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Lançamento do Dossiê Abrasco sobre agrotóxicos mobiliza instituições científicas e movimentos sociais

Versão em livro do dossiê lançado em 2012 traz capítulo inédito sobre os retrocessos recentes na luta contra os venenos agrícolas.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 30/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Lançamento do Dossiê Abrasco Foto: EPSJV/Fiocruz

“No começo foram os olhos, que ficaram amarelados. Depois veio a dor de cabeça mais forte, falta de apetite. Ele não tinha mais aquela disposição, ficou todo amarelado, com os lábios ressecados, sangrando. As pontas dos dedos também. A urina tinha cor de Coca-Cola. No começo os médicos diziam que era hepatite, mas à medida que foram pesquisando viram que era por causa dos agrotóxicos”. O depoimento de Maria Gerlene Silva Matos narra o sofrimento de seu companheiro, Vanderlei Matos, trabalhador rural que morreu de uma hepatite tóxica crônica decorrente da contaminação por agrotóxicos na Chapada do Apodi, no Ceará. Vanderlei é um dos poucos casos no Brasil em que foi estabelecida a relação entre os agrotóxicos e a morte de um trabalhador, com uma decisão judicial que condenou a empresa Delmonte Fresh Produce pela morte do agricultor. 

Retirar da invisibilidade casos como o de Vanderlei e denunciar os impactos socioambientais dos agrotóxicos foram alguns dos objetivos que nortearam a produção do ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde’ , cuja versão impressa foi lançada na última terça-feira, dia 28, em evento realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A publicação, coeditada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e Expressão Popular, coroou um trabalho iniciado em 2012, ano em que foram publicadas as três primeiras partes do dossiê. A versão impressa ganha agora uma quarta parte, inédita, intitulada ‘A crise do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia’. Concluído em outubro de 2014, esse capítulo traz novas informações, como decisões políticas, novos estudos e acontecimentos marcantes que alteraram o cenário do enfrentamento aos agrotóxicos no país de 2012 para cá.

Inédito, quarto capítulo atualiza discussões levantadas pelo dossiê

E como Karen Friedrich, pesquisadora do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz) e uma das 44 autoras do dossiê, alertou durante o lançamento, muita coisa aconteceu nesses dois anos. E uma situação que já era ruim se agravou ainda mais. “De 2012 para 2014 muitas coisas aconteceram, a maioria não foram notícias boas: perdas de direitos, perdas na regulamentação dos agrotóxicos. Isso merecia um quarto capítulo, que infelizmente é maior do que a gente esperava”, lamentou. No período houve, por exemplo, a aprovação da lei 12.873/2013 pelo Congresso Nacional, que permitiu que agrotóxicos que não possuem registros no Brasil sejam utilizados em situações consideradas emergenciais. “Essa lei foi justificada pela epidemia de uma lagarta, e a partir disso vários estados do Brasil permitiram o uso de um agrotóxico que havia sido proibido em 2007 pela Anvisa porque havia a suspeita de ele causar malformações fetais e ser altamente neurotóxico. Hoje ele é utilizado em larga escala principalmente na Bahia e em Mato Grosso”, alertou. Mas há notícias boas para reportar também, segundo Karen.  “Nesse período as lutas também foram intensas. Foi lançado o documentário do Silvio Tendler, ‘O veneno está na mesa 2’. Também ocorreu a Mesa de Controvérsia sobre Transgênicos do Consea, o 8º Congresso Brasileiro de Agroecologia, o 3° Encontro Nacional de Agroecologia e o 2° Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente. Esses eventos mostraram que nós não somos poucos nesta luta”, destacou.

Mais recentemente, no início de abril, a publicação de um documento do Instituto Nacional do Câncer (INCA) alertando para a relação dos agrotóxicos com o desenvolvimento da doença e pedindo a redução de seu uso foi um marco importante. O diretor do INCA, Luiz Antonio Santini, compareceu ao lançamento do dossiê, e destacou: “O INCA tem uma responsabilidade e um compromisso de participar dessa discussão, e temos feito isso buscando bases técnicas e científicas que possam sustentar esse debate”.

O presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luiz Eugênio Portela, ressaltou que hoje está provado cientificamente que o agrotóxico faz mal à saúde. “O dossiê deixa isso muito claro, reúne inúmeras evidências científicas que mostram isso. E mais: a população, os trabalhadores, as trabalhadoras envolvidas com isso também sabem disso, e o dossiê também registra esse conhecimento. Nesse sentido ele é um instrumento poderoso de pressão sobre os tomadores de decisão política para que a gente reveja o modelo de desenvolvimento que se tenta implantar nesse país, que já mostrou que é insustentável”, afirmou. Vice-presidente de Meio Ambiente da Fiocruz, Valcler Rangel apontou que a instituição tem papel fundamental na visibilização dos impactos dos agrotóxicos, e destacou o trabalho das várias unidades da Fundação nesse sentido: “A coordenação do Sinitox, os professores do Politécnico que geram conhecimento e fazem atividades de ensino voltadas para o pessoal de nível médio nessa área, o pessoal do INCQS que faz as análises laboratoriais dos agrotóxicos. De alguma forma contribuímos para algumas vitórias, ainda que parciais, nessa área”, ressaltou, complementando: “Que esse assunto possa cada vez mais ser capilarizado junto aos movimentos sociais, junto a quem produz alimentos para o país, quiçá fazendo com que isso gere movimentos por uma matriz de desenvolvimento que seja mais saudável, que consiga enfrentar as determinações sociais que produzem as doenças”.

Nesse sentido, Paulo Petersen, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), chamou atenção para a importância da reforma agrária no combate aos agrotóxicos. “É necessário pensar uma nova lógica econômica de gestão e de ocupação dos territórios. Fico muito satisfeito quando vejo aqui essa compreensão dos companheiros da área de saúde de que o verdadeiro combate aos agrotóxicos se faz com a reforma agrária”, disse Paulo.

“Você vai calar sua boca”

Para o lançamento também foram convidadas pessoas que sentiram literalmente na pele os impactos dos agrotóxicos. Uma delas foi Hugo Alves dos Santos, professor da Escola Municipal São José do Pontal, em Goiás, onde 29 crianças e oito adultos foram atingidos por pulverização aérea de venenos, em maio de 2012. “Eu sentia meu cérebro apertar, minha garganta fechou. Achei que fosse morrer”, relatou Hugo. Na época a comoção causada pelo acidente atraiu a atenção da mídia, gerando problemas para os produtores rurais da região, fronteira de expansão do agronegócio da soja e do milho no país. E a reação veio na forma de intimidação. “Um dia estava na escola, o telefone tocou e eu atendi. Recebi um ultimato assim: ‘professor, você vai calar sua boca. Você está proibido de falar de veneno’”, disse Hugo, que contou que por causa das ameaças se mudou oito vezes de lugar em um ano e precisou recorrer à escolta policial. “Hoje moro em condomínio fechado, tenho medo de morrer até hoje, recebi várias ameaças de morte. Esse pessoal do agronegócio tem muito dinheiro, é poderoso. E lá na região eles mandam matar”.

Onde encontrar:

A obra está disponível gratuitamente nos sites da EPSJV e da Abrasco e também pode ser comprada nos sites da EPSJV, da Abrasco Livros e da Expressão Popular.

Veja mais: www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos