectativas e possa ajudar essa gestante até mesmo com informações no caso de não poder atendê-la”, avalia Ialê. 

A presidente da Adoulas-RJ  explica que um dos avanços em relação ao uso dessa terminologia foi considerar a ‘violência obstétrica’ como ‘violência de gênero’, que foi um apontamento feito pela ‘Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra mulher’, mais conhecida como ‘Convenção de Belém do Pará’, que se deu no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foi adotada em 1994. “É uma disputa simbólica entre aqueles que conseguiram configurar o termo ‘violência obstétrica’ dentro do movimento pela humanização do parto e pelo movimento de mulheres que passam a assinar como ‘violência de gênero’ mais recentemente”, aponta Morgana, acrescentando que, ao mesmo tempo, essa proibição significa uma “vestida de carapuça” dos profissionais médicos. “O que costumo dizer a eles é que qualquer profissional que esteja no cenário de atenção pode ter uma atitude que seja considerada ‘violência obstétrica’. Em algum momento se tomou essa expressão como expressão médica, quando na verdade não é uma exclusividade do médico. Uma enfermeira ou uma doula pode promover ‘violência obstétrica’. O que é ruim é que eles considerem que isso é uma exclusividade do obstetra e tomem para si como se isso fosse uma provocação”.
Embora considere a recente medida como um “retrocesso em relação aos direitos das mulheres”, Morgana acredita que é mais importante pensar no tipo de dano que acontece com a mulher ou em estratégias para evitar essa violência do que provocar o Ministério da Saúde a discutir a terminologia. “O fato de o Ministério não utilizar não fará com que academicamente ou as legislações não a utilizem”, atenta Morgana.

Reconhecimento internacional

O despacho vai na contramão do que orienta a Organização Mundial da Saúde (OMS), que em 2014 publicou um documento condenando a violência obstétrica. A OMS conceitua o termo enquanto “uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”. Alguns países já possuem uma legislação específica sobre o termo. É o caso da Venezuela, que em 2007 foi o primeiro país a promulgar uma lei específica, intitulada “Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia”, que defende os direitos das mulheres e estabelece 19 formas de violência dentro das quais se encontra a violência obstétrica. Em 2009, foi a vez da Argentina, que promulgou a ‘Ley de Protección Integral a las Mujeres’, que define ‘violência obstétrica’ como “aquela exercida pelos profissionais da saúde, caracterizando-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais”.  “No Brasil, a jurisprudência ainda é muito frágil. As políticas públicas, em geral, pensam muito mais estratégias positivas como ‘políticas de boas práticas no parto’, ‘políticas de humanização’. Não há uma política específica sobre ‘violência obstétrica”, esclarece Morgana.

Em um parecer emitido no dia 7 de maio, o Ministério Público Federal (MPF) recomenda que o Ministério da Saúde se abstenha de realizar ações voltadas a abolir o uso da expressão violência obstétrica e que firme um compromisso para evitar toda e qualquer prática agressiva contra a mulher durante o parto. Além disto, o parecer quer que a Pasta esclareça, por meio de nota, que o “termo ‘violência obstétrica’ é uma expressão já consagrada em documentos científicos, legais e empregada comumente pela sociedade civil e que a expressão pode ser usada por profissionais de saúde, independentemente de outros termos de preferência do Governo Federal”.

Nossa sugestão é que o Ministério invista em políticas que reduzam a violência obstétrica para que, de fato, ela deixe de existir na prática e aí sim possa ser esquecida enquanto terminologia.

Dados alarmantes

Segundo dados da pesquisa ‘Nascer no Brasil - Inquérito nacional sobre parto e nascimento’, realizada pela Fiocruz em 2012, com quase 24 mil puérperas em 266 hospitais de 191 municípios do país, uma em cada quatro mulheres que deram à luz acredita ter sido vítima de violência obstétrica. A pesquisa mostra que 56,8% foram consideradas como casos de risco obstétrico habitual, ou seja, sem condições de saúde que indicassem o uso de procedimentos e intervenção cirúrgica. O estudo mostra ainda que dentre essas mulheres 45,5% realizaram cesárea e 54,5% tiveram parto vaginal, porém apenas 5,6% tiveram parto normal sem nenhuma intervenção. Quando consideradas as intervenções realizadas durante o trabalho de parto, em mais de 70% das mulheres foi realizada punção venosa, cerca de 40% receberam ocitocina e realizaram aminiotomia, que é uma ruptura da membrana que envolve o feto, para aceleração do parto e 30% receberam analgesia. Outros números de intervenções realizadas durante o parto surpreendem: em 37% a manobra de Kristeller (aplicação de pressão na parte superior do útero) e 56% dos casos tiveram a ocorrência da episiotomia (corte na região do períneo).

“A maior parte dessas mulheres teria plena condição de ter parto normal, porque, segundo a OMS, 85% das mulheres que estão no risco habitual teriam condições de ter um parto biológico sem intervenções. O que acontece é que, muitas vezes, os protocolos viram padrão. Então, ‘dá ocitocina para todo mundo, corta todo mundo...’, e aí vira uma produção em cadeia de intervenções a partir de uma visão médico-centrada de que aquela gravidez é um problema, tem que ter hora para acabar”, aponta Morgana.

Promoção de um parto respeitoso

“Nossa sugestão é que o Ministério invista em políticas que reduzam a violência obstétrica para que, de fato, ela deixe de existir na prática e aí sim possa ser esquecida enquanto terminologia”, sugere Ialê. Mas como fazer isso?

Segundo Morgana, a promoção de um parto respeitoso com autonomia e protagonismo da mulher é uma das formas de prevenir a violência obstétrica. “Quando você faz promoção à saúde, educação perinatal, você faz com que a tomada de consciência do que seja um parto violento seja por si só uma prevenção. A maior parte das mulheres hoje não tem consciência de que aquele tipo de atendimento não é adequado”, afirma, evidenciando o papel da doula nesse processo, que segundo ela, dá suporte físico e emocional para gestantes antes, durante e no pós-parto.

Morgana e Ialê fazem parte da coordenação do Curso de Qualificação Profissional de Doula, que a EPSJV/Fiocruz iniciou, em outubro de 2018, de forma inédita no Brasil pelo caráter público e com práticas supervisionadas. A formação da primeira turma, prevista para encerrar no fim deste mês, é resultado de uma parceria com a Adoulas-RJ e com outra unidade da Fiocruz, o Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), referência em saúde materno-infantil. Com carga horária de 240 horas, envolvendo aulas teóricas e práticas supervisionadas, o curso está destinado a mulheres com ensino médio completo que desejam atuar no desenvolvimento de atividades de auxílio físico, informacional e emocional junto a gestantes, parturientes e puérperas. “O que a gente aprende na formação de doula é compreender sobre a fisiologia do parto, como obter as melhores evidências científicas, de que forma se deve ser feito o plano de parto e quais os procedimentos e intervenções possíveis. É esse conjunto de conhecimentos que pode, no momento do trabalho da doula, auxiliar que a mulher tome essas decisões e possa reconhecer uma equipe ou um modelo de atenção que sejam adequados ao desejo dela”, esclarece Morgana. Ialê acrescenta: “As doulas organizam rodas de conversa com temas e se organizam na luta pelo parto digno e respeitoso e em defesa das boas práticas na atenção à saúde da pessoa gestante, parturiente e puérpera. Nosso curso trabalha com três pilares: a doula como profissional que informa; a doula como profissional que cuida; e a doula como profissional que luta pelo respeito e a dignidade na gestação, no parto e no puerpério”.