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Garantias trabalhistas infectadas

Em tempos de pandemia, o dia do trabalhador é marcado pelo ataque aos direitos trabalhistas e crescente desemprego
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 30/04/2020 15h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Na semana em que se comemora o dia do trabalhador, 1º de maio, o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, anunciou que 4 milhões de trabalhadores já foram impactados pelas duas medidas provisórias (nº 927 e 936) ligadas às relações trabalhistas publicadas pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia. Entre os efeitos mais diretos estão a redução de jornada e a suspensão de contratos de trabalho. De acordo com nota do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), esse cálculo ainda deve estar subestimado porque desde o início do ano o governo suspendeu o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), banco de dados que registra admissões e dispensas de empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Foi durante a madrugada do dia 22 de março que Jair Bolsonaro publicou a primeira Medida Provisória (927/20) relacionada aos trabalhadores. O texto apontava alternativas para reduzir as demissões em meio pandemia, que afeta diretamente a economia. Entre as iniciativas estavam a autorização para o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e coletivas, a criação de um banco de horas, suspensão de salários, prevalência do negociado sobre o legislado, entre outras. Um dia depois, após grande mobilização por parte de especialistas, parlamentares e imprensa, Bolsonaro publicou a segunda (928/20), que revogava o ponto mais crítico da primeira, que era o direito de o empregador suspender o contrato de trabalho por até quatro meses.

À época, o Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou o professor da Universidade de São Paulo (USP) Ruy Braga, que avaliou as duas MPs como expressões de descaso e insensibilidade com os trabalhadores. E que, no final das contas, elas não serviram para preservar o emprego. “Numa situação como essa que a gente está vivendo, e segundo raciocínio do presidente e falas de técnicos do governo, essa é uma maneira de preservar emprego, mas preserva estatística de emprego. Eles estão olhando lá na frente, para daqui a quatro ou cinco meses, quando dirão que não houve demissões. Trazendo para o mundo real e concreto, numa situação como essa que estamos vivendo, a suspensão de contratos sem nenhuma contrapartida para o trabalhador não se sustenta. Para o trabalhador, é até mais interessante ser demitido do que ter suspensão de salário. Porque assim ele pode receber o Fundo de Garantia, pode ter acesso a algum tipo de renda que ele possa utilizar ao longo desses próximos meses. Quando você suspende o contrato de trabalho e não dá nenhuma garantia, dizendo que daqui a quatro meses eles voltarão à normalidade, do ponto de vista da força de trabalho, isso é um desastre completo. É o pior dos mundos. Você vai para casa sem nenhum tipo de renda. É uma armadilha”, avaliou.

No primeiro dia de abril, o presidente publicou uma nova MP (936/20), que possibilitava a redução de jornada e a suspensão do trabalho, além da criação de um ‘Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda’, que prevê um ‘Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda’, que contemplaria em R$ 600 os trabalhadores que se enquadrassem nas prerrogativas da medida. Naquela ocasião, com menos de uma semana de vigência da MP, o secretário especial de Previdência e Trabalho, do Ministério do Trabalho, Bruno Bianco, anunciou em coletiva de imprensa que mais de um milhão de trabalhadores já haviam sido atingidos pela medida. Para a presidente da Anamatra, Noemia Porto, um dos principais impactos dessas decisões foi o enfraquecimento dos acordos coletivos. Segundo ela, negociação pressupõe condições iguais de debate e isso é inexiste em uma relação entre empregador e empregado. “As medidas provisórias que incorporam dispositivos com clara controvérsia constitucional, tendem a gerar muita insegurança jurídica, como na tentativa de eliminar ou enfraquecer a autonomia negocial coletiva e a atuação sindical, tal como ocorre tanto com a MP 927 quanto com a MP 936”, avalia.

Um pouco antes dessas medidas, ainda em março, o ministro da Economia Paulo Guedes anunciou três iniciativas como forma de proteção dos trabalhadores durante a pandemia: depósito de três meses do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), antecipação do 13º salário dos aposentados e um aumento de um milhão de beneficiados do programa Bolsa Família. Mas nenhuma delas atingia os informais. Naquele momento, começou a pressão por um auxílio emergencial que pudesse abarcar aqueles que não tinham contratos de trabalho, microempreendedores e pequenas e médias empresas. Clamava-se para um olhar sobre a parcela que representa  41,1% dos trabalhadores do país. Como resposta, Guedes anunciou um auxílio emergencial de R$ 200. O benefício foi votado no Congresso, que o reajustou para R$ 600. Passado quase um mês da aprovação deste auxílio, o valor em espécia passou a ser pago somente nesta semana (27 de abril) e será gradual, de acordo com o mês do nascimento do beneficiário. O depósito em conta já havia sido iniciado há cerca de uma semana.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Souto Maior, em artigo publicado na última semana, o que se deve questionar é o que foi feito historicamente para que tantas pessoas estejam hoje nessa situação. “A pandemia da Covid-19 trouxe complicações econômicas emergenciais graves, mas, em outros aspectos, apenas acelerou processos de deterioração social, política, econômica e até humana que estavam disseminados em nossa realidade e que muitos se recusavam a ver. Assim, se, por um lado, a pandemia representa, em si, um grave problema, que nos desafia de forma emergencial, por outro, nos obriga a visualizar a realidade em que vivíamos, para que possamos buscar soluções que projetem para um futuro bem diverso da normalidade do passado”, defendeu.

Em entrevista ao Portal EPSJV, o professor informa que para compreender a situação que estamos vivendo hoje deveríamos dar mais passos atrás, revisitando uma trajetória histórica de ataque aos direitos. “O projeto constitucional corrige distorções históricas de direitos, mas não conseguimos levar a cabo o texto constitucional. Esvaziamos o que estava escrito ali. Flexibilizamos o direito de greve, permitimos formas precárias de contratação, estávamos com índices de acidentes de trabalho elevados, flexibilizamos a fiscalização do trabalho, deixamos reinar a preconização do legislado pelo negociado”, enumera.

Para Souto Maior, o conjunto de iniciativas apresentadas até agora por parte do governo federal vai na contramão do que outros países estão fazendo para garantir condições de trabalho, de emprego e renda, e, consequentemente, redução de um efeito econômico mais acentuado. “As MPs pioram as condições de vida de todos os trabalhadores, porque permitem a redução de jornada e salário, o que resulta em menor poder de consumo, que afeta diretamente os pequenos e médios empregadores. O que deveríamos estar pensando como solução é redistribuir riqueza e não bancar parte dos salários de grandes empresas como preconiza a MP 936”, indica.

Para além da pandemia

Mesmo diante desse contexto, no dia 15 de abril, a Câmara dos Deputados votou  e aprovou a MP 905, que institui a Carteira Verde e Amarela por por 313 votos contra 21. Assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, em novembro, a proposta é direcionada a trabalhadores de 18 a 29 anos e acima de 55 anos em postos que recebam até 1,5 salário. Entre as modificações, a proposta isenta o empregador de pagar a parcela patronal da previdência, reduz a alíquota de FGTS de 8% para 2% e em caso de demissão sem justa causa a multa cai de 40% para 20%, além de excluir o pagamento de hora extra e a exclusão da vedação de trabalho aos domingos. A matéria seguiu para o Senado, que no dia 17 de abril decidiu não votá-la, fazendo com que a MP perdesse a validade. Mas o governo anunciou que apresentará nova proposta com teor semelhante.

Souto Maior afirma que, em síntese, esse projeto defende que as pessoas trabalhem sem direitos. “É deixar as pessoas se orientarem pelo ajuste de vontade sem nenhum parâmetro. É uma espécie de regime paralelo ao Estado”, avalia e completa analisando sobre o quanto isso impacta todos os trabalhadores: “A inserção desse grupo de pessoas [18 a 29 anos e acima dos 55 anos] em patamares de direitos baixíssimos rebaixa todos os demais trabalhadores. Porque, a partir da dita negociação, teremos um cenário em que o patrão chegará exigindo o aceite dessas condições ou [o empregado] será trocado por novos contratos com pessoas que se enquadrem na regra. “Ou seja, essa MP terá como resultado final a eliminação de todos os direitos trabalhistas. Se ela for aprovada, não discutiremos mais isso, teremos que passar a refletir sobre como viver na barbárie”.

Desde 2017, a aprovação da lei das terceirizações (Nº 13.429/17) e as reformas trabalhista (13.467/17) e da previdência (EC 103/19) foram cruciais para chegarmos ao número de informalidade e trabalho precário que se encontra hoje, avalia o professor da Universidade Estadual de Campinhas (Unicamp) Ricardo Antunes. Para o sociólogo, a regulamentação da terceirização foi a porta de entrada da informalidade, que se aprofundou com a reforma trabalhista. “O traço mais brutal foi criar o trabalho intermitente e dizer que ele é legal. É a legalização da ilegalidade. Num contexto como esse, em que bares, restaurantes, hotelaria estão fechando, o intermitente é considerado regulamentado, mas não tem garantia de nada”,  denuncia.

Olhar para frente

Souto Maior afirma que estamos em um momento essencial de refletirmos sobre o trabalho. Para ele, neste contexto de pandamia, está claro para a sociedade que o trabalho provém de uma atividade humana e são as pessoas que geram a riqueza. “Precisamos ter uma consciência coletiva de que somos trabalhadores, romper com a ilusão de que microempreendedor não é também explorado pela mesma lógica das grandes empresas. Romper de vez com esse desmonte das condições políticas, humanas e jurídicas. Ela nunca foi para garantir emprego e renda. Ele faz parte de um projeto neoliberal de retirada de direitos”, aponta.