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Formação em massa

Pronatec amplia sua abrangência de criação de vagas com a inserção de instituições de ensino superior privado, maior autonomia para o sistema S e expande o programa para presos em regime semiaberto e estudantes do EJA.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 21/02/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Alexandre dos Santos cursou um ano de curso de técnico em Sistemas de Gás no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), enquanto trabalhava como segurança sem carteira assinada em uma locadora de veículos. Anteriormente, o último contato escolar tinha sido com o ensino supletivo, há uns cinco anos, antes de entrar no curso técnico. Enquanto estudava, ele tinha esperanças de conseguir um emprego melhor, afinal, as expectativas em relação às áreas de petróleo e gás são sempre positivas no mercado de trabalho brasileiro atual. Hoje, um ano depois de conquistar o desejado diploma, ele continua trabalhando como segurança na mesma empresa, mas carrega a culpa de não ter sido chamado para trabalhar na área tão desejada. Agora, Alexandre, que antes queria uma melhoria salarial, se contenta em conseguir alguma coisa em sua área de formação e, se tiver sorte, conquistar seus direitos trabalhistas.

A história de Alexandre não é isolada. Hoje, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que abriu inscrições para novos cursos nesta semana, traz como objetivo ampliar o acesso ao ensino profissional de jovens e adultos brasileiros e tem cumprido seu papel de ofertar milhares de vagas em diferentes áreas. Para tanto, a estratégia utilizada tem sido muito criticada pelo nível de qualidade dos cursos oferecidos, além do fortalecimento do ensino privado em detrimento do público.

Grande exemplo destes dois alvos de crítica é a Medida Provisória 593/12 , lançada no final de dezembro de 2012, atualmente analisada pela Câmara dos Deputados e tocada com caráter de urgência, que abrange, entre os pontos de destaque, a ampliação do programa para que instituições privadas de ensino superior criem cursos técnicos que receberão investimentos do programa, além de uma maior autonomia para que o sistema S crie cursos técnicos, amplie vagas e unidades de ensino. Toda esta estratégia deverá ser implementada ainda em 2013.

O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, lembra que, desde o decreto 2208/97 , esta tendência educativa de formação profissional ligada ao setor privado teve uma retomada. Mas, ele alerta que, embora não sendo um fenômeno novo, desde então, o setor que faz da educação um negócio vem se fortalecendo de maneira acelerada. "Estas instituições com fins lucrativos tiveram uma expansão muito acima das instituições públicas no período de 1997 a 2005. Esta tendência já se confirma e se consolida nos últimos 15 anos de maneira muito consistente. Essa expansão foi possibilitada pelo decreto 2208, que possibilita e induz a uma formação indutora e desvincula a formação profissional da propedêutica. Isso devasta as instituições públicas como o Cefet , redefinindo um pouco a área de formação profissional no Brasil", analisa. E completa: "Esse tipo de formação impõe um retrocesso no debate, que foi feito de maneira muito sistemática nos anos 1980, da necessidade de uma formação integral e/ou politécnica. Vemos então um retrocesso objetivo na estratégia de formação", avalia.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marise Ramos, concorda com a crítica de Leher e relembra que essa fórmula é clássica e já criticada desde a década de 1950 e 1960. "Essa fórmula tem uma teoria que a sustenta, a teoria do capital humano e a ideologia manpower aproach. A fórmula é muito simples: se o país resolve se desenvolver, ele vai gerar mais emprego, mas para ter esses postos de trabalho ocupados, precisa de pessoas qualificadas para isso. Isso é o que vem sendo aplicado nos últimos anos. Mas, essa prática já foi desbancada com críticas que mostram que o problema do desemprego não está associado à qualificação e sim à existência dos postos de trabalho e à regulação do exército industrial de reserva", explica.

Parcerias com instituições privadas

A Medida Provisória 593/12 garante que instituições privadas de ensino superior criem cursos de ensino técnico e ofereçam bolsas do Pronatec. Antes desta MP, apenas as redes municipais e estaduais de ensino público e o Sistema S dispunham de tal autonomia. O secretário de educação profissional e tecnológica do Ministério da Educação, Marco Antonio de Oliveira, explica que para criar novos cursos, a instituição privada de ensino superior precisa seguir o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos e deve estar bem avaliada pelo MEC. "Nesse momento, estamos definindo a forma que se dará esse processo de criação dos cursos. O sucesso ou o fracasso deles dependerá da capacidade dessas instituições de ofertar cursos que atendam às demandas da comunidade local. No primeiro momento, queremos privilegiar cursos nas áreas tecnológicas, portanto, a ênfase é oferta de cursos vinculados às engenharias", explica. E exemplifica: "Se a instituição tiver um curso na área de engenharia mecânica, poderá montar um curso técnico de automação industrial, porque tem professores, expertise na área e laboratórios. O que vai dizer se as instituições estão em condições de ofertar esses cursos é a própria avaliação que o MEC já faz na oferta de cursos de ensino superior".

Além disso, o secretário explica que a autonomia concedida ao Sistema S, por meio da integração da rede federal de ensino, é para que os processos se tornem menos burocráticos. "Basicamente, trazer o sistema S para a rede federal de ensino, nos permite fazer essas parcerias e viabilizar a transferência direta de recursos sem ter que depender de convênio e realização de chamamento público, mas, sobretudo, o sistema S passa a dispor de autonomia para a criação de cursos técnicos e de ensino superior. Isso dá a ele a agilidade que não tinha. Como eram instituições que não estavam ligadas ao sistema federal de ensino, todo o processo de regulação da oferta de cursos, principalmente dos cursos técnicos, se dava no âmbito dos conselhos estaduais de educação e, com isso, todo o processo se tornava moroso", explica Marco Antonio.

Para Leher, essas parcerias e autonomia são pontos muito preocupantes para o presente e o futuro da formação profissional, tanto das instituições públicas quanto privadas. "Também encontramos influência e convênios do Sistema S dentro de instituições públicas, que não tinham expertise de formação técnica. Dentro dos Institutos Federais (IFTs), existem cursos muito instrumentais com o conteúdo pedagógico dirigido pelo sistema S. Além disso, a maioria dos cursos oferecidos como tecnológicos não são da área tecnológica no sentido mais clássico, ou seja, não são trabalhadores vinculados a produtos e processos ligados à engenharia como era a missão dos antigos Cefets. São processos ligados à administração, a noções mais rasas de empreendedorismo. Com isso, podemos prever ou até concluir, a partir desta autonomia de instituições privadas de ensino superior, que estes cursos oferecidos estarão totalmente a parte de um trabalho técnico mais sofisticado. Essa parcela que vai desempenhar uma atividade técnica mais sofisticada é relativamente um percentual muito pequeno, o grande contingente de trabalhadores formados seráde maneira mais simples, portanto, não importa se essa formação é boa ou não", analisa.

Marise argumenta que essa lógica pode ser vista por duas óticas: de um lado, uma forma patrimonialista de tutela por parte do Estado subsidiando o empresariado e populista em relação aos trabalhadores e, de outro, um oportunismo do empresariado de se fazer valer dos recursos públicos para a acumulação de capitais. "Vale lembrar que essa lógica não é maquiavélica, não há um arquitetar de coisas para beneficiar o empresariado, na verdade, são atos e processos de uma forma histórica de se pensar o capitalismo brasileiro em sua forma de organização. Isso vem de um pressuposto histórico que já se manifestava no período Vargas com a ideia da formação profissional ser de responsabilidade dos empresários. Na obra de Antonio Cunha é relatado que no Estado Novo os empresários recusaram esta responsabilidade e Getulio ameaçou colocar a formação na mão dos trabalhadores. Nesse contexto, foi criado o Sistema Nacional de Apredizagem. Em 1988, a Constituição traz que a formação profissional é de responsabilidade do Estado, da sociedade e do empresariado, ou seja, de todos os setores", historiciza.

Roberto Leher, é mais pessimista em relação aos tempos atuais e afirma que o sistema empresarial passou a estar imbuído de uma legitimidade para socialização e educação da juventude. "Essas iniciativas mostram que o Estado está reconhecendo no setor empresarial melhor capacidade, mais operatividade, mais objetividade, mais conhecimento e uma maior pertinência na formação da juventude e da força de trabalho", analisa o professor da UFRJ.

Segundo a MP, o governo federal poderá repassar recursos às instituições públicas e privadas em valores proporcionais ao número de vagas ofertadas, e não mais ao número de alunos atendidos, como anteriormente. Os investimentos das vagas não preenchidas deverão ser devolvidos ao governo.

Expansão da demanda

O secretário adiantou outra novidade: a ampliação do Pronatec para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) com a possibilidade de certificação profissional. "Vale lembrar que o está previsto no Proeja em relação à carga horária será mantido. Mas o que muda substantivamente é que vamos compor um mix da formação propedêutica com a profissional, além de conceder a certificação. O rapaz eletricista que quiser ter um diploma de nível médio, faz a complementação com foco em matemática, português e ciências, ou seja, os conhecimentos básicos para a profissão dele, e complementa com a formação profissional. Mas se ele comprovar uma experiência prática como eletricista pode contar esse período para a certificação", exemplifica.

Outra novidade anunciada no mês de fevereiro em relação ao programa foi a do acordo entre os Ministérios da Justiça e da Educação que prevê a oferta de 90 mil vagas até 2014 em cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional para presos que cumprem pena em regime semiaberto. A ideia é que essa iniciativa seja expandida também para aqueles que estão em regime fechado ou em prisões provisórias, além dos que já cumpriram as penas previstas.

Em relação a estas expansões, Leher critica que ela seja dada desta forma e com objetivos do empresariado. "Esses programas que pegam justamente um público jovem, que já não tinha mais esperança de ser um trabalhador assalariado, acaba por educá-los como força de trabalho potencial. Não importa tanto se ele tem a formação mais densa ou mais sistematizada, o importante é que ele busque um emprego com a formação que conseguiu, assim aumenta a demanda por emprego, a concorrência por uma vaga e os empresários passam a baixar os salários", analisa. E completa: "Nos últimos dez anos, de acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a força de trabalho no Brasil cresceu na ordem de 20%. Isso significa que, em termos médios, o salário subiu no Brasil. E isso acende uma luz vermelha no empresariado. Estamos tendo uma pressão maior do trabalhador ao aumento salarial, mas em que isso resulta? Em colocar mais trabalhadores disponíveis para que essa massa em busca de emprego force a mão de obra para baixo. Não é que exista falta de força de trabalho como alardeiam, mas é que essa força está exigindo um salário maior. O empresariado tem como ponto de emergência massificar de toda maneira a formação profissional aligeirada e garantir o exército industrial de reserva", conclui o professor.