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Maioria dos servidores públicos atua nas áreas de saúde e educação

Com debate atualizado em função da epidemia de coronavírus, propostas de redução da jornada dos servidores e flexibilização dos mínimos constitucionais impactam políticas de saúde e educação
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/03/2020 15h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Foto: Jeso Carneiro/Midia Ninja

Em meio à epidemia de coronavírus, voltou ao debate a proposta de redução de salário do funcionalismo público, tendo como principal referência as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 186 (Emergencial) e 188 (do Pacto Federativo), apresentadas pelo governo ao Congresso em novembro de 2019. Também produzida antes de o Covid-19 se tornar um problema de saúde pública no país, reportagem da última edição da Revista Poli debate o impacto desse pacote de medidas sobre as políticas de saúde e educação. Confira.

Maioria dos servidores está nos municípios

Dois dados do estudo sobre ‘O lugar do funcionalismo estadual e municipal no setor público nacional’, produzido pela Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, são particularmente importantes para o debate sobre os impactos do Plano Mais Brasil nas políticas sociais. O primeiro é que o crescimento do funcionalismo ao longo dos anos se deu principalmente nos municípios que, desde a Constituição de 1988, têm assumido mais responsabilidades na oferta de serviços à população. Não por acaso, as áreas que concentram mais servidores são exatamente saúde e educação. Hoje as cidades brasileiras empregam 57% dos servidores do país, enquanto 32% estão nos estados e 10% vinculados ao governo federal. Em 1986, os municípios eram responsáveis por apenas 34% do total. “O fato de o emprego público quantitativamente expressivo localizar-se no nível municipal, atrelado majoritariamente ao atendimento populacional direto em áreas de atuação estatal tais como serviços de saúde, assistência social e ensino fundamental, não deveria causar nem estranhamento nem reações contrárias”, conclui o estudo.

Nada menos do que 40% dos servidores municipais trabalham no 'núcleo duro dos serviços de educação e saúde', englobando portanto professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde

E lá na ponta, onde está concentrada mais da metade do funcionalismo brasileiro, a média salarial dos servidores é de R$ 2,8 mil, pouco mais de 2,5 salários mínimos, segundo o estudo. No nível estadual, esse valor sobe para R$ 5,1 mil e no governo federal alcança R$ 9 mil. Se considerarmos só o Norte e o Nordeste, o salário médio dos servidores municipais cai para R$ 1,6 mil e R$ 1,3 mil respectivamente. E aqui há mais variáveis a se considerar: segundo a pesquisa, os maiores salários – com uma média de R$ 13 mil – e o maior crescimento real acumulado de 1986 a 2017 – de 96% – são os do Poder Judiciário.

O fato é que os números não deixam dúvidas: nada menos do que 40% dos servidores municipais trabalham no que outro estudo, intitulado ‘Três décadas de funcionalismo brasileiro’ e produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),  chama de “núcleo duro dos serviços de educação e saúde”, englobando portanto professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. Esse percentual, aliás, é muito próximo também do que se encontra nos estados, onde, acrescentando-se os profissionais da área de segurança pública, chega-se a 60% do funcionalismo. “O que demonstra que grande parte da ocupação no setor público, sobretudo desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, está diretamente e positivamente associada à expansão das políticas de bem-estar social oferecidas pelos entes subnacionais ao conjunto da população brasileira”, afirmam os pesquisadores no texto.

Isso explica por que os gestores municipais das áreas de saúde e educação não querem nem ouvir falar em reduzir carga horária dos servidores, como propõe o pacote de reforma. “O impacto seria enorme”, diz o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Alberto Beltrame. “Com a diminuição da carga horária, nós vamos restringir a porta de entrada, ou seja, diminuir a oferta, a quantidade de procedimentos, de consultas. Seria terrível para nós se essa proposta fosse aprovada”.

Na educação não é diferente. “Quando se tira um professor [da rede], fecha-se a porta de uma sala de aula”, diz Luiz Miguel Garcia, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “A população vai sentir lá na ponta, com salas de aulas com um número maior de alunos porque teremos que distribuir os professores. Ela vai sentir com um número menor de atividades que complementam a sala de aula como, por exemplo, as aulas de reforço”, detalha. “É a indução da paralisação dos serviços públicos”, completa Salomão Ximenes, da Ação Educativa, defendendo que o objetivo dessas propostas é ir paulatinamente substituindo a educação pública por outro padrão de oferta, privada. Na saúde, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Áquilas Mendes aposta que essas medidas produzirão um “efeito em cascata”, ampliando ainda mais a contratação indireta, via entidades como as Organizações Sociais pelos municípios. Luiz Alberto dos Santos, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), resume o drama: “Os trabalhadores da área privada estão passando por uma fase complicada de desemprego, precarização, redução de direitos. A pessoa pensa: ‘Eu estou pagando a conta sozinho? Os servidores públicos vão ficar de boa?’. Aí ela joga no lixo todo a estrutura que o Estado construiu. Mas se isso deixar de existir, na verdade, o primeiro penalizado vai ser ele”.

Mexe no dinheiro da educação e da saúde?

O problema, diz o presidente do Conasems, é que, na saúde, as gestões municipais são “reféns do subfinanciamento”, entre outras razões porque o modelo tributário brasileiro concentra quase 60% da arrecadação no governo federal. E isso tem diretamente a ver com outra proposta da Reforma em tramitação: a extinção dos municípios pequenos com baixa arrecadação. Segundo cálculos da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) com dados de 2018, pelas regras estabelecidas na PEC do Pacto Federativo, mais de 1,2 mil cidades deixariam de existir. “A União é que precisa abrir mão da sua arrecadação gigantesca e repassar mais para os municípios”, defende o presidente do Conasems, que arrisca um palpite: “Não acredito que isso vá passar. Para a saúde seria um desastre”. O presidente da Undime também antevê problemas para a educação. Ele lembra que cada cidade tem um projeto pedagógico próprio e, mais recentemente, um Plano Municipal de Educação. “A fusão dessa legislação seria muito complexa”, diz. E alerta: “Não é um processo meramente contábil”.

E aqui chegamos à medida que mais diretamente nomeia – e atinge – as políticas de saúde e educação. Trata-se da proposta que unifica os mínimos de aplicação nessas áreas. Hoje, a Constituição obriga que municípios apliquem pelo menos 15% da receita em saúde pública e 25% em educação; para os estados o montante deve ser de 12% e 25%, respectivamente, e para o governo federal, 15% de receita líquida para saúde e 18% de impostos arrecadados para educação. Em várias declarações, membros do governo defenderam o fim dessas vinculações, sempre em nome da flexibilidade na utilização dos recursos do orçamento. “Eu não sou a favor de acabar com as vinculações porque a gente tem que ir aos poucos, gradualmente. Mas o gasto social tem que ser estimulado pela sociedade”, defende o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, responsável pela reforma gerencial do Estado da década de 1990, considera da maior até agora. Ele completa: “Quando você quer desenvolver um país, tem que ter práticas orçamentárias e fiscais civilizadas e não pode ser tudo na base da vinculação”.

O texto oficial do pacote de reforma não foi tão ousado, mas o resultado final não tranquiliza em nada os pesquisadores e gestores dessas áreas. “O Conasems tem uma posição clara de que os percentuais de aplicação na saúde sejam separados dos percentuais aplicados na educação”, afirma o representante dos secretários municipais. O presidente da Undime é ainda mais contundente: “Essa questão é a mais grave”, diz. Segundo ele, em nenhum município brasileiro os serviços de educação – e nem os de saúde – custam menos do que o mínimo estabelecido pela Constituição. “Essa conta não fecha”, conclui, explicando que, com esses recursos, não há como priorizar uma área em detrimento da outra. E ele expressa uma preocupação adicional com a posição desprivilegiada que a educação ocuparia na disputa que se instalará no interior do orçamento caso a PEC seja aprovada. “Entre adquirir uma ambulância e fazer uma reforma e ampliação do acervo de uma biblioteca, dificilmente um gestor vai ter condição de optar pela biblioteca. E ambos são fundamentais”, exemplifica. E completa: “Trata-se de um equívoco histórico trocar o estratégico pelo emergencial”.

Na avaliação de Áquilas Mendes, a PEC do Pacto Federativo não mexe em nada do que é realmente essencial. O debate, diz ele, deveria se dar sobre a participação de cada ente federado no bolo que financia essas políticas sociais. “A gente só assistiu à redução da participação do governo federal no gasto total da saúde. O que cresce é o gasto dos municípios, que são responsáveis pelas políticas sociais, mas sem nenhuma medida efetiva de alteração na arrecadação”, diz. Na educação não é diferente. “Quer-se reduzir o problema à ideia de falta de autonomia dos municípios”, critica Áquilas, que completa: “A arrecadação fiscal caiu de forma abrupta, inclusive nos municípios, onde a situação está no limite. Dizer que a PEC do Pacto Federativo vai tirar amarras para que se possa ter melhor investimento é ficar falando de trocos em vez de se mexer na questão basilar”. E nem a promessa de descentralização dos recursos do pré-sal alivia a queixa: “Estamos falando de um recurso que está por vir. Precisamos também mexer na distribuição do que já existe”, opina Alberto Beltrame, do Conasems.

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