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Legado dos leitos em aberto

Mesmo com a criação de mais de 20 mil leitos em caráter provisório, o problema histórico do sistema de saúde pode não ser solucionado no pós-pandemia
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 07/08/2020 10h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

A oferta de leitos de Unidade de Terapia intensiva (UTI) em estabelecimentos públicos, conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), ou particulares, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), em levantamento publicado, no dia 4 de agosto, aumentou cerca de 45%, desde que o Brasil passou a enfrentar a pandemia de Covid-19, totalizando cerca de 20 mil leitos.

No entanto, como informa o Ministério da Saúde em nota, os leitos habilitados exclusivamente para a Covid-19 são provisórios, com duração de 90 dias, podendo ser prorrogados, dependendo do cenário epidemiológico. Não há, até o momento, um plano para que eles possam ser transformados ou revertidos em leitos para atendimento de outras doenças, apesar de a falta de leitos ser um problema histórico do país. Estima-se que  o SUS tem cerca de 13,6 leitos de UTI disponíveis para cada 100 mil habitantes e o setor privado agrega  62,6, de acordo com uma nota técnica produzida pelos pesquisadores Nilson do Rosário, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e Marcos Junqueira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Para a pesquisadora e integrante do Observatório de Política e Gestão Hospitalar, Juliana Machado, a decisão pela abertura de estruturas de campanha e/ou ampliação de leitos tem sido regionalizada, realizada pelos governos locais. “É bem diversa a estratégia adotada por cada um. A criação dos leitos, sua habilitação e registro seguem padrões nacionais, divulgados pelo Ministério da Saúde e pelo Datasus, de maneira que a rede existente seja minimamente monitorada. No entanto, a distribuição de novas estruturas no país, a compra de equipamentos, materiais e insumos, não parece planejada a nível nacional, uma vez que não temos uma política clara nesse sentido, publicada e divulgada pelo Ministério da Saúde, que tem essa atribuição” reflete.

Em meados de abril deste ano, foi instituído, a partir da resolução 3/20 do Ministério da Saúde, um grupo de trabalho para a coordenação de ações estratégicas para construção de Hospitais de Campanha Federais e logística internacional de equipamentos médicos e insumos de saúde. “Mas esse esforço no âmbito federal não parece exercer impacto significativo sobre a decisão de criação das estruturas estaduais e municipais, que são as predominantes nesse momento e que, em sua maioria, foram adotadas logo no início da pandemia”, avalia Juliana.
 

Em resposta ao Portal EPSJV/Fiocruz, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde informou que, apesar de não haver até o momento nenhum tipo de resolução ou portaria, o Ministério mantém contato permanente com Conass ( Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) “na construção de políticas de saúde com foco em salvar vidas”.

 

Situação dos leitos sem pandemia

Como aponta o estudo do CFM, em fevereiro de 2020, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) registrava a existência de 46 mil leitos de UTI no Brasil. Metade deles está disponível para o SUS e a outra metade é reservada à saúde privada ou suplementar (planos de saúde), que hoje atende a aproximadamente 22% da população.

Em 14 unidades da federação, o índice de UTI por habitante na rede pública (SUS) está abaixo do ideal preconizado pelos especialistas em medicina intensiva: todos os estados do Norte (exceto Rondônia), além de Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte. Neles, os índices variam de 0,44 leito por grupo de 10 mil habitantes (caso do Amapá) a 0,96 (no Rio Grande do Norte), de acordo com o relatório.

Os estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Sergipe apresentam na rede pública uma razão de leitos de UTI inferior à da média nacional (1,1) nesse segmento. O caso de Roraima é ainda mais grave: somando-se leitos públicos e privados, não atende ao índice ideal de leitos por 10 mil habitantes. “Quando se observa as capitais, também é possível ver o desequilíbrio entre a oferta de leitos SUS e “não SUS”. Boa Vista (0,8 leito por 10 mil habitantes) e Macapá (0,74), por exemplo, estão entre as piores capitais no setor público. Por outro lado, ambas estão entre as melhores capitais na proporção leito privado ou suplementar: 7,2 e 7,9, respectivamente”, indica o estudo.

“Apesar de ser um serviço de saúde pública, a prática adotada é a de mercado. Os leitos que não são sustentáveis, rentáveis são fechados. Além disso, temos sofrido, historicamente, o desfinanciamento da saúde do governo federal, sobrecarregando a rede estadual e municipal,o que impacta profundamente essas redes e tem deixado o quadro ainda mais preocupante”, avalia o 1º vice-presidente do CFM, Donizetti Dimer Giamberardino.

 

Hospitais de campanha

Uma das principais indagações relacionadas aos leitos é a criação de hospitais de campanha, no lugar de estruturar os já existentes e/ou habilitar alas ou unidades fechadas em diferentes estados e municípios. De acordo com Juliana Machado, a criação de estruturas de campanha é uma opção seguida por diversos países por conta do atendimento superior à rede assistencial existente. Para além disso, a opção por essas estruturas também pode ser justificada pelo isolamento dos pacientes e profissionais, tratando-se de uma doença com alto grau de transmissibilidade. “No caso do Brasil, destacam-se também as dificuldades no cumprimento de projetos e prazos para montagem das estruturas de campanha, bem como no seu financiamento e manutenção, o que frequentemente impacta negativamente sobre o resultado esperado. Nesse sentido, é ainda mais legítima a preocupação com os custos envolvidos para seu funcionamento, e a discussão de uma possível priorização pela reabertura de leitos ou hospitais inativados. Essa questão é outra bem diversa no país, e a avaliação varia muito, porque depende do que se tem de estrutura ociosa ou inativa, e ainda da capacidade de rápida estruturação e manutenção de hospitais de campanha, o que justificaria montá-los”, afirma a pesquisadora.

O Ministério da Saúde informa ainda que a criação dos hospitais de campanha é de responsabilidade dos estados. “O Ministério da Saúde foi responsável pela construção, com apoio do Ministério da Infraestrutura, do Hospital de Campanha de Águas Lindas de Goiás (GO). A gestão do Hospital foi entregue ao governo de Goiás em maio e conta com 200 leitos de internação, todos com acesso à rede de gases, o que permite que sejam transformados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), conforme a necessidade”, diz a resposta da assessoria, que esclareceu também que os materiais que sobraram dos hospitais de campanha já desmontados ainda não têm destino determinado pelo Governo Federal e ficarão, até o momento, a critério dos estados responsáveis.

Legado

Juliana explica que, tecnicamente, a orientação do Ministério da Saúde, desde março de 2020, já era pela ampliação de leitos clínicos e de UTI em unidades existentes permanentes, com destinação de áreas ao tratamento exclusivo que possibilitassem isolamento e, em casos de  demanda reprimida de atendimento, seriam implantadas unidades de saúde temporárias para organizar e ampliar leitos clínicos para atendimento aos pacientes com sintomas respiratórios. “Essas prioridades elencadas progressivamente parecem bem razoáveis, em teoria”, avalia.

No entanto, a ampliação de leitos permanentes não ocorreu. Para Donizetti, a publicação do CFM foi um alerta sobre o que ficará de legado pós pandemia e que é preciso abrir um diálogo o quanto antes entre a sociedade e o governo federal para que isso seja estruturado. “É importante que tenhamos políticas públicas que incentivem o aproveitamento da criação de leitos de UTI de forma definitiva. A experiência, com o enfrentamento da Covid-19, mostrou ser possível ampliar a oferta dos serviços. Não é possível que estejamos passando por todo esse sofrimento sem deixar esse legado. Esperamos que essa oportunidade seja aproveitada pelos gestores para mudar esse cenário de forma definitiva e, principalmente, pelo governo federal, que precisa incentivar essa criação de leitos definitivos. Os estados e municípios com maior carência de leitos são, justamente, os com menor receita, portanto, precisam de verba federal”, ressaltou Donizetti Dimer Giamberardino e emenda: “A sociedade, governadores, Conass e Conasems precisam se mobilizar na reivindicação desse direito”.

Juliana também acredita que é necessária uma política mais estrutural para essa garantia de aumento de leitos de UTI no país. “A pandemia e a explosão da necessidade de UTI no país levanta ainda mais essa questão, que deve ser enfrentada de maneira estratégica no pós-pandemia. Num ambiente com carência de recursos, a habilitação de leitos existentes e inativos parece a opção mais eficiente, mas é necessário estudar outros aspectos como a rede regionalizada, a oferta de profissionais e demais estruturas necessárias à manutenção do atendimento de alta complexidade em UTI”, avalia.

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Desde o mês de março, portarias do Ministério da Saúde estabelecem que sejam criados leitos exclusivos para o tratamento de pacientes com Covid 19. Após dois meses, a quantidade e o nível de ocupação desses e dos demais leitos não estão claros