Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Gestão pública, lógica privada

Simpósio sobre os desafios da gestão pública divide opiniões e sofre forte reação da plateia.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 04/10/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Parcerias público-privadas, Organizações Sociais (OSs), Organizações de Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), Regime Jurídico Único (RJU) e terceirizações. Esses foram alguns dos pontos debatidos no simpósio ‘Desafios da Gestão Pública', que fez parte da programação do dia 2 de outubro do 2º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A mesa foi composta pelo professor da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alcides Silva de Miranda, o presidente da Fundação Perseu Abramo e professor da Unicamp, Marcio Pochmann, o consultor de gestão, Luiz Arnaldo Pereira da Cunha Junior, e o secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Helvécio Miranda Magalhães.

De acordo com Alcides Miranda, da UFRGS, atualmente, a área de saúde apresenta cerca de 300 empresas públicas e organizações sociais, sendo 405 estabelecimentos de saúde sob este tipo de gestão, que, desde 2005, recebeu um incremento que chega a 300% de aumento. Os municípios de Natal (RN) e de Rio Negrinho (SC) são os que mais concentram empresas públicas, sendo 25 e 22, respectivamente. Além disso, o professor denunciou que há 29 secretarias municipais cadastradas como empresa pública e seis secretarias que têm cadastro de OSs. "Esses tipos de contratos entre empresa pública e a área de saúde mostram uma tendência muito clara da gestão pública. Hoje estamos baseados em contratos que indicam quais são os procedimentos a ser seguidos, desconsiderando as complexidades e o que é gestão. Esta é uma política do puxadinho, que cria programas específicos, que até garantem avanços pontuais, mas não há mudanças conjunturais estruturantes", explicou o professor. Para ele, outra questão emergente é a questão da denúncia da governabilidade do clientelismo. "Devemos superar a política de bastidores, da política pequena, dar um basta a econocracia e gestão subalterna", indica.

Marcio Pochmann, da Unicamp, começou sua participação lembrando os tempos de estudante, quando o curso de graduação fazia a distinção entre a gestão pública e a privada, o que já não existe mais. Para ele, isso é sinal dos tempos atuais. Pochmann analisa ainda que existem dois males centrais: as publicações de gestão que só apresentam as análises do passado e não indicam caminhos e o predomínio da visão pós-moderna. "A sensação que se tem é que estamos dirigindo um automóvel olhando pelo retrovisor. Quais são os temas futuros? Isso sinaliza o abandono do planejamento. Nunca fomos um país de forte planejamento, mas agora temos uma ausência, o que dificulta o diálogo do presente com o futuro", reflete. Para Pochmann, o conhecimento também tem se apresentado de maneira fragmentada, com um número cada vez maior de especialistas e que não articulam com um conhecimento mais geral. "Administrar o Estado é uma enorme complexidade e hoje temos especialistas dentro dessas complexidades que não se articulam. Vemos isso, principalmente, nas políticas sociais", disse e completou: "Na área econômica parece que isso está mais resolvido. Conseguimos ver análises nos jornais se a economia está boa ou ruim, baseada nas metas estabelecidas. Na área social os governos não têm coordenadores, não têm metas para serem acompanhadas, não temos analistas. O que aparece nos jornais são as tragédias. Temos tido avanços significativos, mas estamos ignorantes", indicou.

A participação de Helvécio foi a de ilustrar os desafios da gestão pública para os quais ele aponta como pensar uma reforma do SUS, aumentar os recursos humanos e pensar na regionalização. Para o primeiro item que aponta, o secretário de saúde informa sobre o papel do médico diante desta realidade. "Existem muitas forças que pressionam. A indústria farmacêutica é uma delas, que pressiona o médico para prescrever seus remédios. Há uma forte pressão nessa micropolítica. Portanto, precisamos conquistar o coração e mentes dessas pessoas para o SUS", informa.

Luiz Arnaldo, consultor de gestão e ex-gestor da Funai, foi o que apresentou a polêmica da mesa e foi recebido com reações contrárias dos congressistas. A explanação de Luiz foi detalhando as diferentes tipologias e instrumentos de gestão na esfera federal como a administração direta, o órgão autônomo, autarquia, fundações estatais, empresas estatais, entidades de colaboração e parcerias público-privadas. "Os modelos são insuficientes para a realidade e burlam a Constituição. Ele lembra ainda que proibir determinar modelos não resolve o problema. Ainda não temos um consenso, mas a paciência da sociedade está acabando", defende.

Luiz pontuou de maneira cronológica como esses modelos de gestão foram surgindo após a Constituição de 1988: em 1991, foi criada Associação das Pioneiras Sociais (APS), que gere o Sarah Kubitschek; em 1994, a Fundação de Apoio Federal; em 1998, as organizações sociais; em 1999, as Oscips; em 2004, a Hemobras; em 2005, o Consórcio público; em 2007, as Fundações Estatais na Bahia, Sergipe e Rio de Janeiro; em 2007, o serviço social autônomo; em 2009, a Entidade Beneficente de Saúde; em 2011, a Ebserh; e, em 2012, o Novo Inca e a Companhia Brasileira de Biotecnologia, em Biomanguinhos. "Dentro deste contexto, existe um estudo do Banco Mundial, USP e Fiocruz que mostra que a performance do privado foi superior a do público", disse o professor que foi vaiado por muitos congressistas.

Além disso, o professor contestou o concurso público, a Lei 8.666, a qual defendeu que a Constituição já dá as regras de contratação e a estabilidade do trabalhador. "Existem certas profissões que precisam de estabilidade, como o policial, mas nem todo mundo precisa ser servidor público. Na Funai, contratamos uma pessoa que se chama de mateiro, que precisa roçar os lugares para conseguirmos chegar a comunidades distantes. Esse cara precisa ser RJU?", indagou o professor que recebeu como resposta mais uma vez um coro de vaias.

Desafios estratégicos

Para o professor Alcides, é preciso discutir uma nova institucionalidade pública para o SUS. "Não dá pra ser apenas pelo viés normativo ou regulatório, mas, por uma forma consorciativa, sei que vou ser alvo de pedrada, mas o que está aí é muito ruim. Devemos discutir uma forma de autarquia, carreiras de Estado, ou seja, uma discussão ampliada onde possamos englobar a dialética de gerir, gerar e girar o SUS", indica e acrescenta: "Existem alternativas para essa gestão que é uma radicalização de democracia institucional com caráter participativo", explicou.

‘São três os fenômenos que contribuem para a reorganização das políticas públicas: transição organizacional; mudar a lógica de funcionamento do capitalismo organizado em grandes empresas e o Estado como gestor destas organizações e a alteração do modo de produção de riqueza', informou Marcio Pochmann. O professor da Unicamp afirmou ainda que a lógica das cidades atualmente tem seguido a lógica das grandes corporações. "Recentemente, uma corporação declarou que tem 30 deputados. Hoje, 500 empresas dominam todas as atividades econômicas do país, e temos casos ainda mais extremos como o de pneus e medicamentos", informou.

Sociedade do conhecimento

Márcio Pochmann refletiu sobre os trabalhadores e sua produção, o que atribui a uma tendência do trabalho imaterial. "O que conhecíamos era a produção de coisas concretas, agora estamos transitando para um trabalho imaterial, e este é portátil. Os trabalhadores dormem pensando no trabalho, levam para casa, estendem ao fim de semana. O maior controle do trabalho por parte das empresas vem acompanhado da alienação", analisa.

Mas analisando por um viés ‘menos pessimista', o conhecimento gerado dentro desta perspectiva é da cooperação e não o da competição. "Estamos vivendo um padrão civilizatório maior. Quando eu dou uma caneta, eu a perco, mas quando eu compartilho conhecimento, continuo com ele", pondera e acrescenta: "O conhecimento hoje é o ativo da sociedade. O ensino superior passa a ser o piso e não o teto. É uma sociedade que deve reconhecer que o aprendizado é para vida toda e abandonar o medo e o isolacionismo, reconhecendo isso podemos fazer um processo de mudança mais profundo".