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Lei que garante mais benefícios aos ACS e ACE aguarda sanção da presidência

Projeto reforça a inclusão dos agentes no regime previdenciário e o direito a adicional de insalubridade e formação técnica
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 23/09/2016 11h51 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Aprovado no último dia 12 de setembro, o PLC 210/2015 garante aos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate a Endemias (ACE) mais um instrumento de cobrança de benefícios aos quais boa parte desses trabalhadores ainda não têm acesso. O projeto, já enviado para sanção presidencial, garante a contagem do tempo de serviço desses profissionais para a aposentadoria, independentemente do vínculo, e o direito a adicional de insalubridade. Estabelece ainda que a formação técnica dessas categorias poderá ser financiada com recursos do Fundo Nacional de Saúde e que eles terão prioridade no acesso ao financiamento de moradias do programa ‘Minha Casa Minha Vida’.

Para o presidente da Federação Nacional dos ACS e ACE (Fenasce), Fernando Cândido, a lei é importante porque apesar de trazer benefícios que parecem elementares, como a contagem do tempo de serviço para a aposentadoria, a realidade dos agentes é muito distinta em todo o país e não é raro encontrar vínculos de trabalho que desrespeitam esses direitos. “Em geral os agentes já tinham o direito porque, provando na justiça, todo aquele período que foi contribuído você consegue contabilizar. Mas, infelizmente, assim como outros benefícios, esse também vem sendo sonegado. Então a legislação veio ratificar”, afirma. Fernando explica que só após a promulgação da Emenda Constitucional 51 (EC 51) de 2006, que estabelece a contratação direta dos agentes pelos municípios, é que parte dos profissionais teve a situação regularizada, mas o tempo trabalhado antes da aprovação da Emenda, quando o agente ainda tinha contrato temporário, não teve como ser comprovado. “Com isso, alguns agentes deixaram de contabilizar dez, 15 anos de serviço”, acrescenta. A situação persiste, segundo ele, principalmente nos municípios nos quais os ACS e ACE continuam tendo vínculos precários de trabalho.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Camila Borges reforça que a precarização do trabalho ainda é um dos impedimentos para que os agentes tenham acesso a benefícios como a previdência. “Infelizmente isso é muito comum, até porque muitas vezes se mantêm os trabalhadores nesses contratos que são estágios probatórios, e quando se rescinde o contrato de uma empresa para outra, o trabalhador continua atuando, mas isso não é contabilizado na carteira de trabalho”, observa. Camila, que é uma das coordenadoras do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde oferecido pela EPSJV/Fiocruz, relata que há várias maneiras de se burlar o acesso dos trabalhadores ao benefício. “Algumas histórias se repetem com frequência nas carteiras de trabalho dos agentes, como esses gaps de contrato, como desvios de função e a manutenção do trabalhador em estágio probatório. E aí, quando você vai conversar com o trabalhador, ele diz: ‘esse período que não consta na carteira de trabalho eu estava trabalhando todos os dias”, conta.

O recebimento do adicional de insalubridade que a lei visa garantir também é uma realidade ainda distante para muitos agentes, apesar de, inclusive, já haver decisões da Justiça do Trabalho considerando como insalubre o trabalho desses profissionais. Mais uma vez, segundo a Fenasce, o direito é mais descumprido onde há vínculos precários de trabalho. Segundo Fernando, em cerca de 30% dos municípios brasileiros os agentes ainda são precarizados. “O ACE manuseia produtos químicos, além também de visitar as casas, assim como os ACS. O fato de estarem visitando, em contato com pessoas que eventualmente podem estar acometidas de alguma doença infectocontagiosas, torna aquele ambiente insalubre”, argumenta. Camila Borges reforça a justificativa: “Os agentes estão expostos a qualquer forma de risco à saúde que exista na comunidade, já que eles circulam na comunidade inteira”. Também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Danielle de Moraes alerta ainda para a diferenciação que existe entre os profissionais da saúde, já que não se questiona o direito de médicos e enfermeiros, por exemplo, ao adicional de insalubridade. “O médico que faz home care, por exemplo, recebe insalubridade. É curioso que os profissionais de curso superior recebam e tenhamos que ficar brigando para que os agentes recebam, já que eles também têm contatos com diversas situações insalubres. Nós já temos toda uma regulamentação da saúde do trabalhador que garante isso, então não necessitaríamos a priori de uma legislação. No entanto, isso se faz necessário”, critica.

Formação e luta por valorização

Outro aspecto da lei que pode garantir uma política de formação mais efetiva para os ACS e ACE é o artigo que trata do financiamento dos cursos técnicos. Pela nova legislação, os cursos poderão ser financiados pelo Fundo Nacional de Saúde. A parte dedicada à formação dos agentes garante ainda a inclusão dos trabalhadores que não tenham concluído o ensino médio em programas de ampliação de escolaridade e reforça a obrigatoriedade da ajuda de custo para o transporte até os locais de curso.

Camila Borges explica que atualmente existe um compromisso do Ministério da Saúde em bancar a primeira etapa dos cursos técnicos (equivalente a no mínimo 400 horas), mas as outras etapas ficam a cargo dos municípios,  que acabam às vezes não as executando. Segundo a pesquisadora, isso gera fragilidades uma vez que as prefeituras nem sempre conseguem arcar com este financiamento. Ela acrescenta que as parcerias dos municípios com os governos estaduais para oferta da formação via escolas técnicas do SUS (ETSUS), que são administradas pelos estados, nem sempre acontecem de forma completa pela própria fragilidade dessas unidades de educação, que também sofrem com a falta de orçamento e sucateamento. Apesar de representar um avanço a garantia de financiamento pelo Fundo Nacional de Saúde, como prevê a lei, a pesquisadora alerta que esses recursos também estão em disputa. “A lei não obriga este financiamento pelo Fundo Nacional da Saúde, apenas diz que pode ser financiado. Temos que aguardar para ver qual vai ser o trâmite de liberação desses recursos porque o Fundo Nacional de Saúde tem vários compromissos e a escolha da destinação de recursos é sempre uma escolha política”, aponta. Danielle acrescenta que a perspectiva não é boa com a tentativa do governo federal de aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que institui um teto de gastos para o governo federal durante 20 anos, ainda neste ano. “A PEC congela os gastos da União, o que incide também sobre esses recursos da saúde. Então, teremos além de uma disputa do conjunto do orçamento entre os setores, também uma disputa dentro do setor saúde”, alerta.

Outro problema que pode surgir, segundo as pesquisadoras, é o entendimento dos gestores municipais de que o financiamento pelo Fundo Nacional de Saúde signifique a desobrigação dos municípios com os cursos, agravando o problema da falta de financiamento para a formação. Além disso, mais uma preocupação é que o texto não garante que os cursos sejam oferecidos apenas pelas instituições públicas. “A gente tem um mercado privado de escolas técnicas forte. É só olharmos a situação da enfermagem, a maior parte dos técnicos de enfermagem hoje é formada por escolas privadas. E nós temos instituições de ensino públicas que tem capacidade para isso e devem ser destinarias desses recursos”, afirma Camila. As professoras detalham que o curso técnico de ACS é complexo e  envolve uma gama variada de profissionais – desde os professores de formação básica como língua portuguesa e geografia até  áreas específicas da saúde, como fitoterapia – e o receio, segundo elas, é que as instituições de ensino privado queriam atuar neste mercado e simplifiquem a formação, já que precisam manter a lucratividade. “Quando falamos isso, estamos falando sobre a capacidade de compromisso que as instituições públicas têm de formar para o SUS. Será que as escolas privadas vão formar para o SUS? Há exceções, mas não teremos como garantir isso”, questiona Danielle.

Para Fernando Cândido, a garantia de mais recursos para a formação dos agentes possibilitaria, além de uma formação mais completa e consequente, melhoria no atendimento da população e valorização dos profissionais. “Nós sabemos que a inserção dos agentes foi uma estratégia de saúde que deu certo e que deveria ter uma atenção maior por parte dos gestores. A nossa valorização passa também pela capacitação e reciclagem e há sindicatos discutindo os planos de carreiras. Então, esses cursos tanto capacitariam o trabalhador para que ele possa atuar para construir uma política pública de qualidade, como serviria também para valorizá-lo, porque após a conclusão desse curso, e tendo plano de carreira no município, ele poderia requerer progressão salarial”, afirma. De acordo com a Fenasce, embora não exista um levantamento preciso sobre a escolaridade dos agentes, a federação estima que 300 mil trabalhadores atualmente em serviço não tenham sequer concluído o ensino médio.

Morar no território

Também foi incluído na lei o artigo que garante a prioridade aos ACS e ACE no acesso ao programa Minha Casa Minha Vida. Segundo Fernando, o pleito se justifica pela obrigatoriedade de os ACS residirem no território onde trabalham, o que, às vezes, representa uma grande dificuldade pela flutuação dos valores de aluguéis e os baixos salários recebidos pelos agentes. A inclusão deste benefício na lei foi criticada por parlamentares, mas o texto foi aprovado pelo Senado sem alterações após acordo  costurado entre o líder do governo senador Aloysio Nunes Pereira (PSDB-SP) e o relator do PL, Flexa Ribeiro (PSDB-PA), com indicação de que este trecho seja vetado pela presidência no momento da sanção. “Esperamos que esse veto não aconteça porque isso não traria nenhum ônus para o governo federal. Temos uma renda incompatível com a obrigação de ter que residir no local de trabalho. Os agentes têm um piso hoje de R$ 1.014 desde junho de 2014, portanto dois anos sem reajuste”, cobra Fernando.

Os ACS e ACE preparam uma mobilização nacional em Brasília para o dia 4 de outubro, considerado o dia do agente de saúde, para cobrar o reajuste do piso salarial e a sanção sem vetos do PLC 210. “A realidade é que a maior parte dos agentes só recebe o piso. A previsão do salário mínimo para o ano que vem é de R$ 946. Aí vamos passar a receber praticamente o mínimo. E esse reajuste do piso necessariamente só pode se dar através de um Projeto de Lei oriundo do Executivo. Por isso estamos fazendo essa cobrança ao governo. Infelizmente já fizemos dois pedidos de audiência ao Ministério da Saúde e não obtivemos resposta”, conclui.