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Integração entre educação e trabalho ainda é desafio nas prisões

Presos precisam escolher entre estudar e trabalhar. Educação profissional integrada ao ensino fundamental é apontada como principal perspectiva.
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 09/07/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Presos precisam escolher entre estudar e trabalhar. Educação profissional integrada ao ensino fundamental é apontada como principal perspectiva.



 



Como garantir que um ex-preso se reintegre à sociedade? Na maioria das vezes, a resposta a essa pergunta é imediata: ele precisa de um emprego, para que possa se sustentar com dignidade e não reincida em atos criminosos. E na própria prisão, como o detento pode se ocupar, ajudar sua família e, ao mesmo tempo, ser produtivo para a sociedade? Novamente, as respostas mais comumente ouvidas apontam para o emprego, através do desenvolvimento de ações de cooperativas profissionais em presídios.



 



Mas a simples oferta de ocupação profissional para presos e ex-presos dá conta de todos os elementos que permeiam uma realidade social complexa, desigual e que contribuiu para a produção da própria criminalidade? Como integrá-la a um projeto mais amplo, que leve em consideração a formação desses sujeitos para vida e não apenas para a reprodução de sua realidade social? São essas as questões, que apareceram em grande parte dos debates travados no ‘Seminário Internacional sobre Educação em Prisões: convergências e perspectivas’, que discutiremos nesta última reportagem da série especial sobre educação em prisões.



 



Para Daniel Augusto, coordenador de educação popular do Instituto Paulo Freire, os debates sobre profissionalização, ressocialização e reinserção de presos e ex-presos precisam levar em conta a formulação de um projeto mais amplo: “Muitas vezes ainda se aponta como o maior sucesso possível o fato de um ex-detento poder sair da prisão com um emprego e um salário mínimo para se sustentar. Mas é preciso pensar na formação da consciência desses sujeitos. O emprego é muito importante, mas não basta que esse indivíduo saia da prisão empregado e com a mesma consciência de seu opressor, ou seja, reproduzindo a realidade social desigual em que está inserido”, ponderou em sua palestra no Seminário.



 



Mas há uma contradição entre a elaboração  de um projeto crítico de educação e a formação profissional, tão necessária aos presos? Não, se trabalho e educação forem pensados de forma integrada, o que ainda é um desafio nas prisões. Foi nesse sentido que Afonso Scocuglia, representante da Cátedra Unesco de Educação de Jovens e Adultos e professor da Universidade Federal da Paraíba, apresentou, em suas contribuições para reflexões pedagógicas sobre educação em prisões, o trabalho como um dos princípios educativos fundamentais para esse contexto.



 



Isso porque, segundo ele, a compreensão do trabalho como um princípio educativo só faz sentido se for baseada no entendimento de que a realidade, construída historicamente pelo ser humano, pode ser por ele apropriada e transformada. Nessa concepção, o trabalho ganha uma dimensão mais profunda, que vai para além do sentido reduzido de emprego ou trabalho assalariado: ele significa justamente essa interação do homem com a natureza para a produção e transformação de sua realidade. Assim, o trabalho passa a ser fundamental na educação porque cumpre um papel na formação da consciência crítica, formando o ser humano como sujeito de sua própria libertação.



 



Diretrizes nacionais e a realidade das prisões



 



As Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, homologadas em maio pelo Ministério da Educação, apontam a integração entre educação e trabalho nos estabelecimentos penais. Segundo o art. 3°, a oferta de educação para jovens e adultos em prisões deve estar associada às ações complementares de cultura, esporte, inclusão digital, educação profissional e outras. O texto diz também que a educação em prisões deve garantir a elevação de escolaridade associada à qualificação profissional. O art. 9°, que trata especificamente da oferta de educação profissional nas prisões, determina que os presos devem ter acesso ao estágio profissional supervisionado concebido como ato educativo, e o artigo 10° estabelece que “as atividades laborais e artístico-culturais deverão ser reconhecidas e valorizadas como elementos formativos integrados à oferta de educação, podendo ser contempladas no projeto político-pedagógico como atividades curriculares, desde que devidamente fundamentadas”.



 



Mas segundo Carlos Teixeira, coordenador da área de educação em prisões da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC), isso ainda está distante da realidade das prisões. “O trabalho nas prisões ainda aparece muitas vezes como a utilização de mão-de-obra barata, para favorecer o empregador - que tem facilidades para contratação, ganha isenção fiscal e outros benefícios. Há, também, uma dicotomia, e mesmo uma ‘competição’, entre educação e trabalho nas prisões: hoje, a redução da pena para quem trabalha é maior do que para quem estuda. A dimensão do trabalho ainda está desvinculada do processo formativo nas prisões e isso precisa ser superado”, avalia.



 



Proeja FIC é principal perspectiva



 



Carlos avalia que, nesse contexto, uma das principais perspectivas é o desenvolvimento do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), sobretudo na formação inicial e continuada com o ensino fundamental (Proeja FIC), já que a maioria dos presos tem o ensino fundamental incompleto: “O Proeja FIC é um parceiro importante para a educação nas prisões. A Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC) está incentivando a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica a entrar nas prisões”.



 



No ano passado, um ofício da Setec à Rede (Ofício Circular nº 40 GAB/SETEC/MEC) convidou formalmente as instituições ao desenvolvimento de iniciativas em Proeja FIC, citando especificamente as ações em prisões. Segundo o documento, essas ações devem ser desenvolvidas em “parceria obrigatória entre instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e estado e/ou município integrante(s) do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), por intermédio de suas secretarias de educação e de segurança pública ou órgão responsável pela administração penitenciária”.



 



Um exemplo apresentado como sucesso da iniciativa é o projeto desenvolvido pelo Instituto Federal Farroupilha (IFF), no Rio Grande do Sul. Greice Girardi, coordenadora do Proeja FIC do campus Alegrete do Instituto, conta que a intenção de oferecimento de educação nas prisões existia desde o desenvolvimento do Proeja FIC: “Sempre pensamos em alguma maneira de dar aulas nos presídios. Quando surgiu o Proeja FIC, a direção do Instituto apontou que não poderíamos esquecer dos presos.  Como o presídio de Alegrete está superlotado e não tem espaço para fazer uma sala de aula, o que é um problema grave e precisa ser enfrentado, desenvolvemos o projeto inicial com uma turma de alunos do regime semi-aberto. Há o curso de informática, no qual os detentos têm aula na escola municipal para a formação básica e no nosso campus para a habilitação profissional, e também o curso de construção civil. Como não temos essa área no IFF, porque o nosso campus é mais voltado para agropecuária e informática, fizemos parceria com uma universidade, a Unipampa, que oferece as aulas da habilitação profissional”, conta.



 



Já em outros campi do IFF, o de Santa Rosa, o projeto envolve presos do regime fechado. “Nosso campus foi inaugurado em janeiro deste ano, e já temos uma parceria com o município e o presídio estadual para o oferecimento de Proeja FIC. O curso na área de microcomputadores ocorre com apenados do regime fechado e já temos projetos para regime semi-aberto” conta Carla Costa, docente de química e coordenadora do Proeja no campus Santa Rosa do IFF. A coordenadora ressalta como ponto positivo do processo a preocupação com a elaboração pedagógica do curso. “Nós temos reuniões semanais entre as instituições para a discussão pedagógica, está acontecendo uma interação muito grande. E em breve teremos a capacitação dos professores e funcionários envolvidos no projeto. Mas ainda há dificuldades: temos que trabalhar com a dinâmica do sistema prisional, o que gera alguns entraves. A redução de pena por estudo, por exemplo, deveria ser ampliada. Há também o atraso no repasse na assistência estudantil aos alunos, o que aumenta a concorrência com o trabalho remunerado nas prisões e acaba causando a evasão dos cursos”, pondera.



 



Mariglei Maraschin, pedagoga do IFF de Alegrete, lembra que as quatro ações previstas para o Projea FIC são fundamentais para o funcionamento do projeto. “Tem sido uma preocupação nossa garantir essas ações, que são a formação continuada de profissionais; a implantação dos cursos; a produção de material pedagógico de orientação e subsídio para os cursos; e o monitoramento, estudo e pesquisa sobre as ações desenvolvidas”, explica. O papel da formação dos profissionais também é destacado por Luiz Aquiles Medeiros, coordenador do Proeja FIC do campus de São Vicente do Sul do IFF. Lá, o Proeja desenvolve um curso no presídio de Jaguari, para detentos do regime fechado. “A primeira parte do nosso projeto foi justamente a ‘formação de formadores’, enquanto os alunos estavam em processo de alfabetização. Os professores destacam a importância desse processo de formação diante do desafio de se fazer um curso profissional integrado ao ensino fundamental e em uma realidade tão específica. Os conteúdos têm sido provocadores, e os professores dizem que isso mudou as aulas em todos os cursos. Ou seja, desafiados por essa situação nova, os professores vêm conseguindo elaborar novos materiais, novos métodos e conteúdos, identificados com a realidade dos alunos – o que sem dúvida aumenta a qualidade da construção do conhecimento”, avalia.



 



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