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Na dúvida, a culpa é do aposentado

Brasil tomará diversas medidas até o fim do ano para alcançar as metas do superávit primário estabelecido pelo FMI e já aponta possíveis culpados das despesas do Governo.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 14/11/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Em nota oficial destinada à imprensa, o Banco Central anunciou que o setor público registrou déficit primário de R$ 9 bilhões em setembro de 2013e o Governo Central apresentou déficit primário de R$ 10,8 bilhões no mesmo mês. No dia seguinte, as notícias de jornais e especialistas já apontavam a consequência: o Brasil não conseguirá alcançar as metas do superávit primário se não tomar providências. Como uma das soluções para este cenário é a redução, principalmente, dos gastos sociais, duas propostas centrais já foram apontadas: frear as despesas com o seguro desemprego e com a previdência social. A primeira foi anunciada pelo Ministro da Fazenda, Guido Mantega, que já estudou alternativas que possam diminuir custos e coibir fraudes ao pedir o seguro desemprego. A segunda vem sendo atacada ao longo do tempo, e em tempos de vacas magras é sempre lembrada como maneira de enxugar o orçamento público.

Uma das principais razões para o clamor da reforma é que a previdência é deficitária, ou seja, atualmente o financiamento dela determinado pela Constituição - contribuições por parte do empregador por meio da folha de salários, receita ou faturamento e lucro; dos trabalhadores e segurados da previdência social, concursos de prognósticos (loteria, por exemplo) e impostação de bens e serviços - não são suficientes. Realidade desmentida por diversos grupos de pesquisadores.

"Se a gente for analisar o orçamento, sem a DRU [Desvinculação de Receitas da União], ele tem um superávit constante. Além disso, a previdência só pode ser considerada deficitária se analisarmos só as folhas de pagamento como financiadora, mas existem outras formas. Nos anos 2000 a 2007, 45% do financiamento ficou em torno de empregados e empregadores, seguido de 25% da Cofins", explica Giselle Souza, professora assistente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS).

Outro grande mito é de que o sistema previdenciário brasileiro é generoso. Para o professor da Universidade de Brasília (UNB) Evilásio Salvador esta realidade não é tão cheia de benesses assim. Segundo ele, 75% das aposentadorias outorgadas são por idade, e a idade média gira em torno 66 anos para os homens e 61 anos para as mulheres, entre os trabalhadores da área urbana. Outro ponto que ele coloca em questão é de que para se aposentar no Brasil é preciso seguir uma série de exigências, muito acima de diversos países. "A situação é preocupante no Brasil pela falta de proteção social e pela falta de um mercado de trabalho plenamente assalariado. Nenhuma proposta de reforma da previdência pode ignorar a heterogeneidade social do Brasil e a precariedade do nosso mercado de trabalho", indica. O professor defende, na verdade, a universalização da previdência social e aponta que 20% da população idosa no país não recebe nenhum benefício social.

Reformas ou contrarreformas previdenciárias

A primeira reforma ou contrarreforma, como especialistas costumam apontar pelo seu caráter recessivo, veio com a aprovação da Emenda Constitucional nº 20 (EC 20), em dezembro de 1998. A partir dela, diversas Medidas Provisórias puderam ser aprovadas pelo Congresso e um conjunto de leis entrou em vigor, como a 9876/99, que modificou a regra dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Com a EC 20, foi possível eliminar regimes especiais de aposentadoria, restringir aposentadorias graduais e instituir o criticado fator previdenciário.

A segunda contrarreforma foi instituída em 2003, com a Emenda Constitucional 41 (EC 41), que redesenhou a previdência dos servidores públicos, tema que não tinha sido alterado na mudança de 1998. Um dos destaques da EC 41 foi a aprovação da contribuição dos inativos.

Todas essas reformas tiveram como ponto central a preocupação com o processo de envelhecimento dos brasileiros. Segundo dados do relatório ‘Terceira reforma da previdência: até quando esperar?', da pesquisadora do Centro de Estudos de Consultoria do Senado, Meiriane Nunes Amaro, publicado em 2011, a proporção de idosos (a partir de 60 anos) na população total do Brasil triplicará nos próximos 40 anos, passando de 6,8% para 22,7%. "O impacto desse envelhecimento na previdência social é enorme", conclui.

Neste documento, a pesquisadora Meiriane Alves propõe que a terceira reforma venha com diversas mudanças como na questão da carência da aposentadoria por idade. Ela propõe que a carência passe a ser de 65 anos para homem e mulher, hoje é de 65 anos para homem e 55 para mulher. No tempo de contribuição, a sugestão é que seja de 35 anos para ambos os sexos, hoje, as mulheres precisam de 30 anos; além disso, professor em sala de aula e trabalhador rural também contam com um diferencial de cinco anos de tempo para contribuição. A nova proposta pretende o fim deste diferencial; assim como defende o fim da vinculação entre o piso da previdência e o salário mínimo.

O professor Evilásio contesta as reformas e a forma que a aposentadoria tem sido tratada. "Ela não pode estar sob um olhar meramente fiscal, tem que ser vista como um direito social. "Por que eu tenho que ter um orçamento superavitário da previdência? Ela deve dar lucro? Ela tem que ter superávit? Se eu entendo como direito, o Estado tem o dever de garantir. Além disso, historicamente, os trabalhadores participam solidariamente com o financiamento deste direito. O Estado é apenas o intermediário deste fundo que garante este direito. É claro que existem ajustes a serem feitos, mas não é um problema estrutural de finanças públicas, são problemas que não precisam de reforma para serem compreendidos", reflete.

O diretor financeiro da Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (COBAP), Nelson Osório, diz que os aposentados estão preocupados com os rumos da previdência social. "O Governo quer tornar todo mundo salário mínimo. E nos porões de certos gabinetes da Câmara e do Senado, há projetos tramitando e sendo base de estudo para que existam dois tipos de salário mínimo, um para o trabalhador na ativa e outro para a aposentadoria e pensões. Aposentado não é para viver", reflete e emenda: "Uma filósofa francesa chamada Simone de Beauvoir dizia que existem certos setores da sociedade com um complô silencioso que procuram perpetuar a ideia de que a velhice deve ser uma fase temida da vida em que você se torna um peso para a família e um peso para sociedade. Isso parece que permeia o nosso Estado, com as ações do governo que acabam matando os aposentados de carência. O Legislativo não legisla em benefício do aposentado e o Judiciário também não está do nosso lado. Isso é a política neoliberal, o Estado não está do nosso lado", reflete Nelson.

Fator previdenciário e gestão quadripartite

Assunto que veio na onda das manifestações de junho, o fim do fator previdenciário passou a ser pauta da presidência da república na ocasião, mas, até agora, não há nenhuma mudança prevista até as eleições, como informou a assessoria do Ministério da Previdência Social à EPSJV/Fiocruz. O fator previdenciário, que foi aprovado em 1999, varia o índice de acordo com a idade do segurado, seu tempo de contribuição, taxa de contribuição e a expectativa de sobrevida da população, calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Especialistas apontam que, após o fator previdenciário, os trabalhadores passaram a ter de trabalhar sete anos a mais para conseguir o valor que ganharia antes dele.

Para pressionar a derrubada do Fator Previdenciário, as centrais sindicais estão convocando um ato em Brasília em frente ao Banco Central no dia 26 de novembro, momento em que o Conselho de Política Monetária estará reunido para definir a taxa básica de juros.  O senador Paulo Paim (PT/RS), autor do projeto PL 3299/08, que pede o fim do fator previdenciário disse que fará pressão aos presidenciáveis em 2014. "O fator previdenciário, criado no ano de 1998, atinge o trabalhador celetista da ativa, ou seja, aquele que contribui para o INSS. Essa fórmula retira, no ato da aposentadoria, 50% do salário da mulher e 45% do salário do homem. Uma crueldade, maldade, uma afronta a quem trabalhou e ajudou no desenvolvimento do nosso país. Outra coisa: é inadmissível que no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, em que o teto é de R$ 30 mil, a aposentadoria é integral e não exista fator previdenciário. E por que no Regime Geral da Previdência Social, em que o teto é de R$ 4.159,00, o fator previdenciário é aplicado? Não há explicação" explicou o Senador em audiência realizada no dia 30 de outubro de 2013 no Senado. O PL proposto por Paim prevê a alteração do artigo 29 da lei que regula o Regime Geral da Previdência Social (lei 8.213/91), modificando a forma de cálculo da renda mensal inicial dos benefícios. 

Duas propostas já foram apresentadas para substituir o fator previdenciário, a chamada Fórmula 85/95, que soma a idade ao tempo de contribuição até atingir o valor 85 para as mulheres e 95 para os homens. A proposta é a mais aceita pelos representantes dos trabalhadores e defendida pelo senador Paulo Paim. E a 95/105, projeto que faz a mesma soma entre a idade e o tempo de contribuição, mas com resultado que chega a 95 anos para mulheres e 105 anos para homens, do deputado federal Pepe Vargas (PT/RS). A COBAP considera esta última proposta pior que o fator previdenciário.

O senador Paulo Paim apresentou ainda o projeto PLS 178/2007, que, após cinco anos, passou a tramitar no dia 13 de novembro de 2013, e está na Comissão de Assuntos Sociais pronto para ser pautado na comissão. O projeto regulamenta o inciso VII do parágrafo único do art. 194 da Constituição Federal, que dispõe sobre a gestão quadripartite da seguridade social, a cargo dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

"Hoje quem gere é o governo e nós reivindicamos a criação do Banco da Previdência Social com a gestão quadripartite. Os trabalhadores, aposentados e patrões devem ter voz nas decisões, já que eles também contribuem, então têm que ter o voto. Isso faz parte de nossa agenda, definida em um congresso, para começarmos a pressionar os governos. O mínimo que a gente quer é pedir o mesmo aumento que teve o salário mínimo", explicou Nelson Osório, da COBAP.

O outro lado da força

Enquanto a previdência é discutida como forma de enxugar custos do Governo, diversas iniciativas vem sendo tomadas para desonerar e isentar empresas com o que poderia servir para financiar esses custos. Até agora, foram mais de R$ 200 bilhões de renúncia tributária, de acordo com a avaliação do professor da UNB, Evilásio Salvador. "As desonerações fiscais estão drenando recursos da seguridade para a acumulação de capital. O Governo abre mão de mais de 20% da arrecadação ao conceder renúncias tributárias em nomes de empregos que nunca são concretizados. O que acontece é que só aumentam a margem de lucro dos empresários às custas de despesas que deveriam ser realizadas na área social. Mas, isso não é novidade deste Governo. O fundo público é objeto de disputa dentro de uma sociedade capitalista. Ele deve atender às demandas sociais e também à acumulação de capital. E nesse momento parece que o capital está levando a melhor", explica o professor.

A professora da Unirio, Giselle Souza, concorda com Evilásio e historiciza: "No tempo do FHC, aconteceu quase uma reforma tributária regressiva, camuflada por tantas modificações que trouxeram prejuízo para o orçamento público. Ao mesmo tempo, os governos do PT vêm também nessa tentativa. O novo processo de desenvolvimento nacional, que alguns entusiastas vão chamar de neodesenvolvimentista, é completamente questionável, porque nossa política econômica ainda está muito centrada no sistema financeiro e a vulnerabilidade externa não diminuiu, o que descaracteriza o desenvolvimentismo", explica.