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Formação de técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul

Representantes dos países membros apresentam suas experiências, avanços e dificuldades para a formação técnica em saúde. Veja as principais discussões do Seminário Internacional que debateu o tema.


Para desenvolverem o tema da mesa 3, ‘Os desafios e as perspectivas da formação dos trabalhadores técnicos em saúde: A situação dos países do Mercosul’ foram convidados Isabel Duré, da Argentina, Maria Auxiliadora Chirstófaro, do Brasil, Norma Valenzuela, do Paraguai, Juan Mila, do Uruguai e Elba Choque e Maria Izabel Fernandez, da Bolívia.



Argentina: dificuldade em separar graduação e curso técnico



Isabel Duré, da Direção Nacional de Capital Humano e Saúde Ocupacional da Argentina, vinculada ao Ministério da Saúde, apresentou o modo como a educação técnica em saúde é entendida e realizada em seu país. Ela explicou que, na Argentina, o ensino inicial e o secundário são obrigatórios e que existe educação pública e privada em todos os níveis. Os trabalhadores técnicos são aqueles com ensino médio e os cargos de auxiliar requerem o nível primário e uma formação complementar de 900 horas. Ela contou também que existe uma fragmentação no que diz respeito às próprias profissões técnicas: “Existem formações diferentes com um mesmo nome, enquanto formações com currículos semelhantes têm nomes diferentes”, disse.



Isabel explicou também o funcionamento da Comissão Interministerial de Saúde e Educação, responsável pela regulação e pela fiscalização do exercício profissional na área de saúde. “Para regulamentar as profissões, é elaborado um documento-base pelos Conselhos Federais de Saúde e de Educação. Depois de aprovado pelas autoridades, esse documento se torna um marco referencial para o desenvolvimento da formação em diferentes jurisdições. Ele determina o perfil profissional, os conteúdos básicos de formação, os requisitos mínimos para o funcionamento da carreira e as atividades exercidas”, afirmou. Em comum, todos os cursos possuem a carga horária mínima de 1.600 horas.



Ela contou ainda que a maior demanda é por cursos técnicos na área de enfermagem e que existe um projeto de programa nacional para a formação sendo lançado. “Ele contempla a exigência de ensino secundário para qualquer nível de formação em enfermagem. A decisão não é absurda, tendo em vista que, em nosso país, o ensino secundário é obrigatório”, comentou.



De acordo com Isabel, existe um grande problema em relação à delimitação das carreiras. “Muitas vezes, a linha que divide um trabalhador técnico de um com licenciatura é tênue. Onde a formação técnica e a graduação se tocam? Essa é uma questão recorrente, por exemplo, em cursos de radiologia e laboratório”, disse. Para Isabel, um dos grandes desafios da Argentina é justamente definir quais processos requerem a formação técnica e quais requerem formação de graduação.



Bolívia: a experiência da Escola Nacional de Saúde Pública



Elba Choque começou sua participação no seminário lembrando que a Bolívia passa hoje por um momento de profunda transformação, o que também se reflete na saúde. “Há uma grande demanda por direitos e igualdades”, comentou.



Ela falou sobre a Escola Nacional de Saúde Pública boliviana, que surgiu em 1962 para suprir as demandas na área da saúde e comentou que, em seu país, a educação profissional é, desde 1993, regulada pelo Ministério da Educação.



Entre as atividades principais desenvolvidas na Escola, estava a formação de auxiliares de enfermagem, de técnicos em radiologia e de auxiliares dentais, entre outros. “Quando começou, a carreira de auxiliar de enfermagem tinha carga horária inferior a 600 horas”, observou Elba.



Ela também salientou que cerca de 70% da população boliviana é composta por indígenas. “E essa população é muito excluída do nosso sistema fragmentado de saúde”, afirmou.



Para Maria Isabel, educação e saúde são pilares para o desenvolvimento de um país e, por isso, devem ser buscados avanços nessas áreas. Ela explicou que a política de saúde na Bolívia tem quatro princípios: participação social, intersetorialidade, interculturalidade e integralidade.



A participação social é, de acordo com ela, fundamental. “É o processo pelo qual a comunidade se envolve na gestão da saúde. E quando isso ocorre, por intermédio dos movimentos sociais, há uma relação única, já que esses movimentos conhecem as demandas”, explica. A intersetorialidade, por sua vez, é o trabalho coordenado entre diferentes setores, como educação, saúde e justiça. A interculturalidade também se mostra importante em um país que tem 36 povos com diferentes idiomas e tradições. “Por isso é importante que a formação leve em conta o respeito a essas tradições. Os médicos ganham confiança quando fazem parte da comunidade, quando vivem a comunidade”, disse Maria Izabel.



Paraguai: o desafio de relacionar formação e demanda



Norma Valenzuela, do ParaguaiEm sua palestra, Norma falou sobre a legislação paraguaia no que diz respeito à educação e à educação profissional. “Nossa constituição garante o direito à Educação e o sistema educativo tem os objetivos permanentes de erradicar o analfabetismo e capacitar para o trabalho”, disse, observando que o Estado é responsável por assegurar a educação média, técnica, agropecuária, industrial e superior, assim como a investigação científica e tecnológica. “A organização do sistema educacional é de responsabilidade do Estado, com a participação de distintas comunidades educativas. E o sistema abarca os setores privados”, explicou.



Ainda de acordo com a Constituição, a educação técnica no Paraguai tem como objetivo a formação de recursos humanos requeridos para o desenvolvimento nacional. Para Norma, o maior desafio é relacionar a formação de trabalhadores técnicos à demanda por seus serviços, em vez de relacionar essa formação à oferta das instituições privadas.



Ela explicou que, por muito tempo, não houve articulação entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação no que dizia respeito à habilitação de institutos técnicos superiores. “Assim, os egressos de instituições habilitadas pelo Ministério da Saúde que quisessem trabalhar em outras regiões ou continuar seus estudos não poderiam fazê-lo, pois não tinham autorização do Ministério da Educação. Por isso, formou-se um convênio de cooperação interinstitucional entre esses ministérios. Isso fez com que houvesse um salto no número de institutos técnicos superiores no Paraguai: até 2004 havia apenas 14, em 2005 esse número aumentou para 83”, contou Norma.



Ela explicou ainda que a carga horária mínima dos cursos técnicos no Paraguai é de 2.500 horas e que trabalhadores que já possuam formação técnica podem fazer cursos de especialização, de 400 horas.



Norma também afirmou que o objetivo de seu país é usar uma metodologia de reflexão-ação para aumentar a capacidade crítica dos alunos, utilizando técnicas ativas de ensino-aprendizagem que ajudem o aluno a desenvolver um pensamento reflexivo. “Na teoria, é tudo muito bonito. O problema é que, na prática, não acontece bem assim”, lamentou. Ela disse que os programas de formação não se baseiam em competências claramente definidas, o que, como na Argentina, gera certa confusão em relação aos papéis que devem caber aos técnicos e àqueles que devem caber aos profissionais de nível universitário. “Por isso é preciso refletir, junto com os atores da saúde, da educação e do trabalho, sobre o propósito de cada profissão. Assim, a qualificação vai estar de acordo com as ações realizadas”, disse, defendendo que o objetivo dos currículos deve ser, ao relacionar o conteúdo programático às competências a serem adquiridas, buscar a empregabilidade dos alunos.



Uruguai: a Escola Universitária de Tecnologia Média



Juan Mila explicou o funcionamento da Escola Universitaria de Tecnologia Media (EUTM), da qual é diretor. Ele explicou que a Escola é parte da Faculdade de Medicina da Universidade da República, uma das instituições de maior tradição no país. “A faculdade tem cerca de 130 anos e seu vínculo com o Ministério da Saúde é histórico. Além da EUTM, existe a Escola de Nutrição e Dietética, a Escola de Parteiras e a Escola de Graduados – para pós-graduação e formação continuada”, disse.



De acordo com Juan, a universidade oferece, na área de saúde, que oferece quatro cursos técnicos, três tecnológicos e 11 licenciaturas e tem feito um grande esforço de descentralização.



Ele explicou que, no Uruguai, o perfil dos técnicos está associado ao ‘simples fazer’ e está subordinado à supervisão de outro profissional, que pode ser um tecnólogo. Já a função do tecnólogo transcende o ‘fazer’ e deve estar ligada a uma práxis integradora: além da formação técnica, os tecnólogos possuem no perfil formativo matérias ou módulos que dizem respeito à pedagogia, didática, psicologia, metodologia científica, saúde pública e gestão hospitalar. Os cursos de licenciatura, por sua vez, devem ter, no mínimo, 2.400 horas, ou quatro anos de duração. Segundo Juan, esses cursos dão importância à formação básica e à integração entre disciplinas teóricas e práticas – as primeiras respondem por 40% do currículo.



Brasil: breve história da formação técnica em saúde



Para explicar como funciona a educação profissional em saúde no Brasil, Maria Auxiliadora apresentou um resgate histórico desse processo. “Desde o início do século XX, temos ampla e complexa regulação da educação. E, nos anos 70, estudos sobre a formação de trabalhadores indicavam que havia, no Brasil, 300 mil trabalhadores em saúde sem a devida qualificação”, contou. Ela disse ainda que as denominações eram as mais diversas: “Os profissionais sem nível superior eram chamados técnicos, ajudantes, atendentes e agentes sem que houvesse uma denominação específica, dependendo do trabalho”, explicou.



De acordo com Maria Auxiliadora, o início da década de 80 e do processo de redemocratização do país trouxe manifestações que pediam formalmente o estabelecimento de políticas para a saúde. “O processo apontou para a necessidade de se discutir uma identidade profissional”, disse, ressaltando que a inserção dos técnicos era circunstancial e imprecisa, o que ficava claro nas profissões ligadas à enfermagem. “Estudos mostraram que, quando se perguntava o que determinado profissional fazia, uma das respostas mais comuns era: ‘Depende do horário’. Isso porque tínhamos auxiliares de enfermagem, por exemplo, que não podiam fazer certas atividades, como ajudar no parto, pela manhã, mas que, nos plantões da noite, desempenhavam essa função – apenas não assinavam”, disse. “Além disso, descobriu-se que os cursos eram oferecidos majoritariamente pelo sistema privado, a preços altos, para jovens pobres. A orientação era centrada nas competências para o fazer e sustentada em manuais, e havia pouca qualificação pedagógica dos docentes”, completou.



O programa Larga Escala surgiu, de acordo com Maria Auxiliadora, para fazer com que as escolas públicas oferecessem a formação técnica e, principalmente, para qualificar trabalhadores que já atuavam sem a formação adequada. “Isso marcou a reorientação vivida nos anos 70”, disse.



Ela explicou também que, hoje, a formação técnica em saúde é desenvolvida tanto por instituições públicas como privadas e comentou a importância do papel da Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS), criada para fortalecer essas Escolas que são públicas e ligadas, direta ou indiretamente, à gestão do SUS. Maria Auxiliadora também citou a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES/MS) como instrumento de melhoria da formação técnica em saúde no Brasil. Segundo ela, um dos grandes desafios agora é definir e formular as propostas político-pedagógicas dos cursos, tendo como referência o paradigma do ensino por competência.



Em comum: a formação por competências



Ao fim das exposições, a vice-diretora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico da EPSJV, Isabel Brasil, levantou uma questão que acabou se mostrando central durante o seminário: “Vocês falaram muito sobre a necessidade de realizar a formação por competências, o que é uma característica trazida pela onda neoliberal. Acredito que seja preciso pensar nisso com cuidado”, provocou.



Elba Choque, da Bolívia, disse compartilhar essa preocupação. “O que ocorre é que temos que perceber os serviços que são necessários, e não apenas usar um modelo que nos foi apresentado. Definimos as concepções necessárias e as estruturamos, sem nos ajustarmos totalmente aos modelos neoliberais. Os projetos neoliberais, por exemplo, não propõem que se considerem as tradições, e nós vamos colocar isso no currículo”, disse.



Já Norma Valenzuela afirmou que o mercado tem que absorver pessoas que respondam às demandas da população. “O que se deseja é articular a formação e as funções a serem exercidas”, justificou, acrescentando que o maior problema não é formar por competências ou não, mas saber quem está definindo essas competências – se elas vão atender à população ou ao mercado da educação.



Para enriquecer o debate, Marcela Pronko acabou adiantando um dos resultados da pesquisa do Mercosul: embora as escolas digam que trabalham com competências, a verdade é que muitas sequer sabem definir esse conceito. “O que observamos é que, em muitos casos, isso está no projeto político-pedagógico mas, na prática, cada professor trabalha como acha melhor”, revelou.