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Nova Política Nacional de Informação e Informática em Saúde suscita questionamentos de especialistas

Falta de participação social na construção do documento, apresentado no final de julho pelo Ministério da Saúde, gera incertezas sobre rumos da nova política
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/08/2021 14h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Apresentada pelo Ministério da Saúde no final de julho, a nova Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS) vem gerando alguns questionamentos por parte de especialistas na área, que alertam para a baixa participação social em seu processo de construção e para o risco de que não seja capaz de fazer cumprir, por exemplo, o que diz a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – que entrou em vigor em agosto do ano ano passado – em relação à proteção de dados pessoais relacionados à saúde. E isso justamente em um cenário em que, em meio às medidas de isolamento social adotadas em função da pandemia de covid-19, a chamada telessaúde vem se dinamizando no país, dando relevância ainda maior para o tema do direito à saúde face à popularização do uso das tecnologias de informação e comunicação na área da saúde. 

Essa é a terceira edição da PNIIS: a primeira foi aprovada em 2003 e a segunda versão 12 anos depois, em 2015. “Como toda política estruturante do Sistema Único de Saúde, ela tem a função de articular certos elementos em função da realização do direito a saúde. No caso da PNIIS estamos falando daqueles elementos associados a implementação de tecnologias de informação e comunicação no SUS. Então por exemplo, a interoperabilidade entre os vários sistemas de informação - municipais, estaduais e nacionais - e como esses sistemas dialogam possibilitando uma otimização da gestão é um exemplo de um aspecto que a PNISS tenta solucionar”, explica o analista de saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Matheus Falcão.

Segundo ele, a atualização da política justifica-se em parte pela necessidade de adequação da PNISS à LGPD. “Existem proteções específicas na área da saúde dentro da LGPD, e esse novo quadro precisa ser implementado numa política que trabalha basicamente com o fluxo de dados”, diz Falcão.

A Lei, por exemplo, proíbe explicitamente que as operadoras de planos privados de saúde realizem o tratamento de dados pessoais de saúde para fazer a chamada seleção adversa, pela qual as operadoras poderiam cobrar mais caro ou recusar clientes que apresentem determinadas doenças.

Ainda segundo o analista do Idec, durante a pandemia de Covid-19 várias práticas ligadas a chamada telessaúde foram autorizadas no país, gerando a necessidade de uma atualização da PNIIS. “Isso abre todo um novo campo para que os profissionais de saúde e os gestores incorporem essas técnicas e possibilidades de assistência da telessaúde tanto no sistema público quando no setor privado”, afirma Falcão.

Por fim, diz ele, há ainda mudanças do ponto de vista socioeconômico, com o avanço muito rápido das tecnologias de informação e comunicação, que abrem novas possibilidades dentro dos sistemas de saúde. Nós podemos falar do uso de grandes bancos de dados, da tecnologia da inteligência artificial para tomadas de decisões no sistema de saúde, as tecnologias associadas ao telecuidado. Tudo isso abre um campo grande para implementação da saúde digital em favor do direito a saúde”, aponta o analista do Idec. E complementa: “Existe um potencial muito grande aí, mas existem também riscos, associados por exemplo ao uso indevido de dados pessoais, que a LGDP tenta proteger. Mas justamente nesse cenário de riscos e possibilidades é que PNISS deveria cumprir esse papel de articular esses elementos em favor do fortalecimento do SUS e da realização do direito à saúde”.


Baixa participação preocupa

Por tudo isso, a revisão da política já era esperada diz Falcão. “Mas o que se esperava é que ela contasse com mais participação social, mais discussão pública, que no nosso entender faltou”, diz ele. Esse foi um dos pontos questionados por uma nota assinada pelo Idec e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em agosto de 2020, quando a minuta da política foi submetida para consulta pública, inicialmente por um prazo de apenas 15 dias. “Entendemos que o debate foi restrito, com um prazo restrito. Deveria ter mais participação da sociedade, com audiências públicas e a participação do CNS que é a instância federal de participação social no SUS”, critica Falcão.

Segundo ele, a nota ainda questionou alguns pontos relacionados ao conteúdo da política. “Muitos conceitos importantes associados a área da robótica, da inteligência artificial, eram simplesmente copiados de empresas do setor privado, como transnacionais do setor de tecnologia de informação e comunicação, o que é uma limitação do ponto de vista de uma política de Estado. Identificamos ainda que faltavam menções a questão da privacidade e até mesmo uma articulação básica com a LGPD”, enumera Falcão. Com a abertura da consulta pública, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), da qual o Idec faz parte, montou um grupo de trabalho para analisar e apresentar propostas ao documento, algumas das quais foram incorporadas a PNIIS, segundo Falcão. “A nova edição incorpora elementos associados a privacidade a proteção de dados pessoais e também retira alguns conceitos problemáticos”, pondera, ressaltando em seguida: “No entanto, há desafios associados a implementação, do próprio momento que estamos vivendo. Grande parte da população brasileira é excluída do acesso à internet, por exemplo”.   


Incertezas

O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) José Mauro da Conceição, ressalta que as poucas alterações trazidas pela consulta pública não resolveram os problemas da nova PNIIS.

“O grande problema é que ela parte do princípio que as duas versões anteriores estivessem implantadas, como se tudo que foi previsto estivesse pronto. Eu destaco a questão da interoperabilidade, que seria a comunicação entre os vários sistemas de informação que o SUS tem. Mas eles não são interoperados. Muitas vezes lá na ponta, na Atenção Básica, o técnico tem que alimentar vários sistemas diferentes. Ele não alimenta um e esse um alimenta o restante, porque eles não são interoperáveis”, afirma Conceição, que critica o que chama de “visão informatizante”. “O SUS como um todo não tem estrutura para aplicar o que está sendo dito ali. Até onde eu sei, os dados arquivados em papel existem em toda a Atenção Básica, até onde já está informatizado. Até onde existe o eSUS implantado se cria documentos paralelos para apoiar. Muitos profissionais têm medo de perder as informações que sobem para o sistema”, diz o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, citando o caso recente do apagão em uma base de dados do CNPq por mais de 20 dias.  “Eu não vejo nada de impossível a gente perder o eSUS, perder as informações que estão lá nos sistemas de informação em saúde”, alerta.

José Mauro afirma ter “desconfianças” sobre como os dados vão ser armazenados e quem poderá acessá-los. “Nós não temos uma infraestrutura que a gente possa confiar que esses dados não serão utilizados de maneira indevida. A gente tem muito pouca informação de como isso vai funcionar. Como é que é essa infraestrutura? Quem administra essa infraestrutura, essa nuvem pública de dados em saúde? Essa nuvem tem que ser pública, mas ela vai ser administrada pelo setor privado? Como uma empresa? Ou o governo vai constituir uma rede de grandes computadores para administrar essa rede? São questões que estão invisibilizadas nessa discussão”, afirma José Mauro, lembrando o vazamento de senha que expôs os dados de milhões de pacientes de covid-19 no final do ano passado. “Durante a pandemia foi coleta de dados para tudo que é lado, com software A, software B, monitoramento daqui, dali. Você tem uma massa de dados gigantesca na mão do governo, muitas das vezes em parceria com o setor privado. Eu posso não querer que meu dado esteja em uma empresa, é um direito meu, ou pelo menos saber que empresa é essa, que empresa é essa que está gerenciando meu dado. Então me incomoda essa falta de clareza da política nesse momento, além da falta de participação na sua construção. Eu não sei quem são os interlocutores do Ministério nessa discussão e não sei quais são os interesses envolvidos, isso é ruim”, destaca.

O Ministério da Saúde não respondeu à solicitação feita pelo Portal EPSJV/Fiocruz.

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Vazamentos de dados pessoais de saúde reforçam urgência do debate sobre privacidade, proteção de informações sensíveis e direitos no ambiente digital
Ao longo da última semana, o jornal O Estado de São Paulo publicou reportagens denunciando dois casos de vazamentos de dados que jogaram luz sobre as brechas existentes na governança dos dados pessoais dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre o risco de que elas sejam exploradas para fins comerciais. Um deles envolveu a publicação de senhas do Ministério da Saúde em uma plataforma aberta de compartilhamento de códigos de programação para o desenvolvimento de softwares por um funcionário do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, envolvido em uma pesquisa para a qual o hospital obteve do Ministério da Saúde acesso a dados de milhões de pacientes com suspeita ou diagnóstico confirmado de Covid-19. Já outra reportagem, do dia 2 de dezembro, apontou que, por pelo menos seis meses, falhas de segurança no sistema de notificações da Covid-19 do Ministério da Saúde deixaram expostos, dados pessoais de mais de 200 milhões de cidadãos. Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), José Mauro da Conceição Pinto, os casos expõem os problemas inerentes ao processo de informatização do SUS, que, segundo ele, vem sendo feito ‘a toque de caixa’, principalmente em meio à pandemia do novo coronavírus. Ele teme que a crise sanitária deixe a ‘porteira aberta’ para o avanço de interesses privados ligados à chamada telessaúde e também de seguradoras e do setor farmacêutico, entre outras, que têm interesse comercial nos dados pessoais de milhões de brasileiros que não necessariamente aceitaram compartilhá-los, como rege a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 2020.