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Febre de quê?

Surto de febre amarela traz o debate sobre a relação entre a destruição dos ecossistemas e a (re) emergência de doenças. Pesquisadores ressaltam como os estudos epidemiológicos precisam cada vez mais se preocupar com um modelo de desenvolvimento que aposta, por exemplo, na expansão do agronegócio e no desmonte da legislação ambiental
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/03/2017 10h15 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Limite entre o rural e o urbano fica cada vez menos nítido e facilita a migração de doenças

Existem surpresas que a floresta pode reservar ao homem quando ele desmata. Por exemplo, doenças podem se urbanizar nesse processo. O homem pode se tornar o principal reservatório para aquela doença que antes tinha os animais silvestres como os principais reservatórios”. O alerta foi feito em 2011, pelo professor-pesquisador André Burigo, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Um leitor de hoje apostaria que ele está se referindo ao atual surto de febre amarela, que reavivou o debate sobre os impactos sanitários do desequilíbrio ambiental e reforçou pontos de interrogação sobre os limites entre o urbano e o silvestre. Acontece que seis anos atrás a febre amarela parecia uma doença controlada. Erradicada desde a década de 1940 nas cidades, ela estava restrita a um ciclo de contaminação entre macacos e mosquitos da floresta, manifestando-se apenas em casos isolados de pessoas que se aventuravam por alguma região de mata. Nem por isso a fala do pesquisador deve ser vista como profecia: publicada numa reportagem do Portal EPSJV, a análise era sobre as possíveis consequências das mudanças no Código Florestal brasileiro que estavam sendo aprovadas no Congresso e mostra a estreita relação entre a pauta ambiental e as ques-
tões sanitárias.

De lá para cá muita coisa aconteceu. Não só o novo código foi aprovado – com mudanças que contrariaram movimentos, instituições e entidades científicas ligadas à questão ambiental –, como outras legislações dessa área vêm sendo atacadas. Neste exato momento, inclusive, o governo federal tem apontado como prioridade a flexibilização do processo de licenciamento ambiental, considerada necessária para o sucesso do seu pacote de privatizações, o Programa de Parceria Institucional (PPI). Mas o cenário sanitário também mudou. Convivendo com sucessivas epidemias de dengue já há vários anos, desde 2014 o Brasil foi tomado pela emergência de casos de zika e chikungunya. E em 2017, veio a ressurreição do fantasma da febre amarela. Mas qual a relação entre todas essas coisas?

Urbano e silvestre

Se você foi um dos muitos que se alarmaram com o novo surto de febre amarela, provavelmente em algum momento foi tranquilizado com a informação de que o que acontece no Brasil hoje não é nada parecido com o que aconteceu no passado. A primeira razão é a existência de uma vacina, considerada segura e produzida pelo próprio Estado brasileiro – na Fundação Oswaldo Cruz. Mas no centro desse argumento está também a diferença entre a febre amarela urbana, que matou milhares de pessoas no início do século passado, e a febre amarela silvestre, que permaneceu endêmica em várias regiões, mas sem ameaçar grandes grupos populacionais – pelo menos até agora. De fato, o último surto de febre amarela em humanos no Brasil aconteceu entre 1928 e 1929, e o último caso registrado de transmissão nas cidades foi em 1942, cinco anos depois da criação da vacina.

Isso não quer dizer que dessa época até 2017 a doença tenha desaparecido do país. De acordo com informações da Agência Fiocruz de Notícias, entre 1989 e 2008, foram registradas 540 casos, com 236 mortes. A principal diferença entre esse cenário aparentemente controlado e o que se vive agora é a escala. “Seguramente, esse é o maior surto de febre amarela silvestre no Brasil desde 1980, que é quando começam as séries históricas”, afirma o médico Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de Vigilância e Laboratórios de Referência da Fundação Oswaldo Cruz. No momento em que esta edição da Poli estava sendo fechada (21/02), o boletim do Ministério da Saúde confirmava 292 casos e 97 óbitos – outras 112 mortes ainda estão sendo investigadas – em função da doença só nesses dois meses de 2017. Notificados, eram 1.337 registros, dos quais 126 já tinham sido descartados e 919 ainda estavam sob investigação. O aumento significativo do número de casos jogou foco também sobre outra característica importante do surto atual: o fato de a contaminação estar se dando em regiões de pequenas florestas, em muitos casos localizadas nas ‘franjas’ das cidades. Seria a volta da febre amarela urbana?

Pelo menos por enquanto, não. Mas é importante antes de tudo esclarecer que, na verdade, a doença é uma só: o vírus é o mesmo e os sintomas também. A diferença está nos agentes de transmissão. Na floresta, a doença é transmitida por várias espécies de mosquitos pertencentes a dois gêneros: o sabethes e o haemagogus. No chamado ciclo silvestre – que não é erradicável –, esses vetores transmitem o vírus aos macacos. Eventualmente, quando um humano entra na floresta, ele pode se contaminar. Como se trata de casos isolados, no entanto, o homem não é considerado um agente de transmissão. Olhando para a experiência passada, a principal diferença é que no ciclo urbano o vetor é um velho conhecido dos brasileiros, agente de várias outras doenças e emergências sanitárias: o Aedes aegypti. Quando se diz que a febre amarela urbana está erradicada desde a década de 1940 no Brasil, é porque desde aquela época ela deixou de ser transmitida por esse mosquito que, diferente do sabethes e haemagogus, vive perfeitamente ambientado nas cidades. Mas é exatamente aqui que se abre um campo de indeterminações que deixa mais dúvidas do que certezas sobre o que virá.

Por isso, é necessário situar a erradicação do ciclo urbano da febre amarela na história. Um primeiro elemento a se considerar é que, na década de 1940, ‘urbano’ era um ambiente onde vivia a apenas 31% da população brasileira, enquanto hoje essa proporção se inverteu: segundo o último censo do IBGE, de 2010, 84 % moram nas cidades e pouco mais de 15% em áreas consideradas rurais. Além disso, vale lembrar que poucos anos depois da erradicação da doença, em 1958 (oficialmente), o Brasil eliminou também o próprio Aedes aegypti, seu vetor nas cidades. Durou pouco – já no final da década de 1960, início dos anos 1970, o mosquito estava de volta – e o seu nível de infestação só fez aumentar, principalmente a partir dos anos 2000 (leia análises críticas sobre a estratégia de combate ao vetor na matéria ‘Lógica mosquitocêntrica’, publicada na Poli nº 44). A expansão das áreas urbanas, com concentração cada vez maior de gente, e o aumento descontrolado da população de Aedes são fatores nada desprezíveis para a mudança desse cenário de tranquilidade em relação à febre amarela. “Não é que o Aedes aegypti não tenha capacidade de transmitir o vírus [da febre amarela]. Ele tem sim. Basta um evento”, explica Constância Ayres, entomologista e pesquisadora da Fiocruz Pernambuco.
“Evento”, nesse caso, é uma situação aparentemente trivial: uma pessoa picada por mosquitos silvestres na floresta é contaminada, chega à cidade e é novamente picada, agora pelo Aedes. Esse simples ciclo é suficiente para que o mosquito que não carrega o vírus da febre amarela desde a década de 1940 volte a transmitir a doença. E, como ele está ambientado nas cidades, suas vítimas principais serão os humanos e não mais os macacos. Trivial, no entanto, não quer dizer provável. “A chance de isso acontecer sem a gente detectar é pequena”, esclarece Constância. Primeiro porque, numa população de mosquito, nem todos são capazes de se contaminar nem de transmitir esse e outros vírus. “Alguns podem bloquear o desenvolvimento do vírus, outros podem transmitir. Alguns podem até morrer”, explica. Mas a razão principal, segundo a entomologista, é que, como a “virulência” da febre amarela é “muito alta”, uma pessoa acometida pelos efeitos dificilmente ficaria em casa, tentando se tratar sozinha. Com sinais como de insuficiência no fígado e nos rins e hemorragia, em geral essa pessoa seria levada a um hospital e ficaria internada, “relativamente isolada”, inclusive dos mosquitos que ela eventualmente poderia contaminar. Mesmo isso, no entanto, não é tão garantido assim, já que esses efeitos mais graves são apenas um quadro possível da febre amarela, que pode também gerar desconfortos mais leves e até ser assintomática. Do ponto de vista da transmissão do humano para o Aedes, não faz diferença a carga viral? “Em teoria faz, mas esse número, na prática, a gente não conhece. A gente não sabe qual é a carga de vírus que um paciente precisa ter para o mosquito permitir a replicação nem a carga de vírus que tem que haver dentro do mosquito para que ele, quando picar uma pessoa saudável, possa transmitir numa quantidade suficiente a ponto de ela desenvolver a doença. Tudo isso são questões em aberto”, afirma Constância.

A combinação de todos os elementos necessários para a ocorrência do tal “evento” que acabamos de descrever é uma das possibilidades de se ver reemergir o ciclo urbano da febre amarela. Mas não é a única. Não se descarta o risco de os vetores que hoje transmitem a doença na floresta migrarem para a cidade, facilitando a transmissão para as populações humanas. E aqui nos encontramos de volta no começo desta reportagem. “Cada vez que se desmata uma área silvestre, de floresta, a gente torna aquele ambiente urbano. E aqueles mosquitos vão ter refúgio e podem passar a habitar o ambiente urbano. Nesse processo, as espécies podem ser eliminadas ou se adaptar”, explica Constância, ressaltando que isso foi exatamente o que aconteceu na história do Aedes aegypti. “Ele surgiu a partir de espécies silvestres. Ainda existe a sua forma silvestre, que é o Aedes aegypti formosus, que passou a se adaptar ao ambiente urbano e hoje é uma espécie que está praticamente em toda a área tropical e subtropical do planeta”, conta.
A pesquisadora Marcia Chame, coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre e do Programa de Biodiversidade e Saúde da Fiocruz, ressalta ainda que, não por acaso, “as espécies que têm alta capacidade de transmitir agentes infecciosos também têm alta capacidade de adaptação”. “É uma estratégia de sobrevivência desses agentes infecciosos já que, se um vírus infectar uma espécie raríssima, a probabilidade de ele se extinguir é enorme”, diz. Marta Pignatti, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), completa: “Muitas doenças do Brasil atual estão ligadas ao desmatamento, em primeiro lugar, e, em segundo, à poluição dos ecossistemas naturais dessas doenças, que acabam selecionando os vírus ou bactérias mais resistentes”. E isso, diz, vai aproximando essas espécies mais silvestres do ambiente humano.

Não faltam exemplos reais. Já na década de 1980, Marta participou de um estudo sobre a reemergência da febre maculosa no município de Pedreiras, em São Paulo, uma região em que fazia 100 anos que não se tinha notícia daquela doença.  Os resultados identificaram a relação da epidemia com o avanço da urbanização às custas de uma crescente destruição da floresta. “Com o desmatamento acompanhado da tentativa de preservação de algumas espécies, a gente desequilibra os portadores naturais da doença, aumentando ou diminuindo drasticamente, por exemplo, a população de capivara, que é o reservatório natural de rickettsia, que ocasiona a febre maculosa”, explica Marta. E completa: “São intervenções que a gente vai fazendo no ambiente, selecionando algumas espécies que têm que ser preservadas quando o habitat natural delas e os seus predadores naturais já foram destruídos”. Com isso, diz, desequilibra-se também a função de “reservatórios” de doenças que alguns animais desempenham. Marcia Chame lembra que, nesse caso específico, a capivara conseguiu se adaptar às marginais de rios altamente degradados e o resultado é que os carrapatos passaram a infestar e infectar também as pessoas.

Impactos das tragédias

Entre as mudanças sociais, econômicas e ambientais pelas quais o Brasil passou nesse intervalo entre a erradicação e o surto atual de febre amarela, desmatamento é um elemento que não faltou. Segundo estudo da Universidade de Maryland (EUA) realizado em 2015, só entre 1990 e 2000, o país desmatou em média 600 mil hectares (6 mil quilômetros quadrados) por ano, uma área maior do que todo o território da Cisjordânia. E, embora não haja estudos que comprovem a relação entre esses elementos para cada situação concreta, não passa despercebido que o estado com o maior número de casos da doença – e onde o Ministério da Saúde identifica o “evento” que teria dado início a esse surto – seja também o campeão do país em desmatamento de mata atlântica: os dados mais recentes do Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica mostram que, entre 2014 e 2015, Minas Gerais reduziu mais de 7.700 hectares (77 quilômetros quadrados) de área de floresta.

O estado liderava esse ranking havia tempo, mas nos últimos dois anos tinha melhorado sua situação. Agora, quando volta ao topo, um dado chamou atenção da pesquisa: a maior concentração de desmatamento foi na área marcada pela mineração, com destaque para a cidade de Mariana. Segundo o estudo, isso se deve à tragédia ambiental ocorrida em dezembro de 2015, com o rompimento de uma barragem de rejeitos da empresa Samarco que, agora em 2017, tem sido apontada também como uma entre as muitas possíveis ‘causas’ do surto de febre amarela. “Eu acredito fortemente nisso”, diz Constância Ayres, que explica a hipótese: “Quando acontece um desastre desses, você tem a morte de animais que são importantes ecologicamente como, por exemplo, girinos, que poderiam comer as larvas de mosquito, ou mesmo sapos adultos, que se alimentam de pequenos insetos, fazendo esse controle natural. Os peixes também. Quando você mata esses predadores naturais, a população-alvo [de mosquito] cresce de forma gigantesca, aumentam as chances de eles se infectarem com o vírus e, consequentemente, de transmiti-lo”. O problema, diz, é que se passa a ter uma grande população de mosquito em busca de hospedeiros para se alimentar. “Quando acontece um acidente como esse, há um deslocamento tanto da população humana, que foi expulsa de lá, quanto de animais e diversas espécies que estavam vivendo à margem do Rio Doce”, descreve Marta Pignatti, explicando que o rompimento da barragem “não é o único episódio responsável pelo aparecimento de casos de febre amarela”, mas que ele certamente faz parte das “contingências” que potencializam o desequilíbrio entre as espécies, favorecendo a emergência ou reemergência de doenças.

Na avaliação da pesquisadora Marcia Chame, ainda são necessários estudos para que se possa afirmar a relação direta entre esses episódios. Ela argumenta que, embora sejam a maioria, nem todos os municípios do estado atingidos por febre amarela estão ao redor do Rio Doce. “Todos eles têm uma coisa em comum: são áreas em que os fragmentos de floresta são pequenos”, resume. E pondera: “O que a gente está vendo é que as áreas são impactadas por n situações: desflorestamento, queimada, agricultura, mineração. Os impactos que causam isso são muitos. Mariana é um impacto? Sem dúvida nenhuma, ninguém pode dizer que não. A gente tem hoje dados para dizer que existe uma correlação? Não, a gente ainda não tem esses dados”.

Marcia conta que participou de uma “reunião com especialistas” na Fundação Renova, que foi criada após o rompimento da barragem para monitorar as consequências da tragédia. “Eu estive lá justamente para ajudar a definir um conjunto de pesquisas e ações que eles vão ter que implementar para acompanhar isso. Então, eu espero, sinceramente, que a gente tenha dados para poder fazer essa correlação”, diz. Reportagem da revista Poli nº 45, de maio/junho do ano passado, no entanto, mostra que organizações, movimentos sociais e até representações do Ministério Público que acompanham os desdobramentos da tragédia não eram tão otimistas em relação ao papel dessa fundação. Na época, a entidade ainda estava para ser criada, como parte de um acordo judicial (um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta) firmado sem a realização de audiências públicas ou qualquer outra forma de participação de representantes da população atingida – um dos motivos pelos quais, inclusive, nenhum Ministério Público aceitou assiná-lo. Especificamente sobre a fundação, uma das muitas críticas apresentadas na época era ao fato de a sociedade impactada só ter espaço – e reduzido – para “opinar” sobre as decisões, por meio do Conselho Consultivo. As deliberações são tomadas pelo Conselho Curador, formado por sete membros dentre os quais seis são indicados pelas empresas responsáveis pela tragédia: Samarco, Vale e BHP Billiton Brasil.

Determinações sociais e econômicas

A simples hipótese de relação entre o desabamento da barragem da Samarco e o surto atual de febre amarela mostra como a conexão entre ambiente e (re)emergência de doenças vai além do desmatamento – embora tenha havido também a destruição de grandes áreas de mata atlântica, como mostrou o Atlas, a tragédia de Mariana teve impactos de ordens diversas. Da mesma forma, especialistas apontam a necessidade de que essas análises não se deem de forma apartada do debate sobre o modelo de desenvolvimento econômico.

Entre os exemplos de doenças silvestres que se aproximaram das cidades, Marta Pignatti lembra os casos de hantavirose, que afetaram vários municípios do estado do Mato Grosso nas décadas de 2000 e 2010. “Estamos falando de uma região que tem um desmatamento acelerado associado, por exemplo, à monocultura de soja”, argumenta, destacando uma atividade própria do modelo de agronegócio em que o país tem apostado. Rivaldo aponta também o próprio uso de agrotóxicos como um fator que influencia o surgimento de arboviroses silvestres, já que essas substâncias provocam a fuga de animais das regiões de plantação.
A professora da UFMT volta às mudanças no Código Florestal para apontar o que ela chama de “negligência” com a regulação ambiental “conquistada a duras penas” no Brasil. E isso, diz, em nome de uma perspectiva de crescimento econômico que, ao contrário, deveria estar “subordinado à capacidade de suporte dos ecossistemas”. “Não adianta, por exemplo, eu deixar um percentual da propriedade como área de preservação porque, se não for possível reproduzir ali aquelas vidas que se reproduziriam no ambiente natural. Eu só vou conseguir que essas espécies se extingam ou proporcionar que as mais resistentes sobrevivam”, exemplifica. E completa: “Nós perdemos uma coisa muito importante, que era o reflorestamento das Áreas de Preservação Permanente [APPs], que seriam corredores naturais de preservação ambiental dessas espécies, tanto da flora quanto da fauna”.

Marta lembra que, principalmente a partir da ECO-92, até organismos internacionais, como o Banco Mundial – que na década de 1970 tinha financiado obras polêmicas, como a Transamazônica – passaram a defender a avaliação de impactos ambientais de empreendimentos. Era uma perspectiva de “mitigar os danos”, que ela considera insuficiente mas que, “pelo menos”, diz, obrigou as empresas e os proprietários de terra a terem que deixar algumas áreas verdes, a preservar alguma mata natural. Referindo-se ao atual ímpeto de mudança da legislação que regula o licenciamento ambiental – com três projetos em tramitação no Congresso (PLS 654/2015, PEC 65/2012, PL 3729/2004) e um apoio incondicional do governo federal –, ela se mostra pessimista sobre o presente e o futuro: “Na medida em que o governo atual quer flexibilizar isso, vamos viver algo parecido com o que foram as décadas de 1970 e 1980, quando não se tinha nenhum controle sobre o capital na utilização [dessas riquezas naturais]. Vamos voltar ao patamar dos anos 70, quando o governo militar dizia: ‘venham, indústrias poluidoras, que nós estaremos de braços abertos para recebê-las’”, aposta.

Epidemiologia crítica

Todas essas análises sobre o desmonte da regulação ambiental são feitas por pesquisadores e militantes da área há muito tempo. Denúncias sobre os efeitos de agrotóxicos para a saúde humana e sobre os impactos de grandes empreendimentos – como a TKCSA no Rio de Janeiro ou a usina de Belo Monte no Pará – já têm sido objeto de pesquisas que relacionam saúde e ambiente. O que o atual surto de febre amarela tem feito é reforçar a relação desses processos, que têm determinações econômicas e sociais, com estudos propriamente epidemiológicos. Não que isso seja uma novidade – a chamada epidemiologia crítica já seguia esse caminho -, mas há quem ache que ela andou esquecida por aqui.
Por essa perspectiva, a emergência e a reemergência de doenças não podem ser desvinculadas das determinações econômicas e sociais que, por sua vez, não estão separadas das políticas públicas. E isso significa também atentar para as populações mais vulneráveis às possíveis epidemias. Segundo Rivaldo, hoje, o retrato do surto de febre amarela no Brasil mostra que, em geral, as camadas médias urbanas são infectadas quando estão participando de alguma atividade de ecoturismo, mas que os mais atingidos são os mais pobres, que moram nas comunidades rurais que fazem limite com as pequenas florestas devastadas.

E o cenário impõe também a preocupação com as opções políticas que podem ou não facilitar o enfrentamento dessas emergências num futuro próximo. “Há uma grande expectativa de todos nós sobre qual seria a resposta que o Brasil poderia dar a uma situação de emergência sanitária de grandes proporções como a epidemia de chikungunya que varreu o Caribe inteiro”, preocupa-se Rivaldo. Lembrando que o Sistema Único de Saúde vem sendo desfinanciado há muito tempo, e referindo-se também diretamente à Emenda Constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos, ele alerta: “Eu gostaria de saber como seria o comportamento dessa restrição econômica se tivermos uma epidemia que pode incapacitar as pessoas para o trabalho, para a produção, como acontece com a chikungunya”.

Procurado pela reportagem para comentar os temas aqui tratados, o Ministério da Saúde não respondeu às perguntas enviadas.

Comentários

Adorei o texto! Parabéns pela abordagem dessa temática! Comecei a cursar o doutorado em Geografia - Tratamento da Informação Espacial da PUC Minas no mês passado e meu projeto de pesquisa tratará justamente entre a aproximação da Geografia da Saúde e a Saúde Ambiental. Direcionarei minha investigação para a Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha mas é sensível o quanto esse tipo de estudo precisa ser feito para a escala global. Atenciosamente, Gustavo Libério de Paulo.