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Interculturalidade

Formando para o diálogo
Ana Beatriz de Noronha - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

(Matéria publicada na Revista RETS nº 6 )




 Na apresentação do livro ‘Salud e Interculturalidad en América Latina: perspectivas antropológicas' (Ediciones Abya-Yala, 2004), seu organizador, o espanhol Gerardo Fernández Juárez, lembra do desgosto que a auxiliar ayamara do posto de saúde de Qurpa [Bolívia] Cleo Alaru sentia quando algum paciente chegava ao posto, perguntava se o médico estava e, diante de sua resposta de que o médico estava e que iria atendê-lo rapidamente, retrucava enfático: "Não. É melhor eu voltar quando ele não estiver".



A passagem, que parece piada, retrata o mesmo sentimento de desconfiança que levava um grupo de indígenas dos setores quechuas de Cochabamba e Potosí a apredejar o veículo da equipe de um projeto de saúde desenvolvido, em meados dos anos 90, por uma ONG espanhola, em algumas comunidades indígenas bolivianas. O fato, como destaca Juaréz, pode indicar que as populações indígenas, aparentemente envolvidas no projeto, não só não se sentiam aliviadas pela presença daqueles profissionais de saúde, mas profundamente perturbadas e ameaçadas por eles. "Como é possível que projetos de saúde muito bem pensados e dotados financeiramente se choquem com a reação irada daqueles que supostamente seriam seus beneficiários?", pergunta o autor, nos levando a pensar de que forma as questões culturais - em seus mais variados aspectos - podem influenciar diretamente o resultado das ações de saúde.



E se atualmente, num contexto de construção de sistemas universais e equânimes de saúde, já existe um consenso sobre a necessidade de se evitar que a identidade étnica e cultural dos usuários represente uma barreira ao acesso e à oportunidade de uma atenção à saúde de qualidade, a grande questão é: como tornar isso possível?



Interculturalidade: troca de conhecimentos com enriquecimento mútuo



 Para o teólogo, filósofo e antropólogo espanhol naturalizado boliviano Xavier Albó, interculturalidade pode ser definida como qualquer relação entre pessoas ou grupos sociais de diversas culturas. A interculturalidade, segundo ele, pode ser negativa - quando a relação acaba destruindo ou reduzindo o que é culturalmente distinto (etnicídio cultural) ou até mesmo quando há simplesmente a assimilação da cultura dominante pela cultura dominada - ou positiva - quando resulta na aceitação do que é culturalmente distinto e na troca de conhecimentos, com enriquecimento mútuo.



"A simples tolerância do que é culturalmente diferente, sem um verdadeiro intercâmbio enriquecedor, não chega a ser um interculturalidade positiva", enfatiza Albó, no texto ‘Interculturalidade e saúde' (1), completando: "As relações de alteridade são positivas quando os dois pólos - o da própria identidade e o "outro" - se fortalecem, se enriquecem e se transformam mutuamente, sem, no entanto, deixar de ser o que são".



Naturalmente, alerta Albó, para que esses mecanismos funcionem em ambos os sentidos, com alguma forma de mútua reciprocidade, as relações devem estar baseadas numa certa simetria, conseguida, quase sempre, por meio de longos, pacientes e, às vezes, dolorosos processos desenvolvidos nos planos interpessoal, grupal e estrutural.



De acordo com ele, apesar de a raiz fundamental da interculturalidade positiva estar nas relações interpessoais - entre indivíduos isoladamente ou em grupo -, não é possível trabalhar apenas nesse nível. É preciso transformar as instituições e estruturas que constituem o corpo social - sistema educativo, meios de comunicação, sistema judiciário, polícia, igrejas, entre outros, mas principalmente o sistema econômico - para que reflitam e facilitem as relações positivas entre os diversos grupos de pessoas. "Estabelecer relações interculturais positivas", ressalta, "é muito mais fácil quando há culturas distintas mas de igual posição e prestígio social".



Ele lamenta, no entanto, que as relações interculturais assimétricas sejam muito mais comuns no mundo cada vez mais globalizado e injusto. "Dificilmente os que se sentem da cultura dominante aceitam como iguais àqueles que consideram ‘inferiores'. Esses, por sua vez, tendem a subvalorizar sua própria cultura e adotar a cultura dominante apenas para não serem discriminados", constata.



Saúde intercultural: a cultura do paciente no processo de atenção



Se a interculturalidade está presente em quase todos os contextos do mundo moderno, colocando em jogo a boa relação social e a convivência pacífica entre grupos culturais distintos, na área da saúde, ela vai além, com consequências sobre a qualidade de vida e até mesmo sobre a sobrevivência das pessoas doentes.



Em todos os países, guardadas as devidas particularidades, quando os profissionais e as instituições de saúde estão inseridos numa cultura, ou mesmo numa classe social, e seus pacientes e familiares em outra, os bloqueios de comunicação tendem a aumentar.



Uma das dificuldades, talvez a mais perceptível, tem a ver com o desconhecimento da língua do outro, o que geralmente demanda a existência de intérpretes, nem sempre disponíveis ou mesmo confiáveis. O problema, no entanto, não se esgota na questão da linguagem. Ele também se deve, como afirma Xavier Albó, na ignorância ou desprezo, por parte dos profissionais, das crenças e expectativas de seus pacientes em torno do processo saúde-doença, bem como do importante papel que a família e outros membros do grupo podem assumir nesses processos.



Por parte dos pacientes também surgem bloqueios baseados, na maioria das vezes, em suas experiências prévias. Segundo Albó, em muitas comunidades rurais, os profissionais de saúde não permanecem tempo suficiente para estabelecer uma relação de confiança com as pessoas. Por conta disso, quando, por alguma razão, o médico presente determina a remoção de um paciente dessas comunidades para um hospital, a reação do paciente e de seus familiares é muitas vezes negativa por conta dos temores e dúvidas que a situação traz consigo.



Para completar o quadro, existem ainda as dificuldades oriundas da dimensão institucional e da estrutura da sociedade, que quase sempre reforça as desigualdades de sua composição socioeconômica com a persistência de discriminações culturais. Para Xavier Albó as estruturas e o ambiente dos estabelecimentos de saúde têm muito a ver com a aceitação ou recusa por parte de pacientes de outra origem cultural. "Que línguas se escutam? Existe algum lugar adequado para os familiares visitantes, sobretudo quando os pacientes vêm de áreas distantes e não têm amigos ou parentes no local do atendimento? Sempre há uma capela nos hospitais onde um capelão católico ou um pastor evangélico possam acolher seus fiéis, mas será que há algum espaço adequado para que outros especialistas religiosos possam realizar os rituais próprios da cultura ou da religião originárias dos pacientes?", pergunta o pesquisador, que ainda sugere uma política institucional com cotas de trabalhadores de saúde (inclusive médicos) capazes de se comunicar bem com pacientes de diferentes culturas proporcionais ao número de pacientes de cada cultura que utiliza os serviços.



O médico mexicano Roberto Campos Navarro (1), por sua vez, define medicina intercultural como o exercício da prática médica acadêmica (de origem ocidental) com pessoas de uma cultura diferente, na qual se trata de estabelecer um diálogo em busca do consenso. "Em outras palavras, medicina intercultural pode ser definida como a prática e o processo relacional que se estabelece entre os profissionais de saúde e enfermos de culturas distintas, no qual se requer um entendimento recíproco para que os resultados do contato - consulta, intervenção ou aconselhamento, entre outros - sejam satisfatórios para ambas as partes", explica, lembrando que a medicina intercultural se constitui num processo permanente de transações que envolve uma enorme quantidade de adaptações, adequações e intercâmbios em nível técnico, teórico e ideológico.



Tal perspectiva, segundo Navarro, vai ao encontro da definição de ‘interculturalidade em saúde' de Ana Maria Oyarce (2): "capacidade de mover-se equilibradamente entre conhecimentos, crenças e práticas culturais que dizem respeito à saúde e à doença, à vida e à morte, ao corpo biológico, social e relacional".



Interculturalidade em saúde ou saúde intercultural, portanto, acabam sendo conceitos usados com relação ao conjunto de práticas e políticas que pregam o conhecimento e a incorporação da cultura dos pacientes no processo de atenção à saúde.



Mudanças devem começar na formação



A partir de suas próprias concepções de processo saúde-doença, diferentes culturas constroem sistemas de cuidados distintos. Não existe, no entanto, um reconhecimento legítimo de todos esses sistemas e, apesar da hegemonia atual do modelo biomédico, com a valorização da dimensão biológica do processo saúde-doença, do uso de tecnologias no diagnóstico e medicalização de diversos problemas de saúde e da vida em geral, eles estão em permanente disputa. O grande desafio, portanto, é descobrir de que forma é possível modificar a relação entre a biomedicina e outras formas de atenção que ela sempre negou ou marginalizou.



Ao longo da história, no mundo ocidental, a cultura européia foi considerada o modelo de cultura universal e os conflitos culturais passaram a ser resolvidos, por imposição, a partir de uma visão etnocêntrica, que, muitas vezes, eliminou as culturas diferentes.



Nesse processo, como explica a pesquisadora Ana Lúcia Pontes da EPSJV/Fiocruz, em seu anteprojeto de tese ‘Intercultura e modelos de atenção: questões para a educação profissional em saúde', a escola desempenhou um papel fundamental na disseminação dos saberes considerados mais fortes e na desqualificação de outras formas culturais consideradas menos importantes e dando origem a sociedades racializadas, sexistas e classistas.



Ana Lúcia destaca, no entanto que, apesar de a escola ter funcionado muito tempo como um forte instrumento de sujeição à cultura dominante, ela também pode assumir uma função fundamental na reorganização da sociedade, diante do novo contexto histórico, contribuindo para a constituição de sujeitos mais adequados aos novos processos de relação intercultural.



Para Mª Teresa Caramés García (1), da Universidad de Castilla-La Mancha - España, a formação em ciências da saúde ainda tem o modelo biomédico como principal referencial. Segundo ela, independente das particularidades específicas de cada carreira, o processo formativo tem sido desenvolvido para possibilitar a interiorização e posterior reprodução, por meio da prática, do modelo biomédico - um modelo de prática e intervenção científica, caracterizado por suas pretensões de objetividade e seu enfoque eminentemente biológico e técnico.



Ela também assinala que o processo de formação em ciências da saúde supõe igualmente um processo de construção ideológico-cultural e não somente de aquisição de habilidades técnicas. Que determina a forma como esses trabalhadores veem e abordam o fenômeno saúde-doença-atenção, entre outras: a própria enfermidade, o sujeito doente e seu corpo, bem como a relação entre o profissional de saúde e o paciente e as relações. Ao mesmo tempo o dito processo de construção ideológica não se dá num vazio, mas dentro de um contexto histórico e social determinado.



Xavier Albó concorda que muitos dos problemas relacionados à interculturalidade têm origem ainda na formação do pessoal de saúde. "Justifica-se a prematura e exclusiva especialização na área escolhida por razões práticas de recursos e tempo, mas se essa formação não se complementa com uma devida qualificação intercultural e outros corretivos, os efeitos podem ser fatais", afirma.



Ele sugere que, antes de mais nada, seja incorporada aos currículos uma análise de conceitos básicos vigentes na esfera da saúde e da doença nas culturas com as quais o futuro profissional vai trabalhar. "Se um paciente está convencido que o seu mal-estar é fruto de ‘mal-olhado', por exemplo, ele não será curado com comprimidos e injeções. Ele deverá estar convencido de que as ‘causas' de sua enfermidade, que podem parecer culturais para os outros, mas que são bem reais para ele, também estejam sendo combatidas", explica Albó, completando: "Além da formação cognitiva, o que deve ser assegurado no campo da formação intercultural é uma atitude de abertura, aceitação e sintonia com os pacientes culturalmente distintos, ainda que não se consiga compreendê-los".



Informação em saúde com enfoque étnico: problema ou solução?



 No Brasil o percentual de população indígena não chega a 1% da população total; no Chile, chega a quase 5% (Censo 2002); e na Bolívia (Censo 2001) e Equador, ultrapassa os 50%. A despeito das particularidades nacionais, o tema da interculturalidade em saúde na América Latina, está profundamente relacionada a essas populações, discriminadas culturalmente e sujeitas a todo tipo de opressão socioeconômica.



Em 1994, um estudo do Banco Mundial mostrava que na Guatemala, onde 64% da população viviam abaixo da linha de pobreza, 86,6% da população indígena estavam nessa situação. No Peru, por sua vez, a população em estado de pobreza girava em torno de 50%, mas chegava a quase 80% entre os indígenas. No México, as diferenças foram ainda mais gritantes, com 20% da população total e 80% da população indígena vivendo na pobreza. Em todos os países, o estudo apontou para índices mais altos de mortalidade infantil, analfabetismo e desemprego e piores os indicadores de saúde entre essa parcela da população, apontando a necessidade de se reduzir a marginalização dessas populações cultural e economicamente mais vulneráveis, promovendo a equidade na distribuição de bens e serviços públicos, dentre os quais os de saúde.



Os processos de redução das iniquidades de saúde segundo a origem étnica, no entanto, dependem da existência de informação epidemiológica e sociodemográfica válida e atualizada, o que nem sempre acontece. Nesse contexto, foi desenvolvido, em 2006, com apoio de diversas instituições, o projeto ‘Enfoque étnico en las fuentes de datos y estadísticas de salud', no âmbito do qual foi realizado um diagnóstico do avanço do enfoque étnico referido a povos indígenas - especificamente os Mapuche da Região de Araucanía (Chile) e da Província de Neuquén (Argentina) - nas estatísticas vitais e fontes de dados em saúde. "A meta era compreender, a partir da visão dos próprios atores sociais envolvidos na questão, os aspectos positivos, as debilidades, os conceitos e os fundamentos de experiências existentes, bem como conhecer suas percepções e propostas sobre o tema", explica a pesquisadora Ana Maria Oyarce (2).



Segundo ela, o diagnóstico revelou uma situação paradoxal. No Chile, onde a Constituição não reconhece o caráter pluriétnico e pluricultural do país, não havendo, portanto, um marco constitucional e legislativo para o exercício dos direitos fundamentais dos povos indígenas, foram encontradas várias experiências de saúde intercultural e de inclusão do enfoque étnico nas fontes de dados de saúde. O plano qualitativo, por sua vez, mostrou um contexto favorável à consolidação desses processos, mesmo quando o tipo de relação que esses povos têm com o Estado tornam a questão mais delicada.



Na Argentina, ao contrário, onde a diversidade étnica e cultural é reconhecida pela Constituição e ratificada por várias leis provinciais, o estudo não identificou experiências de saúde intercultural na Província de Neuquén e a inclusão do enfoque étnico nas fontes de dados está limitada ao censo nacional, à pesquisa complementar e ao censo aborígene. A percepção dos atores entrevistados sobre a questão, por sua vez, é bastante complexa. Os não mapuches acreditam que a medida pode representar uma forma de discriminação. Os reprentantes mapuches, por sua vez, se mostram desconfiados, devido a sua condição de subordinação. "Nesse sentido, a estratégia seria produzir a informação, mantendo, no entanto, o controle social sobre a mesma", enfatiza Ana Maria.



Segundo ela, o grande desafio, na opinião dos atores sociais, é a construção coletiva de sistemas de informação com e para os povos indígenas, com sua participação livre e informada em todas as etapas de produção da informação. Sistemas esses que, ao incorporar o meio ambiente, o território, a participação política, a autonomia etc., respondam aos modelos de saúde integral dessas populações. 



Na África, a medicina tradicional entre a integração e o preconceito



 Definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como "conjunto de práticas, conhecimentos e crenças sanitárias diversas que incorporam medicinas baseadas em plantas, animais e minerais, terapias espirituais, técnicas manuais e exercícios aplicados isoladamente ou em combinação para manter o bem-estar, tratar, diagnosticar e prevenir as doenças", a medicina tradicional começa a ganhar visibilidade no cenário global, em 1978, quando a Declaração de Alma-Ata reconhece o seu importante papel na estratégia de saúde para todos.



Em 1984, o Comitê Regional da OMS para a África, publica uma resolução pedindo aos países que desenvolvam um esforço para regular a prática da medicina tradicional, inserindo-a em seus sistemas nacionais de saúde e promovendo o seu desenvolvimento. Em 2000, finalmente o Conselho de Ministros da Saúde da África, aprova uma estratégia regional de integração da medicina tradicional nos sistemas formais de atenção à saúde, tendo em vista que, na maioria dos países africanos, o percentual de cidadãos que utilizam a medicina tradicional supera a dos que têm acesso ao sistema oficial de saúde, especialmente nas áreas rurais. A União Africana, por sua vez, define 2001-2010 como a Década da Medicina Tradicional Africana, e a OMS, institui o dia 31 de agosto como o Dia Africano da Medicina Tradicional.



Na época, o então diretor da AFRO-OMS, Ebrahim Malick Samba, comemorou a decisão. "A celebração dessa data serve para enfatizar a importância desse recurso para a melhoria da vida do nosso povo. A medicina tradicional é nossa cultura e herança. Ocupa lugar de destaque no continente, porque é de fácil acesso, mas também socialmente sancionado e culturalmente aceitável", disse, destacando que caberia aos países tratar das questões de segurança, qualidade, eficiência, padronização e dos direitos de propriedade intelectual.



De lá para cá, muitos avanços foram conquistados, como disse a presidente da ONG moçambicana ‘Fórum da Medicina Tradicional', Fátima Mangore, em entrevista à Rádio ONU, em setembro de 2009: "Hoje, já se entende que, no âmbito do sistema, a medicina tradicional funciona como complemento da medicina moderna e vice-versa".



Apesar disso, as expectativas de integração de fato não chegam, no entanto, a ser totalmente animadoras. No texto ‘Saúde e Doença em Moçambique', o pesquisador Paulo Granjo, da Universidade de Lisboa, ressalta que o principal obstáculo ao diálogo entre a biomedicina e ‘medicina tradicional' é o desconhecimento e a desvalorização das noções locais acerca da doença e suas implicações para a noção e processo de cura. Segundo ele, é fácil aceitar que a maioria das plantas utilizadas pelos tinyanga (curandeiros) tem ‘princípio ativo' com eficácia curativa. Também é consenso que tais conhecimentos botânicos devem ser estudados e que constituem um importante capital ‘nacional'. O problema, segundo ele, está na aceitação dos demais procedimentos e conceitos envolvidos nas práticas desses curandeiros, que tendem a ser vistas como um misto de superstição, magia e feitiçaria, com as quais a medicina dificilmente poderá compactuar e, menos ainda, legitimar.



"Para um médico academicamente reconhecido, o parceiro ‘tradicional'realmente aceitável seria um nyangarume - curandeiro de reconhecida capacidade de cura botânica - que deixasse de fazer adivinhação e de acreditar ser possuído por espíritos, isto é, um farmacêutico autorizado a prescrever medicamentos, mesmo que vestisse uma capulana - pano com padrões específicos para cada tipo de espírito incorporado - em vez de uma bata (jaleco)", explica o pesquisador.



Migração e saúde intercultural



 Nos países mais desenvolvidos, tradicionalmente receptores de migrantes, as discussões atuais sobre interculturalidade em saúde refletem principalmente as preocupações e dificuldades enfrentadas pelo sistema oficial no atendimento a migrantes recentes ou usuários de grupos minoritários resultantes de processos migratórios anteriores.



Em 2001, o Departamento de Saúde dos Estados Unidos publicou uma norma de acreditação cultural para os hospitais públicos, com o objetivo de melhorar o atendimento a usuários oriundos das minorias e, consequentemente, tornar o sistema de saúde mais equitativo. De acordo com o documento, os hospitais ficam obrigados a dispor de um serviço de competência cultural e linguística capaz de atenuar os problemas de comunicação entre os médicos e pacientes.



Iniciativa semelhante vem sendo adotada em Portugal, no âmbito do Projeto de Mediação Intercultural no Atendimento em Serviços Públicos do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (Acidi). O objetivo do projeto, lançado em 2009, é minimizar os problemas enfrentados por imigrantes e estrangeiros que tenham dificuldades em entender e falar português na utilização de diversos serviços, inclusive em alguns hospitais, onde o papel do mediador é apoiar o usuário e facilitar a comunicação com os profissionais, nomeadamente, ao nível da tradução simultânea e da leitura de relatórios e documentos clínicos redigidos em língua estrangeira. Nesse sentido, os profissionais das instituições que já aderiram ao projeto são instruídos a requisitar a presença do mediador sempre que necessário. A demanda por parte dos usuários ainda é pequena, uma vez que o serviço, por ser recente, ainda não é suficientemente conhecido.



A questão nesse caso é que, de acordo com especialistas, a simples introdução da competência linguística no processo não reflete a intenção e nem possibilita por si só uma efetiva mudança cultural no modelo médico vigente ou até mesmo num aumento da sensibilização dos profissionais de saúde quanto à diversidade cultural dos usuários do sistema.



Para o espanhol Josep M. Comelles (1), da Universitat Rovira i Virgili - Espanha, a presença cada vez maior de imigrantes nos países desenvolvidos acaba produzindo, no entanto, alguns outros efeitos que põem em xeque a racionalidade do modelo médico. Esses efeitos, segundo ele, têm origem não nos atendimento prestados nas emergências hospitalares, mas nos tratamentos que demandam seguimento e nos quais a comunicação intercultural, a intersubjetividade e a co-produção de saberes é tão importante quanto nos atendimentos aos demais cidadãos, sem que haja a mesma cumplicidade entre médicos e pacientes construída ao longo de anos de convivência.



"O efeito da imigração chama atenção sobre a necessidade de se co-produzir e gerir as variáveis culturais, uma vez que as culturas em torno da saúde pareciam tão dissolvidas no conceito de cidadania que não mereciam atenção especial", explica, completando: "A diversidade cultural associada à imigração desafia a organização dos dispositivos ou abre espaços imprevistos de uso, desafiando a cultura de organizações profissionais e institucionais e exigindo mudanças e novas estratégias de formação".







Notas: (1) Salud e Interculturalidad en América Latina: perspectivas antropológicas. Org. Gerardo Fernández Juárez (Ediciones Abya-Yala, 2004); (2) La identificación étnica en los registros de salud: experiencias y percepciones en el pueblo Mapuche de Chile y Argentina Ana Maria Oyarce (Naciones Unidas. Santiago de Chile, junio de 2008)



OBS: A relação completa da bibliografia consultada para esta matéria está disponível no site da RETS (http://www.rets.epsjv.fiocruz.br) em ‘Biblioteca' > Temas de interesse> Interculturalidade em Saúde