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Greves de trabalhadores da saúde expõem impactos do neoliberalismo em sistemas universais

Passada a pandemia de Covid-19, profissionais de saúde do Reino Unido e Espanha se mobilizam por melhores condições de trabalho e aumento salarial
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 30/06/2023 13h31 - Atualizado em 30/06/2023 13h47
Foto: Vladimir Fedotov / Unplash

Uma das greves mais extensas da Saúde em Madri, capital da Espanha, durou cerca de três meses e ainda gera ações esporádicas. Já na Inglaterra, houve a maior mobilização vista em 75 anos do sistema de saúde do Reino Unido. O que acontece com os sistemas universais de saúde que inspiraram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e continuam sendo um dos modelos mais bem-sucedidos do mundo? Nesta reportagem, profissionais do setor e especialistas em sistemas de saúde descrevem as mudanças ocorridas recentemente e os impactos das políticas de austeridade no Sistema Nacional de Salud (SNS) espanhol e no National Health
Service (NHS) britânico.

A demanda de trabalhadores por aumento do salário não é nova, mas a pandemia colocou um freio nas mobilizações. A crise sanitária seguida da guerra entre Rússia e Ucrânia, que forçou o aumento do preço do gás na Europa e, consequentemente da energia, levou a uma situação pouco vivida nos países do ocidente europeu: a inflação. O aumento dos preços sem o aumento dos salários motivou a paralisação de diversas categorias, não apenas da saúde. Em março de 2023, a inflação no Reino Unido ultrapassou 10%, um cenário que há décadas não se via. Situação semelhante à vivida pela Espanha, que desde 1990 não tinha uma variação de preços superior a 5%, como se viu nos últimos três anos.

Em paralelo ao aumento do custo de vida, Espanha e Reino Unido, que possuem os sistemas de saúde mais bem avaliados, com acesso universal, têm promovido reformas que aumentam a participação privada na sua gestão e precarizam contratos de trabalho. “Eu não acho que as condições de trabalho aqui sejam ruins, mas quem trabalha aqui há mais tempo diz que as condições já foram melhores”, diz a auxiliar de enfermagem Adriana*, brasileira que se mudou para a Inglaterra durante a pandemia.

O primeiro anúncio de paralisação foi feito em novembro de 2022 pelo Royal College of Nursing (RCN), o principal sindicato da categoria, e agendada para os dias 15 e 20 de dezembro. Adriana explica que a principal categoria com adesão à greve foi a das enfermeiras, por terem maior proteção sindical, embora não tenha se limitado à categoria. As mobilizações cresceram ao longo dos meses diante da falta de abertura do governo à negociação. Os profissionais de enfermagem reivindicam reajuste salarial de 20% para recompor as perdas com a inflação desde 2010. O grande salto foi em 2022, quando o aumento médio de preços foi de 10%. Em 11 de abril de 2023, os médicos decidiram também entrar em greve pedindo reajuste. A greve dos profissionais de saúde no Reino Unido era distribuída em períodos de algumas horas ou mais longas, como 24 ou 48 horas. Em junho as paralisações foram encerradas, após os trabalhadores aceitarem o reajuste de 5% proposto pelo governo. “Com o aumento da inflação, diversas categorias entraram em greve. Os primeiros foram os trabalhadores do transporte e a eles seguiram vários outros. Como as paralisações, muitas vezes, são feitas apenas por algumas horas do dia, os sindicatos e jornais divulgam o calendário por hora das atividades que estariam interrompidas no país”, explica Jonathan Filipon, professor na Queen Mary University of London.

A professora de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Amanda Xavier, comenta que, em comparação com o cenário brasileiro, o SNS espanhol conta com uma “expressiva” presença de profissionais estatutários de carreiras, “apesar dos progressivos ataques desde a década de 1990 e em especial a partir de 2010”. A capital espanhola tem sido a principal região em que o Estado realiza parcerias com o setor privado.

Amyt/Divulgação“Quando não se acredita na atenção primária forte como base do sistema sanitário, não se investe nele. Então, a comunidade de Madri tem os piores investimentos na atenção primária. É a comunidade com menos enfermeiros de atenção primária por habitante e a segunda com menos médicos por habitante. Há muitos anos estão tentando privatizar parte desse sistema, então, os profissionais se mobilizaram para evitar isso”, diz a enfermeira Alda Recas, que trabalha na Espanha. Já Amanda lembra que apesar da capital estar no foco, não é a única região de mobilizações, que também ocorrem em Cantábria, Navarra, Aragón, País Basco e Andaluzia.
“O que se observa é que essas mobilizações de profissionais de saúde, sindicatos e usuários da saúde seguem ainda os passos das ‘Mareas Blancas’ de 2012”, diz a professora em referência às grandes mobilizações ocorridas naquele ano contrárias a um pacote de medidas que buscava reduzir os investimentos públicos em saúde e que conseguiram barrar em parte essas medidas. Entre o final de 2022 e o começo de 2023 a multidão voltou às ruas. Após três meses de greve e manifestações aos finais de semana que levaram às ruas mais de 250 mil pessoas em Madri, os médicos de saúde da família conquistaram algumas melhorias, como o aumento salarial de 450 euros e a promessa de que o número de pacientes por dia será reduzido. As condições de trabalho da capital espanhola têm motivado os trabalhadores a buscarem oportunidades em outras regiões. Cerca de 70% dos 218 médicos residentes na capital pretendem deixar a região após a conclusão do estágio, informou reportagem do jornal El País, publicada em 14 de março de 2023.

No entanto, outras demandas continuam e não apenas para os médicos. Enquanto na maioria do país a jornada é de 35 horas semanais, as equipes de saúde madrilenhas trabalham 37,5 horas e têm salários mais baixos, embora o custo de vida seja mais elevado. “Os médicos deixam o sistema público porque ganham mais no setor privado, o que não é o caso das enfermeiras, então, o caminho acaba sendo se dedicar a outras coisas ou mudar para comunidades vizinhas, em que as condições de trabalho são melhores. As técnicas de enfermagem têm um salário mais baixo, então, quando decidem sair, migram para outros setores”, conta Recas.
Adriana comenta que algo similar acontece no Reino Unido. “Sem o reajuste, o salário é considerado baixo. Atender em um bar rende o mesmo que trabalhar como auxiliar no hospital. Então, muitos dos meus colegas trocaram o trabalho por opções menos estressantes e está difícil chamar mais pessoas. Com isso, cumprimos o turno sempre com falta de pessoal e as condições de trabalho ficam mais estressantes”, diz.

“Penso que os casos espanhol e inglês nos mostram os efeitos perversos da precarização do trabalho. Há reivindicações, com apoio da sociedade, de melhores condições de trabalho e de produzir o processo de cuidado”, diz Adelyne Pereira, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).
Ainda assim, os pesquisadores ouvidos pela reportagem registram que é difícil fazer paralelos desses sistemas com o brasileiro. As condições de trabalho continuam sendo bastante diferentes, com melhores salários, maior garantia de direitos e jornadas menos extensas na Europa. Do lado dos usuários, a estrutura da atenção pública e gratuita também é bastante diferente, com um maior número de profissionais contratados, proporcionalmente à população, e filas reduzidas. O nível de privatização também é distinto. A professora da Ensp explica que, enquanto no Brasil a terceirização ocorre em todos os níveis, em especial, com a existência de Organizações Sociais, esse modelo ainda é pouco comum no SNS e no NHS. A principal questão, no caso da Espanha e Inglaterra, é a mudança na forma de gestão por parte dos Estados nacionais, piorando as condições de trabalho.

Contratos precários
Os cortes orçamentários promovidos desde a crise de 2008 na Espanha trouxeram consequências para o cuidado durante a pandemia de Covid-19. Adelyne integrou um estudo em que foi avaliada a capacidade de resposta de sistemas de saúde de alguns países durante a pandemia de Covid-19. “Verificamos uma resiliência muito baixa do sistema de saúde espanhol, entre outras coisas, em função da precariedade da disponibilização dos profissionais no território dos trabalhadores”, disse. Ela acrescenta que a expectativa era de que as dificuldades enfrentadas e a sobrecarga de trabalho influenciassem em uma expansão do sistema, o retorno dos concursos públicos e contratos de mais longo prazo, mas, segundo ela, o que se viu foi o oposto. “Com o arrefecimento da pandemia, muitos trabalhadores temporários simplesmente tiveram seus contratos interrompidos e muitos leitos que foram abertos naquele momento foram fechados”, diz. Ainda assim, pondera Alessandra, “em comparação com o cenário brasileiro, podemos dizer que o sistema público de saúde espanhol ainda conta com uma expressiva presença de profissionais concursados”.
No Reino Unido, os trabalhadores de saúde que estão fora da cobertura de direitos são aqueles que trabalham na copa, na limpeza e os maqueiros, que são terceirizados. Enquanto auxiliares de enfermagem e enfermeiros são contratados diretamente pelo NHS, os profissionais terceirizados não têm qualquer cobertura caso não compareçam ao trabalho, uma situação que os colocava em uma posição delicada durante a pandemia. Embora tivessem testes de Covid disponíveis sem restrições, testar positivo significava ficar de 15 dias em casa sem receber. “Os terceirizados recebem um auxílio irrisório caso precisem se ausentar por doença”, conta Adriana.

Além das condições precárias de vínculo de alguns trabalhadores, no Reino Unido também há falta de profissionais. Anteriormente, o governo custeava bolsas de ensino para a realização do curso de graduação em Enfermagem, mas o programa de incentivo à formação foi encerrado há cerca de uma década. “Isso tem um efeito muito grande, porque já havia uma defasagem na formação de profissionais de Enfermagem e ainda há uma escolha política de não financiar a formação de enfermeiros. E eu diria que um dos principais problemas do NHS hoje é a falta de profissionais, não apenas enfermeiros”, diz Jonathan. Parte da necessidade de mão de obra é suprimida com a chegada de profissionais de saúde vindos, especialmente, da Índia e Filipinas, onde há, inclusive, recrutamento desses profissionais. Trabalhadores de outros países europeus também são atraídos, ainda que esse ritmo tenha desacelerado com o Brexit, que levou à saída do Reino Unido da União Europeia (UE), o que facilitava a circulação de pessoas entre os países da região. No artigo “O Reino Unido diante da Covid-19: hesitação política e capacidade de resposta de um sistema de saúde universal”, publicado no livro Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições (Fiocruz, 2022), a professora da Unigranrio Suelen de Oliveira e a consultora em saúde pública Lucia Queiroz atribuem à saída da UE a maior necessidade de gastos adicionais do Estado e a dificuldade na chegada de equipamentos para o NHS. “Esse processo político produziu consequências econômicas para o sistema de saúde, exacerbando uma situação resultante de políticas de contenção dos gastos setoriais e de austeridade fiscal que vinham sendo adotadas no país”, escrevem.

Respostas do sistema à pandemia
Apesar de serem sistemas exemplares, Adelyne defende no artigo “As respostas dos países à pandemia em perspectiva comparada: semelhanças, diferenças, condicionantes e lições”, publicado no mesmo livro do artigo anterior, que o sistema de saúde da Alemanha, que também é universal, fez a melhor gestão da pandemia. “A Alemanha se distinguiu pela resposta mais ágil e forte coordenação nacional das ações de enfrentamento, que articularam medidas econômicas, sociais e investimentos substantivos no sistema de saúde. Na Espanha, a coordenação nacional também foi elemento importante, apesar de terem ocorrido falhas no sistema de detecção e resposta inicial à Covid-19. Esse atraso na resposta foi ainda mais contundente no Reino Unido, em razão da postura inicialmente negacionista do primeiro-ministro que, posteriormente, reviu sua posição e passou a sustentar medidas mais firmes de controle”, escreve com os também pesquisadores da Ensp/Fiocruz Cristiani Machado e Carlos Freitas.

Para os pesquisadores, a existência de um instituto federal na Alemanha, o Instituto Robert Koch, que trabalhou em articulação com os sistemas de vigilância em saúde, foram fundamentais para essa boa resposta do sistema. Os pesquisadores não deixam de considerar a força da economia alemã para realizar os investimentos, mas ressaltam que os investimentos em ciência e tecnologia aliados à capacidade de coordenação do governo alemão foram fundamentais. Essa coordenação nacional que ocorreu na Alemanha, não foi a posição inicial do então primeiro-ministro britânico Boris Johson, que mudou de posição após ser internado por Covid-19. “Apesar da experiência prévia [do Reino Unido] na condução e no controle de situações de emergências sanitárias internas e em outros países, a atitude governamental [do então primeiro-ministro Boris Johnson] foi a de não decretar medidas de lockdown e interromper estratégias adotadas para o processo de testagem dos casos nas primeiras semanas da pandemia, em contraponto ao que fizeram outros países europeus”, registram no artigo.

No caso da Espanha, apesar da coordenação central ter tomado as providências necessárias desde os primeiros sinais de pandemia, a falta de profissionais de saúde e de investimento em ciência e tecnologia para a produção de insumos dificultaram a resposta do sistema, em especial na primeira onda da doença. E, embora a Espanha tenha se destacado na abertura de leitos durante o período inicial da Covid-19, com uma ampliação de 75%, muitos deles já foram fechados, ao contrário da expectativa dos autores.

Mudanças na Espanha
Para falar dos processos de transformação do SNS espanhol ao longo de pouco mais de uma década, Adelyne diz que é preciso pensar em outros níveis de privatização que não necessariamente passem pela venda de um órgão público para a iniciativa privada. Na Espanha, a forma mais comum de privatização do serviço público na média e alta complexidade é a terceirização de hospitais, com repasse de dinheiro às empresas que fazem a gestão da unidade, mas com a coordenação do Estado. O mesmo não aconteceu com a atenção primária. No entanto, o próprio sistema autoriza a contratação de profissionais de forma temporária.
“Observa-se, por um lado, a diminuição do quantitativo de profissionais concursados estatutários por razões de aposentadoria e, por outro, a ampliação da terceirização e dos vínculos temporários, embora não na mesma medida do que ocorre no Brasil”, diz AmandaXavier, que produziu uma tese doutorado em que comparou o trabalho das enfermeiras no Brasil e na Espanha. Ela complementa dizendo que as empresas que terceirizam a força de trabalho ainda não possuem uma expressividade tão grande quanto a que observamos no município do Rio de Janeiro, por exemplo, embora sejam uma realidade não apenas em Madri, mas em outras cidades espanholas. Por consequência, os planos de saúde privada também crescem na Espanha. Um processo que se iniciou no final da primeira década dos anos 2000 e se acentuou com a eleição de Mariano Rajoy, do Partido Popular, para a presidência do país.

Sobre as mudanças na Atenção Primária espanhola, Amanda comenta que houve fechamento dos centros de saúde, o que acarretou a sobrecarga de atendimentos por unidade de saúde. Diminuição que foi demandada nas manifestações mais recentes, o que levou ao aumento do tempo de espera para marcação de consultas, que vai de dois até 30 dias. Na Espanha, a equipe da APS, formada por um profissional da medicina e outro de enfermagem, fica responsável por 1.600 habitantes. No Brasil, conta Amanda, esse número é de quatro mil. No entanto, diferente da Espanha e mesmo do Reino Unido, há uma diferença na forma de organização da APS no Brasil, com a participação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e uma maior preocupação com os determinantes sociais da saúde. Essa configuração específica, segundo Adelyne Pereira, é um ponto positivo e inspirador do SUS em relação aos outros sistemas. “Na Europa, a atenção primária recebe outro enfoque, muito menos comunitário e territorial. Essas características não são consideradas prioritárias, nem no sistema espanhol nem no inglês, e é algo que eles consideram como fragilidade do sistema, embora tenham ampla cobertura como porta de entrada para os outros níveis de atenção”, avalia.

Sem o enfoque territorial, algumas mudanças dentro da atenção primária espanhola foram vistas inicialmente como positivas, conta a professora da Ensp. Em especial, a liberdade para escolher o centro de saúde em que se é atendido por conta dos profissionais que lá atuam. O número de centros de saúde construídos nas décadas anteriores foi determinado para respeitar a taxa ideal de profissionais por habitante. Com o pretexto de aumentar a liberdade de escolha de profissionais, algumas comunidades aglutinaram alguns centros da região. “Isso foi visto por algumas pessoas como algo positivo. ‘Ai que legal, agora eu vou ter a liberdade de ir em outro centro de saúde, não gostava desse mesmo, que era perto da minha casa’”, ilustra, e acrescenta que, na sequência dessas medidas, houve um aumento do tempo de espera e profissionais sobrecarregados. A mudança de percepção pôde ser vista nas ruas, em parte pela força de articulação dos profissionais da saúde e sindicatos. “Eles estão articulados a ‘plataformas vecinales’ (associações de moradores), considerando importante a proximidade e o diálogo nos centros locais de saúde, e impulsionam fortes mobilizações em defesa do direito à saúde pública universal”, diz a professora da Uerj.

Mesmo com a cobertura ampla, a professora da Ensp lembra que os sistemas de saúde universais têm filas e que elas também servem como organizadores do sistema e suas demandas. Dizer o que seria razoável ou não no caso espanhol pode ser delicado, mas Adelyne sugere um mês a 60 dias para uma consulta com especialista ou para uma cirurgia eletiva. Por outro lado, ela considera a população espanhola bastante sensível às variações na qualidade do atendimento. “Quando a fila aumenta, essa população vai para as ruas e isso mostra a base social que sustenta esse sistema de saúde”, avalia. Dados do Ministério da Saúde espanhol informam que, em 2022, cerca de 790 mil habitantes esperavam por uma operação, 22% aguardavam há seis meses.

Em outra forma de mobilização pelo sistema de saúde pública de Madri, os profissionais da área decidiram realizar uma consulta à população local no final de abril de 2023. A votação contou com mais de 10 mil voluntários e se espalhou por 58 municípios da província. Com a participação de cerca de 300 mil pessoas, que em quase sua totalidade disseram “sim” para a seguinte pergunta: “Você concorda em exigir do Governo da Comunidade de Madrid, como tarefa prioritária, o financiamento necessário para permitir o aumento de profissionais e meios necessários para o funcionamento dos Centros de Saúde de Atenção Primária, Serviços de Urgências Urbanos, Serviços de Urgência de Atenção Rural, hospitais públicos para recuperar uma saúde pública 100% pública e universal?”. Para a enfermeira Alda Recas, além de uma demonstração de apoio, a ideia de realizar a consulta é um pedido para que o governo reconheça sua fragilidade em fazer a gestão da saúde pública. 

A criação do SNS espanhol tem algumas similaridades com o sistema brasileiro. Ele foi instituído em 1986, como consequência da democratização do país, após o fim da ditadura de Francisco Franco (1939-1975). “A Espanha viveu seu período de reforma sanitária entre o final da década de 1970 e o começo de 1980. Apesar do período comum e legislações bastante próximas, precisamos destacar que a estrutura do sistema já estava bem mais avançada do que o caso brasileiro”, compara Adelyne. Ao lado dessas diferenças de estrutura, ela acrescenta que a implementação do SUS no Brasil começou em um cenário bastante restrito em relação à disposição do governo para realizar investimentos no sistema.

Projeções para o NHS
Steven Baker/RCN/DivulgaçãoAssim como o sistema espanhol, o sistema de saúde do Reino Unido tem passado por mudanças ao longo das décadas mais recentes. Criado em 1948, o sistema britânico, assim como o sistema espanhol, sofreu importantes mudanças a partir de 2012, com a nova legislação chamada de Health and Social Care Act. “Apesar da manutenção do financiamento público fiscal, internamente o sistema passou por extenso processo de reformas que podem afetar o direito universal à saúde. Mediados pela nova legislação parlamentar, processos anteriormente incipientes de fragmentação organizacional da atenção à saúde nas áreas administrativas, institucionais e, fundamentalmente, nas relações financeiras do gasto público, foram radicalizados, multiplicando-se agentes intermediários entre compradores e prestadores de serviços”, escrevem Jonathan Filipon, Ligia Giovanella (Ensp/Fiocruz), Mariana Konder (Uerj), Allyson Pollock (Queen Mary University of London) no artigo “A ‘liberalização’ do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra: trajetória e riscos para o direito à saúde”, publicado em 2016.

Como usuária desse sistema, Adriana conta que teve uma excelente experiência. Mesmo antes de ter sua documentação de imigrante oficializada, ela precisou do NHS, pôde contar com um tradutor de inglês para português em sua consulta e recebeu os remédios necessários. No entanto, ela se preocupa com o futuro do sistema. “Meu receio é que com o tempo eles passem a cobrar taxas anuais daqueles que tenham mais recursos e que sejam criadas hierarquias para atendimento”, conta.

Apesar do processo de “liberalização” descrito por Jonathan e demais pesquisadores no artigo, o professor não acredita que a projeção de Adriana se torne realidade tão cedo e percebe que essa não é uma preocupação dos britânicos. “Isso é uma coisa interessante. A imensa maioria da população já nasceu com a existência do sistema como ele é, então, eles não conseguem dimensionar a gravidade do que é uma população dependente de um sistema que limita o acesso mediante pagamento. A população não tem noção do que é não ter um sistema de saúde de acesso gratuito”, reflete ele, em entrevista à revista Poli.

As transformações que ganharam força em 2012 não foram exatamente novas. Com a chegada de Margareth Thatcher ao cargo de primeira-ministra britânica, em 1979, o NHS ganhou uma nova cultura de gerenciamento, dizem os pesquisadores, no mesmo artigo de 2016. É a partir daí que o modelo organizacional marcado pela liderança dos profissionais de saúde e por evidências epidemiológicas dá lugar a um ambiente corporativo e o processo de terceirização se inicia. “As atividades clínicas dos hospitais foram preservadas, mas grande parte das atividades de apoio para o funcionamento dos serviços foi terceirizada, como limpeza, lavanderia, nutrição e manutenção em geral. Houve ainda uma estratégia de redução da cobertura de serviços, com a implantação de cobranças de taxas para serviços de optometria, que antes eram gratuitos, aumento das taxas cobradas para serviços dentários e fechamento da maioria dos leitos de longa permanência existentes no NHS”, escrevem.

Os hospitais também puderam se transformar em “Trusts”, organizações semi-independentes, sem fins lucrativos, mas com liberdade para estabelecer remuneração, composição de profissionais e serviços oferecidos. Com isso, o governo estimulava a competição entre os prestadores e diminuía seu dever de oferecer saúde como um direito. “Uma forma de resistência às reformas de mercado foi o acordo tácito de algumas organizações de não competirem entre si, resistindo às reformas que se apresentaram principalmente na primeira década dos anos 2000”, diz o artigo.

Após a promulgação da legislação de 2012, passou a ser permitido que os hospitais pudessem ter até 49% de suas receitas provenientes de prestação de serviços a pacientes privados e descontinuar serviços que não fossem do interesse do prestador. “O aprofundamento da descentralização administrativa consubstanciado na nova estrutura do NHS pós-reforma de 2012, aliado à renúncia da prévia lógica territorial de planejamento orçamentário, representaram um risco à equidade do sistema de saúde inglês”, diz o texto do artigo. Em entrevista à Poli, o pesquisador completa: “A privatização é sim uma tendência, mas para os próximos 10, 15 anos. Isso ocorre principalmente nesse cenário pós-Brexit, que retira o Reino Unido das regras da União Europeia e há mais liberdade para privatizar”, projeta.