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Medicamentos essenciais e saúde global

A medicalização crescente dos programas de intervenção na saúde global foi tema de palestra de professor da Universidade Johns Hopkins.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 18/11/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No último dia do Congresso de Ciências Humanas e Sociais em Saúde, dia 16 de outubro,  o professor de história da medicina da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos, Jeremy Greene, proferiu palestra sobre a crescente centralidade dos medicamentos nas discussões e propostas de intervenção na área de saúde global em agências multilaterais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e entidades filantrópicas como a Fundação Bill e Melinda Gates. Segundo ele, vive-se hoje um processo de “farmaceuticalização” da saúde global. “Nove dos 14 desafios lançados no Global Challenge da Fundação Bill e Melinda Gates se referem ao fornecimento de drogas farmacêuticas. Meio século atrás o papel dos farmacêuticos era menos óbvio, a Constituição da OMS de 1946 não mencionava drogas. O que sugiro é que isso não tem só a ver com o desenvolvimento tecnológico na área, mas também com mudanças políticas, epidemiológicas, etc”.

Essa, segundo ele, é uma discussão que vem se dando em paralelo à dos direitos humanos fundamentais, que na saúde se expressa especificamente na questão das chamadas drogas essenciais. Segundo Greene, a formulação de um conceito sobre o que seriam drogas essenciais foi objeto de debates na OMS a partir da década de 1970, quando algumas delegações de países “passaram a defender que era função da OMS prover fármacos essenciais para países em desenvolvimento”, afirmou Greene, que informou que os medicamentos essenciais foram entendidos como aqueles “indispensáveis, que devem estar disponíveis para toda a sociedade e cuja ausência significa uma falha de direitos humanos”, disse Greene. Para ele, desde o primeiro momento,essa questão gerou um conflito entre a necessidade de garantia da distribuição dos medicamentos essenciais, que passaram a ser considerados direitos humanos fundamentais, com interesses de mercado. “Ao mesmo tempo em que são um direito humano, as drogas essenciais ainda são commodities, compradas e vendidas no mercado. Há aí uma intersecção entre commodities globais, saúde humana e direitos humanos”, apontou.

Segundo Greene, a própria definição do que são consideradas drogas essenciais foi objeto de disputa. “A IFPMA [Federação Internacional de Produtores e Associações Farmacêuticas] rejeitou a noção de que boa parte de seus produtos não era essencial, pedindo para que fosse usado o termo drogas básicas. O medo era que se enraizasse nos países desenvolvidos essa ideia de medicamentos essenciais, limitando mercados lucrativos do norte global ”. O professor da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos informa ainda que o lobby da indústria no interior da OMS contribuiu para que a listas de droga essenciais deixasse de lado drogas novas, com alto potencial de carrear lucros, fazendo com que fossem consideradas essenciais apenas as drogas há mais tempo no mercado, em muitos casos consideradas ultrapassadas.  Greene indica que como resultado da emergência desta discussão, países com indústria farmacêutica forte começaram a pressionar para que a OMS se abstivesse de regular essa questão, que se concretizou na apresentação, por parte dos Estados Unidos, de uma resolução nesse sentido. Rejeitada a resolução, o país deixou de fazer sua contribuição financeira para a OMS, que compunha 25% do orçamento da entidade. “Quando os Estados Unidos voltam a pagar em 1988, o programa de drogas essenciais já era um programa lateral dentro do departamento de farmacêuticos da OMS, que começou a se tornar menos central na forma como programas internacionais de saúde são definidos”.

Quando essa discussão ressurge com força  no contexto da eclosão da epidemia de HIV/Aids, a demanda partiu de fora da entidade, informa o professor que completa que ao não colocar em sua lista de drogas essenciais medicamentos protegidos sob patente, a OMS deixou de fora os antirretrovirais, que combatem o HIV, o que gerou críticas por parte de ONGs como a Médicos sem Fronteira (MSF). “A MSF se preocupava com a desatualização da lista, e entendia que a OMS encorajava a distribuição de drogas já ultrapassadas para países em desenvolvimento, restringindo o acesso a novas tecnologias. Foram três anos entre o pedido pela inclusão dos antirretrovirais e sua inclusão na lista de drogas essenciais, e nesse tempo milhares de pessoas morreram, principalmente em países africanos. Houve um entendimento de que essa discussão teria que se dar fora da OMS, considerada ultrapassada”, explanou Jeremy Greene.

Ele apontou que a partir daí ganhou força uma formação política nova, que privilegia grupos de doadores e ONGs, como a MSF, em detrimento de agências multilaterais como a OMS. “Nesse contexto a indústria farmacêutica se redefine, com as empresas passando a se identificar como ‘companhias de saúde global’. Muitas companhias apoiam a chamada ‘farmacofilantropia’, que entende que as drogas são produtos privados mas podem ser doados por magnanimidade da ação individual. As companhias vêm com programas de drogas essenciais, rearticulam o conceito de drogas essenciais de forma a não ameaçar o controle sobre essas drogas. Há uma transferência dessas discussões da OMS, que é uma agência multilateral, que precisa justificar suas políticas e gastos, para entidades como a Fundação Gates, que não precisa”, analisou. Greene terminou sua palestra apontando que essa é uma área ainda pouco explorada nos estudos sobre saúde, que ele entende como importante num processo de ‘comodificação’ dos direitos humanos na área da saúde.