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No Congresso e no STF, avançam perigos para Saúde e Meio Ambiente

Projetos de Lei visam desregulamentação de controle ambientale desconsideram conceito de “saúde única” (One Health) da Organização Mundial da Saúde. Consequências são graves para a saúde pública
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 17/11/2023 12h07 - Atualizado em 21/11/2023 16h27

A pandemia da Covid-19 demonstrou, ao custo de milhões de vidas: seres humanos, animais e meio ambiente estão interligados e ninguém está alheio ao fato de que uma ocorrência em determinado local possa se espalhar por toda a população global. Esse entendimento está na base do conceito de “saúde única” (One Health), que a Organização Mundial da Saúde tem promovido e que, de acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, “é uma abordagem global multisetorial, transdisciplinar, transcultural, integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas. Reconhece que a saúde de humanos, animais domésticos e selvagens, plantas e o meio ambiente (incluindo ecossistemas) estão intimamente ligados e são interdependentes”.

Segundo a Pasta, a abordagem de saúde única inclui temas como a segurança alimentar e controle de zoonoses; resistência aos antibióticos; controle de contaminantes químicos, biológicos e físicos; e vigilância em saúde; entre outros. Nessa perspectiva, portanto, preservar o meio ambiente não protege o ser humano apenas de novas pandemias virais, mas também permite maior previsibilidade na produção de alimentos e outras atividades econômicas.

O conceito de saúde única, no entanto, parece não ter chegado aos corredores do Congresso Nacional. No momento em que esta reportagem foi concluída, no início de novembro, avançavam no Legislativo alguns projetos de lei com impacto direto na relação saúde e ambiente, entre eles, propostas para reduzir a política ambiental, permitir atividade exploratória em territórios indígenas e inviabilizar a fiscalização do uso de agrotóxicos no Brasil.

E o tema tem ocupado também as pautas do STF: apesar da decisão da Corte contra a tese do Marco Temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito a ocupar as terras em que já estavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, no momento em que este texto foi terminado o acórdão ainda não tinha sido publicado. E a polêmica teve novos capítulos no Congresso que, contrariando a decisão do Supremo, votou um projeto (o PL 2903/2023) a favor da tese e, depois de ver seus pontos principais vetados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçava derrubar os vetos. Também no STF continuava em pauta a deliberação sobre benefícios fiscais para agrotóxicos.

Se aprovadas, essas iniciativas podem impactar a atividade de órgãos do Executivo, como o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e sua Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima e seus órgãos, além da atividade reguladora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

‘A mãe de todas as boiadas’

Organizações ambientalistas alertam que o Projeto de Lei 2.159, aprovado na Câmara dos Deputados em 2021 e previsto para entrar na pauta do Senado neste final de 2023, foi apelidado de “a mãe de todas as boiadas” por descaracterizar o licenciamento ambiental no Brasil, privilegiando o chamado “autolicenciamento”.

O projeto dispõe sobre o licenciamento ambiental para instalação de obra, empreendimento ou atividade potencialmente causadora de degradação do meio ambiente, que demande Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA). Apresentado incialmente com o Projeto de Lei 3.729/2004 pelos então deputados federais Luciano Zica (PT-SP), Walter Pinheiro (PT-BA) e Zezéu Ribeiro (PT-BA), o texto tramitou na Câmara dos Deputados por 17 anos, até ser aprovado em 2021 e ser remetido pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), ao Senado Federal, onde se converteu no PL nº 2.159/2021.

A proposta regulamenta o artigo 225 da Constituição Federal na parte em que a Carta afirma que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, e altera as leis 9.605/1998 – que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente – e 9.985/2000 – que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza –, além de revogar dispositivo da Lei 7.661/1988 – que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.

Em sua Nota Técnica 002/2021, logo após a aprovação da Câmara dos Deputados, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) afirmou que “o PL nº 2.505/2021 atinge o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente, notadamente quanto às suas dimensões organizacional e procedimental, materializadas nos instrumentos da política nacional de meio ambiente e nos princípios e diretrizes do Direito Ambiental, como a avaliação prévia de impacto ambiental, a prevenção e a precaução”.

O PL autoriza, de forma genérica e abstrata, a dispensa de licenciamento para uma série de atividades e empreendimentos ao abrir mão de critérios técnicos para a definição do que seria “significativo impacto ambiental”, exigindo apenas a autodeclaração do empreendedor. Na avaliação da ANPR, e “ao contrário do que pretende, o PL nº 2.159/2021 acarreta o aumento da insegurança jurídica, pois desrespeita a prática do licenciamento como controle do risco ambiental, além de violar frontalmente a Constituição Federal, a legislação internacional e diversos princípios do direito ambiental”, como aponta a nota técnica.

Para Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), o PL 2.159/2021 tem o poder de destruir a Política Nacional de Meio Ambiente. “O licenciamento ambiental é o principal instrumento dessa política, desde que ele surge após a Conferência de Estocolmo, em 1972. Essa foi a primeira conferência mundial sobre o meio ambiente e já debateu a prevenção da poluição ambiental e seus impactos sobre a saúde humana. É [a partir] desse debate que começam a ser implementados processos de licenciamento no Brasil, em primeiro lugar no Rio de Janeiro, em 1975; depois em São Paulo, em 1976; e em 1981 ele passou a se aplicar a toda e qualquer atividade em âmbito nacional. Desde então todas as atividades que geram algum nível de impacto ambiental precisam de um licenciamento prévio. E o PL, em verdade, acaba com isso”, detalha. E completa: “Entre 98% e 99% do licenciamento ambiental atualmente realizado no Brasil seria transformado em um documento de autodeclaração sem análise prévia por parte dos órgãos ambientais, seja no município, no estado ou da União, sem análise humana, fiscalização. Simplesmente o empreendedor apresenta essa autodeclaração e obtém a licença de forma automática”.

Retrocesso de 40 anos

Para o consultor, a aprovação dessa mudança pode fazer o Brasil rever problemas de saúde pública sanados há cerca de 40 anos, quando o licenciamento nos municípios inexistia ou ainda não era possível observar seus resultados.

O caso mais emblemático é o da cidade de Cubatão (SP), que chegou a ser apontada pela ONU como “cidade mais poluída do mundo” antes de adotar o licenciamento das emissões de gases industriais. “Até o início dos anos 1980, a cidade de Cubatão era um exemplo dos impactos da falta de licenciamento e fiscalização na saúde pública. Ali se observaram níveis bem acima da média de crianças que nasciam anencéfalos”, diz.

Guetta usa o exemplo da Vila Parisi, bairro residencial próximo a indústrias de petróleo, metal-mecânica e de fertilizantes da cidade paulista. Entre outubro de 1981 e abril de 1982, das 1,8 mil crianças que nasceram na cidade, 37 naquele bairro já nasceram mortas, outras apresentavam problemas neurológicos e anencefalia. Cubatão era líder em casos de problemas respiratórios no país, e ficou conhecida como “Vale da Morte”.

Ele cita ainda a situação dos aterros sanitários espalhados por todo o Brasil, que antes da obrigatoriedade de contarem com licenciamento ambiental por parte dos municípios “eram lixões a céu aberto, com contaminação de lençol freático e das populações locais. Poluímos os rios brasileiros e isso gerou grande impacto na saúde das populações locais”, ilustra o consultor, fazendo menção à poluição produzida pelo chorume, líquido gerado pela decomposição do lixo doméstico que se dissolve em substâncias orgânicas e inorgânicas, como arsênio, cobalto, cobre, chumbo e mercúrio, e que tem o potencial de contaminar, a partir das chuvas, o lençol freático e chegar a lagos, rios e minas.

De acordo com Guetta, o alcance do PL é quase total. “Mineração, agropecuária e empreendimentos de impacto ficariam dispensados de licenciamento, ou seja, não passariam por qualquer controle prévio por parte do Estado. Fizemos um estudo a partir de uma informação oficialmente apresentada pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais e, se o projeto for aprovado, 86% dos empreendimentos minerados e suas barragens de rejeitos poderiam passar a ser licenciados por essa modalidade de adesão e compromisso”, afirma.

O consultor alerta que o projeto retira o Ministério da Saúde da participação dos licenciamentos ambientais. “Isso é muito grave, porque a Saúde historicamente tem atuado no licenciamento para conter os efeitos negativos de empreendimentos quando observamos os casos que envolvem desmatamento. O estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ‘A ameaça do desmatamento’, de 2015, analisou todos os municípios da Amazônia Legal e, a partir dos registros em hospitais, identificou que um aumento de 1% no desmatamento de um município pode elevar em até 23% o surgimento de casos de malária no local. Então, o Ministério da Saúde tem atuado historicamente para prevenir esse tipo de coisa, orientando para as medidas que devem ser adotadas quando um empreendimento for licenciado. E a Pasta está sendo simplesmente excluída do processo”, diz.

Outro foco de preocupação do jurista é com o uso dos recursos hídricos e a qualidade do ar. Em seu artigo 8º, o PL propõe que não estejam sujeitos a licenciamento ambiental “sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário”. Já no artigo 12, o projeto propõe que “a entidade licenciadora pode exigir do empreendedor, no âmbito do licenciamento ambiental, medidas específicas relativas à prevenção, à mitigação ou à compensação da emissão de gases de efeito estufa (GEE), bem como de medidas de adaptação às mudanças climáticas.”

“É bastante grave e com alto impacto sobre a saúde pois, sem controle da poluição da água, haverá impacto direto na Saúde Pública, assim como os impactos da poluição atmosférica. Basta observar o que está ocorrendo em Manaus (AM) [a fumaça de queimadas afetou qualidade do ar na capital amazonense por semanas consecutivas] e o impacto nas consultas e internações por doenças respiratórias”, ressalta. Sobre isso, o estudo ‘Amazônia brasileira: potenciais impactos das queimadas sobre a saúde humana no contexto da expansão da Covid-19’, feito em parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Fundo Mundial da Natureza (com a sigla WWF, em inglês) já havia apontado que as queimadas na Amazônia foram responsáveis pela elevação dos percentuais de internações hospitalares por problemas respiratórios entre os anos 2010-2020, e que estas internações custaram quase R$ 1 bilhão ao Sistema único de Saúde (SUS).

A Poli tentou entrevistar e também enviou perguntas por escrito para a relatora do PL 2.159/2021 na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal, Tereza Cristina (PP-MT), sobre os pontos levantados na matéria mas, até o fechamento desta edição, não obteve resposta.

‘Marco Temporal’ e seu impacto na saúde indígena

A tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas foi derrubada pelo STF em setembro, mas apenas uma semana depois o Senado aprovou o PL 2.903/2023, que vai na contramão da decisão do Supremo. Apresentada pelo deputado federal Homero Pereira (PR-MT) em 2007, a proposta “estabelece que as terras indígenas serão demarcadas através de leis”, altera a Lei 6.001/1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, e regulamenta o artigo 231 da Constituição para “dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas”.

Após uma década e meia de tramitação, e apenas uma semana após o STF declarar a inconstitucionalidade da tese, o PL foi aprovado e vetado parcialmente pelo presidente da República, mas o Parlamento se movimentava para derrubar os vetos presidenciais e provocar um enfrentamento ao Supremo.

De acordo com o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Dinamam Tuxá, a busca parlamentar pela aprovação da tese atendia aos interesses econômicos de segmentos do agronegócio e da mineração ao dificultar a demarcação de terras demandadas por indígenas e permitir atividades econômicas mesmo em territórios demarcados. “Corporações como as grandes empresas de soja e setores [do agronegócio] com relações no Congresso Nacional e atuação na Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) estão no Parlamento defendendo este projeto. Assim como empresários da mineração que são mais cautelosos em suas falas públicas mas fazem lobby pela mineração dentro das terras indígenas. Estão de olho em metais nobres necessários para as baterias do futuro, da dita ‘transição energética’, e isso tende a aumentar a escalada de violência, de tentativa de esbulho possessório, de deslocamento de povos indígenas para a extração desses minérios. Não é só ferro ou ouro”, atesta.

Piora na saúde mental

A mineração e o garimpo, aliás, são os principais causadores de preocupação quando o coordenador da APIB faz a relação entre a tese do Marco Temporal e a Saúde, seja dos povos indígenas, seja do território – o meio ambiente – em que vivem. “A mineração ilegal, através da invasão de terras indígenas, foi invisibilizada nos últimos meses, embora continue ocorrendo, assim como a atividade legalizada. Belo Sun vai ser a maior mina de ouro a céu aberto do mundo e já está causando impactos só com a mera tramitação do empreendimento”, afirma Tuxá, referindo-se ao empreendimento da mineradora canadense Belo Sun Mining Corp., que pretende construir uma mina na Volta Grande do Xingu, no Pará. A Articulação produziu o relatório ‘Mina de Sangue’, sobre o empreendimento, no qual atesta que a empresa omite “informações acerca dos prováveis impactos que a mineração irá causar na região, como por exemplo a contaminação dos recursos hídricos com mercúrio, cianeto, arsênio e antimônio”.

Para Tuxá, a alimentação saudável, com impactos positivos na promoção da saúde, também é prejudicada nos territórios em disputa de demarcação, aqueles impactados pela proposta do Marco Temporal. “Observamos o surgimento da escassez de alimentos nas áreas onde há garimpo e conflitos ambientais com pecuaristas, por exemplo. Se o texto do Marco Temporal vigorar, haverá, sem sombra de dúvida, o aumento do desmatamento e da contaminação dos mananciais, dos rios, enfim, das proximidades das terras indígenas ou dentro dessas terras. Isso leva ao aumento da contaminação por mercúrio. É só observarmos os casos concretos recentes entre os Munduruku, os Yanomami e os Kayapó, em que o peixe transita por trechos de rio contaminados. Essa contaminação sobe pelos mananciais e chega aos igarapés, contamina o solo onde plantamos. O desmatamento também reduz a cadeia alimentar, animais somem”, relata. E conclui: “A aprovação desse projeto traria uma calamidade sem precedentes para nossos povos”.

O coordenador da APÌB demonstra especial preocupação com a saúde mental dessas populações. “Nós vivemos sob um cenário de muita pressão e de muita violência com implicações sérias sobre a saúde psíquica”, diz. Sua avaliação é corroborada pela pesquisa ‘Suicídio entre povos indígenas no Brasil de 2000 a 2020: um estudo descritivo’, feita por pesquisadores da Fiocruz e da Universidade de Harvard e publicado na revista científica The Lancet, que atestou que a incidência de suicídio entre indígenas é de duas a três vezes maior do que na população brasileira como um todo. Ainda de acordo com a pesquisa, crianças, adolescentes e jovens indígenas de dez a 24 anos têm as maiores taxas de lesões autoprovocadas. Coautor do estudo, o epidemiologista Jesem Orellana incluiu a disputa por territórios entre os fatores que influenciam a incidência do suicídio entre essas populações. “Precisamos encarar o suicídio indígena como um grave e invisibilizado problema de saúde pública, o qual pode ser influenciado por uma gama de peculiaridades contextuais e culturais, como conflitos territoriais, crises sanitárias, racismo estrutural, bem como questões de ordem econômica, política e psicológica”, concluiu, no estudo.

A reportagem solicitou entrevista ao relator do PL 2.903/2023 no Senado Federal, Marcos Rogério (PL-RO), sobre os temas aqui citados, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

‘Envenenamento’ livre de impostos

Em fins de outubro e início de novembro, foi retomado pelo STF o julgamento sobre a concessão de benefícios fiscais aos agrotóxicos, ao mesmo tempo em que integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) se articulavam para agilizar a tramitação do Projeto de Lei 1.459/2022 na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal. Mais conhecido pela sugestiva alcunha de ‘PL do Veneno’, o projeto busca retirar os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente e da Mudança do Clima da reponsabilidade tripartite pela liberação e fiscalização do uso de agrotóxicos no Brasil, concentrando esse poder na Pasta de Agricultura e Pecuária, além de retirar a Anvisa e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) do controle dessas substâncias.

O Projeto de Lei estabelece ainda o impreciso conceito de “risco inaceitável” para a decisão de uso ou não de substâncias que estão sob escrutínio de pesquisas científicas para a comprovação de sua atividade carcinogênica e mutagênica. Em nota divulgada em 3 de outubro, a Fiocruz identifica “muitos retrocessos” no projeto, com destaque para “manutenção do conceito de risco que abre possibilidades, por exemplo, do registro de agrotóxicos que causem câncer”. E conclui: “Pequenas doses podem gerar danos irreversíveis à saúde das pessoas”.

No STF, o julgamento sobre redução de impostos para agrotóxicos – como a diminuição de 60% na base de cálculo do ICMS nas saídas interestaduais e a alíquota zero de IPI para substâncias relacionadas a defensivos agrícolas – foi paralisado em 27 de outubro, após a ministra Cármen Lúcia pedir vista. Já haviam votado cinco ministros, dentre eles o relator do caso, Edson Fachin, que se manifestou pela inconstitucionalidade da desoneração.

Sobre o PL e a votação no Supremo, Tchenna Maso, coordenadora do Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho de Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia, afirma que “o STF precisa acompanhar o voto do ministro Fachin, reconhecendo a inconstitucionalidade da isenção”, defendendo que é preciso “barrar o projeto de lei por todos os riscos que ele traz para a saúde e o meio ambiente”.

Maso demonstra preocupação especial com o uso do glifosato no Brasil. Em 2015, a Organização Mundial da Saúde classificou o glifosato como perigoso para a saúde humana e “provável cancerígeno para humanos”. Na União Europeia, a autorização de seu uso expira em 15 de dezembro de 2023; e nos Estados Unidos a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) está reavaliando o registro por decisão do Tribunal Federal de Recursos após a Suprema Corte ter condenado a Bayer, que comprou a Monsanto, a indenizar vítimas do glifosato, muitas delas por terem desenvolvido leucemia.

A pesquisa ‘Agricultural intensification and childhood cancer in Brazil’, da professora da Universidade de Illinois Marin Skidmore, foi divulgada em outubro deste ano e investigou a ligação entre a incidência de leucemia linfoblástica aguda em crianças e a expansão da produção de soja no interior do Brasil. O trabalho sugere que o glifosato usado nas plantações pode ter matado pelo menos 123 crianças de até dez anos ao longo de uma década.

De acordo com o trabalho, a principal via de contaminação por pesticidas nocivos na região são os lençóis freáticos, porque o padrão de aumento de risco por município segue o fluxo de rios e escoamento natural da água. De acordo com Maso, as consequências do glifosato são um exemplo do que pode ocorrer a partir da desregulamentação proposta pelo PL 1.459/2022. A expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste, região em que nascem importantes bacias hidrográficas do país, é um fator extra de preocupação. “O Centro-Oeste é o grande consumidor de agrotóxicos do país. O veneno é distribuído de todas as formas, incluindo voos rasantes sobre populações em territórios sob conflito, além dos trabalhadores rurais sem EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] adequados. Há relatos de comunidades com doenças na pele, alergias, dores de cabeça, dentre outros fatores”, cita a coordenadora.

A Poli tentou entrevistar o autor do PL 1.459/2022, Blairo Maggi (MT), sem que houvesse retorno até a conclusão da matéria.

Um ‘mercado’ sem seu maior agente

E essas não são as únicas ameaças na área ambiental. Tramita ainda no Congresso, por exemplo, o Projeto de Lei 1.818/2022, que prevê a criação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que pode restringir o poder do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de implementar o chamado ‘Manejo Integrado do Fogo’ – uso do fogo por meio de queimas prescritas e controladas pelo poder público destinado a prevenção e ao combate aos incêndios florestais –, que vem sendo defendido pelos corpos de bombeiros estaduais.

Já o Projeto de Lei 412/2022, que quer regulamentar o mercado de carbono no Brasil, já tramitou no Senado e será debatido na Câmara dos Deputados. O principal problema apontado é que o texto aprovado pelos senadores excluiu o agronegócio das obrigações previstas no Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). A decisão é digna de nota porque a maior parte da comunidade científica atribui ao “agro” o papel de maior emissor nacional de CO2.

 

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