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O Censo Demográfico está de volta

Tirar do papel a décima terceira edição do principal levantamento sociodemográfico do país não foi tarefa fácil e especialistas explicam qual a importância dos dados coletados para as políticas públicas
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 26/04/2023 15h17 - Atualizado em 31/10/2023 10h28

IBGENo momento em que essa revista chegar em suas mãos, é possível que os dados do Censo de 2022 já tenham sido publicados. Em novo prazo anunciado pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os resultados oficiais seram anunciados no final de junho. O principal levantamento socioeconômico do país deve ser realizado a cada dez anos, mas o que se viu foi um adiamento por mais de dois anos. A coleta foi finalizada oficialmente em fevereiro de 2023, mas continua em alguns segmentos específicos, como a da população de alta renda, que registrou alta taxa de recusa nas respostas. Esse atraso não foi apenas no Brasil. “Entre os países que tinham a previsão de realizar o censo em 2020, apenas México e Estados Unidos conseguiram iniciar a coleta de dados”, diz Paulo Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE. Sem descartar o papel da pandemia no atraso da coleta, Jannuzzi pondera que não foram apenas as condições sanitárias que impediram a realização do trabalho, mas também a falta de previsão orçamentária. “Ainda que nós não tivéssemos tido a Covid-19, seria muito difícil realizar o Censo em 2020 pela falta de recursos suficientes para a realização do Censo com a complexidade que nós temos no Brasil”. Uma vez divulgado, o Censo 2022 trará um retrato importante das consequências da pandemia, além de fornecer aos país indicadores chave sobre as condições de vida da população e servir de base para todos os estudos que fazem amostras a partir de dados de número de habitantes.

A realização do levantamento saiu do papel após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em resposta a uma ação do governo do Maranhão solicitando sua realização ainda em 2021, diante da necessidade de atualização das estatísticas em meio a pandemia de Covid-19. O pedido veio após o segundo ano consecutivo de baixa previsão orçamentária e a decisão do Instituto de cancelar o levantamento. Apesar de o orçamento inicial de 2021 destinar R$ 2 bilhões para o Censo, o Congresso limitou esses recursos em R$ 71 milhões. Coube ao STF decidir pela obrigatoriedade da realização do levantamento, com orçamento recomposto, mas ao contrário do pedido feito na ação, foi estipulado 2022 como prazo.

Além da falta de orçamento, outro elemento já anunciava que a obtenção de recursos para pesquisas estatísticas não seria fácil no governo anterior: a ausência de um Ministério do Planejamento. É de responsabilidade desse Ministério a realização do Plano Plurianual da União (PPA). O PPA é responsável por definir diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal e prevê, entre outras coisas, os investimentos que serão feitos e os programas que serão mantidos. Cada Plano tem a duração de quatro anos e se inicia no segundo ano do mandato de um presidente. “O fato de não ter um ministério do planejamento é revelador da postura do governo anterior. Um governo que não vê a necessidade de um país como o Brasil ter planejamento de médio prazo, além disso, não ter qualquer compromisso com política pública”, pontua Jannuzzi. Wasmália Bivar, ex-presidente do IBGE, celebra o ressurgimento desse ministério com a mudança de governo e defende a estabilidade do órgão. “A gestão da informação não é uma questão de governo, mas uma questão de Estado”, diz.

A falta de interlocução da diretoria do IBGE com o governo federal também está entre os motivos para esse atraso. Para Jannuzzi, houve desconhecimento por parte da antiga direção sobre o funcionamento da coleta, em que se cogitou a realização da pesquisa de forma remota. “Imaginou-se que seria possível coletar muitas dessas informações via internet, via registros administrativos. Nos Países Baixos, há sistemas de políticas públicas em que todos os habitantes estão inscritos desde o nascimento. Você sabe quem tem emprego e quem não tem. Quem está doente e quem não está e qual é a doença. Você tem um sistema de registros administrativos que está interligado às políticas universais. Quando o indivíduo vai mudar de cidade, ele informa à prefeitura. No Canadá, mais de 80% das pessoas respondem pela internet. No Brasil não existe isso”.

Com o atraso, haverá necessidade de fazer ajustes nas estatísticas, explica Raphael Guimarães, professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). “Toda vez que o censo ultrapassa dez anos há um trabalho adicional nas projeções para considerar 12 anos em vez de dez, por exemplo. Um exercício que a gente também precisou fazer em 1991, quando o Censo de 1990 atrasou”, comentou. “Eu diria que o maior prejuízo, no entanto, foi o de não ter tido essa informação nos últimos dois anos, porque muitos municípios só têm a informação do Censo para poder agir”, diz Guimarães. Uma conta que ficou um pouco mais complicada porque a contagem populacional divulgada de forma preliminar pelo IBGE no final de 2022 apresentou uma diferença considerável em relação às estimativas feitas. Nos cálculos divulgados em 2021, o Brasil teria 215 milhões de habitantes, enquanto os números preliminares registraram uma população de 207 milhões de pessoas.

Uma das explicações para esse contraste é uma menor taxa de questionários aplicados. Em 2010, o IBGE chegou a 96% dos domicílios, enquanto em 2022 foram 91%. Além do atraso no início dos trabalhos, houve dificuldade na contratação de recenseadores diante da baixa remuneração e demora no pagamento ao longo do período de coleta. Em novembro de 2022, após 93 dias de trabalho, a cobertura alcançada era de 66%, quando deveria estar quase concluída. Diante disso, a coleta foi prorrogada para o primeiro semestre de 2023, uma medida que não é considerada ideal por se afastar do momento da “fotografia”. Para Paulo Jannuzzi, encontrar uma resposta consensual para as estimativas de população pode levar algum tempo. “Responder se o quantitativo do censo bate com as projeções atualizadas é uma grande questão para o IBGE e para a academia. Quando você se afasta do período de coleta, pode haver mudanças, claro. Pessoas se deslocam, morrem, mudam de cidade. De fato, temos alguns municípios que a dinâmica demográfica já apontava uma redução do seu crescimento, mas sempre vai ficar esse questionamento enquanto não tivermos uma explicação aceita por todos”, avalia.

Apesar da necessidade de ajustes, de acordo com os especialistas ouvidos pela Poli, não há motivos para invalidar o levantamento realizado já que a diminuição no número de domicílios alcançados pode ser solucionada a partir de projeções estatísticas. “O atraso de mais de dois anos em virtude da pandemia de Covid-19, a restrição orçamentária que impediu a adequada condução do Censo e recusas em responder a pesquisa levantaram inúmeras preocupações. Para mitigar os problemas enfrentados, vimos diversos esforços dos técnicos e pesquisadores do IBGE ao longo do processo, inclusive junto ao novo governo, para melhorar a coleta de dados. Nesse sentido, apesar dos percalços e das limitações, não existe dúvida sobre a competência do IBGE para produzir dados confiáveis sobre as condições de vida da população em todos os municípios do país, com informações quantitativas e qualitativas. Para uma análise embasada sobre a qualidade e cobertura dos dados, precisaremos aguardar a conclusão e divulgação oficial do Censo Demográfico 2022”, avalia Bethânia Almeida, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz).

Outro dilema desse Censo foi o corte nas perguntas. Os recenseadores são responsáveis por aplicar dois tipos de questionário: um básico, feito em todas as visitas domiciliares; e outro amostral, aplicado em 11% das visitas. O total de domicílios registrados é de 75 milhões, agrupados por setores censitários, formados por cerca de 250 domicílios. Já a amostra corresponde a 7,7 milhões de domicílios. A decisão de transpor uma questão para um ou outro questionário tem impacto nas estatísticas, assim como a eliminação de uma pergunta pode acarretar mudança de cálculo sobre determinada variável, como a de renda.  As alterações para o Censo de 2022, segundo Jannuzzi, não foram amplamente discutidas pelos técnicos responsáveis pelas áreas e foram aprovadas apenas em órgão colegiado. Ele explica que uma equipe especializada é responsável por cada bloco temático, atenta às implicações de cada pergunta. A forma de decisão sobre a inclusão ou retirada das questões foi diferente da adotada na preparação dos dois censos anteriores, quando houve abertura para diálogo. “Em 2000 e 2010, o IBGE, de alguma forma, se abriu para debates com a academia, movimentos sociais, Frente Nacional de Prefeitos, entre outros ‘usuários do Censo’, digamos assim, para levantar demandas e avaliar em que medida as perguntas poderiam ser respondidas no censo demográfico. Tinha essa interlocução. Para o Censo 2020 isso foi muito mais restrito, pois já vivíamos um contexto em que a participação social não era valorizada no governo Bolsonaro”, recorda.

Cortes nas perguntas
Agência BrasilAs mudanças nos questionários desagradaram técnicos do IBGE e pesquisadores. Ainda em 2019 a campanha Todos pelo Censo, vinculada ao Sindicato dos Trabalhadores do Instituto, o Assibge, lançou uma nota em que explica os problemas identificados na retirada de algumas questões, com destaque para aquelas relativas à renda. No questionário aplicado apenas para os domicílios selecionados para faixa da amostra, os recenseadores deixaram de perguntar os bens do domicílio (geladeira, automóvel, motocicleta). Já no questionário básico, respondido por todos os domicílios visitados, foi coletada apenas o valor da renda do responsável pelo imóvel, sendo retirada a questão sobre os rendimentos dos demais moradores, embora a questão esteja mantida no questionário da amostra. O professor da Ence faz coro à nota e explica que a variável de renda é uma das mais difíceis de obter diante do receio da divulgação dessa informação, daí a importância de se obter esse tipo de informação de formas variadas.

Ele conta que a partir da renda total dos domicílios foram criados mapas sobre desigualdade. “Com essa pergunta você consegue mapear a pobreza em uma escala microrregionalizada em nível de quarteirões”, diz. Foi a partir dessa informação coletada que o IBGE produziu mapas detalhados para o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) nas décadas de 2000 e 2010 para que as equipes do Sistema Único de Assistência Social (Suas) pudessem realizar uma busca ativa da população que deveria ser inscrita nos programas de transferência de renda, em especial o Bolsa Família. “Então, quando se diz que o Bolsa Família tinha uma boa focalização e foi internacionalmente reconhecido por ter uma boa cobertura das pessoas em situação de pobreza era, entre outras razões, porque o Ministério de Desenvolvimento Social orientava as equipes de assistência social a utilizar esses mapas”, diz Jannuzzi.

Já o corte na variável do aluguel, pergunta que foi retirada do questionário da amostra, diz a nota de trabalhadores do IBGE, irá dificultar os cálculos da falta de moradia nas cidades, uma informação que não pode ser coletada com outras pesquisas como a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD). “Essa perda não pode ser compensada por pesquisas amostrais, pois só o Censo poderia produzir os resultados para cada município e por cada bairro das grandes cidades, informações fundamentais para as políticas habitacionais”, diz o texto. Paulo Jannuzzi complementa: “Para o programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ seria fundamental ter essa informação coletada, porque seria possível saber quais são as famílias que comprometem uma parcela da sua renda acima do desejável para o pagamento do aluguel”. Ele acrescenta que as regiões metropolitanas comumente apresentam esses déficits e que apenas o Censo coleta em detalhes as informações nessas cidades.
Wasmália Bivar, ex-presidente do IBGE, destaca que uma perda importante do questionário básico foi deixar de perguntar se houve mudança de cidade ou estado de residência nos últimos cinco anos. Ela explica que a frequência da migração vem diminuindo e para melhor dimensionar esse fenômeno seria importante questioná-lo a um maior número de pessoas, ou seja, manter no questionário básico e não deixá-lo apenas na amostra. “Ela é uma variável importante para entender os fluxos migratórios internos e fazer estimativas e projeções de população municipal nos anos que o censo não é realizado”, detalha.

Raphael Guimarães concorda e aponta os prejuízos para a dimensão dos cuidados em saúde, uma vez que há indícios de um novo modelo de fluxo migratório, sem que as grandes cidades sejam os principais destinos. “Diversas pesquisas têm mostrado que muitas pessoas em idade mais avançada e moradoras de grandes centros urbanos acabam optando por mudar para cidades menores. Então a ausência dessa pergunta pode trazer dificuldade para reconhecer quem são os atuais migrantes”, avalia. Ele complementa com a ponderação de que o planejamento de atenção à saúde é feito de forma regional. “Então, a compreensão desse fluxo migratório ajudaria a melhorar a noção do que precisamos de fato dentro das regiões de saúde”.

A importância para os municípios
Os primeiros a colocarem em discussão os dados preliminares de contagem populacional trazidos pelo IBGE foram os prefeitos. Isso porque esses dados que servem de parâmetro para a distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), junto com a renda per capita, calculada com dados do imposto de renda. Wasmália defende que o grande problema está na legislação e não na contagem. “Por uma variação de dezenas de habitantes, uma prefeitura pode perder muito recurso”, afirma. Ela explica que as regras previstas na lei nº 1881/1981, que cria a reserva do fundo de participação dos municípios, são muito rígidas e falam em número absoluto para municípios com até 156.216 habitantes. Na estimativa populacional divulgada pelo IBGE em 2021, apenas 5,8% dos municípios ultrapassam a faixa de 100 mil habitantes. Embora 57% da população se concentre nesses municípios mais populosos.

O Tribunal de Contas da União (TCU) é o responsável por fazer o cálculo de repasses aos municípios anualmente, a partir das projeções ou dados do Censo que recebe do IBGE. Como pequenas variações podem mexer drasticamente nos recursos, Wasmália diz que a mudança necessária é alterar a definição numérica das faixas por um cálculo proporcional, conforme prevê a Constituição. Ela lembra que os contratos firmados por qualquer prefeitura têm prazos mais longos e que uma previsão orçamentária mais estável é importante.

E o papel do Censo para os municípios vai muito além da base de cálculo para recursos, determinação do número de vagas de representantes no legislativo, do nível municipal ao federal. Isso porque o grau de detalhamento coletado dificilmente é feito pelas prefeituras, com exceção das metrópoles. Paulo Jannuzzi conta que a pesquisa brasileira é uma das mais particularizadas em termos internacionais, em parte por conta das deficiências dos sistemas municipais de informação e cadastros públicos. Os dados do Censo, explica ele, informam as áreas não atendidas por serviços, os bolsões de pobreza e permitem avaliar indicadores por segmentos específicos de raça/cor ou faixa etária. Os dados da população de cada município e determinam o número de vereadores, descrevem a base econômica e servem de base para a criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade.

Entre as informações mais difíceis de se obter, além da renda, Jannuzzi elenca a de óbitos. “Essa é uma variável que pode ter ou uma subestimação ou a ocorrência do óbito fora do período de coleta de dados”. E como exemplo da importância do dado, o professor cita a identificação de bolsões nas regiões metropolitanas em que havia um maior número de mortes de jovens negros e que embasou o programa Juventude Viva, criado em 2012, pela Secretaria de Igualdade Racial.
Infraestrutura urbana

A coleta de 2022 traz uma novidade: passa a trazer informações sobre o meio de transporte mais utilizado, como forma de ajudar o planejamento da mobilidade urbana, uma vez que o Censo já é um componente importante para a realização do Plano Diretor dos municípios. A nova pergunta está ao lado de questões que já eram perguntadas anteriormente, como o tempo de deslocamento, se é feito entre cidades e se há retorno para casa três dias ou mais na semana.

Além dos dados coletados em domicílio, há uma investigação sobre a infraestrutura do entorno, realizada na fase de pré-coleta. Em 2010, dez variáveis faziam parte do trabalho: identificação do nome da rua, existência de iluminação pública, pavimentação, calçada, meio-fio/guia, bueiro/boca de lobo, rampa para cadeirante, arborização, esgoto a céu aberto e lixo acumulado. Na edição de 2022 foi incluída a existência de ponto de ônibus ou van, sinalização para bicicletas e obstáculos na calçada. De acordo com a página do Censo, a inclusão foi feita para atender os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 11, que diz respeito às cidades.

A incorporação dos ODS previstos na Agenda 2030 lançada pela Organização das Nações Unidas nas estatísticas têm sido um desafio para o IBGE, diz Jannuzzi. Com o lançamento da Agenda, em 2015, foi criado um grupo de trabalho conjunto entre IBGE e o IPEA, o Instituto de Pesquisas Aplicadas, para pensar nos novos indicadores que os 17 objetivos impunham. “Essa agenda propunha um conjunto de 232 indicadores, em 2015, cerca de um terço a gente produzia no Brasil, outro um terço nós tínhamos metodologia para aplicar, mas não tínhamos pesquisas com a frequência necessária para responder e o outro um terço seriam indicadores novos, sobretudo na questão ambiental, na dinâmica econômica e alguns na área social”. No entanto, diz o professor da Ence/IBGE, o projeto foi interrompido, e ele torce para que seja retomado. “Entre os indicadores propostos está o de de pobreza, seguindo vários recortes sociodemográficos e que a gente só consegue responder a cada dez anos. Também prevê coletas como, por exemplo, pessoas deficientes em situação de pobreza, mas não temos condição de apurar essa informação com tal regularidade e tal especificidade. Nas estatísticas ambientais é que isso fica muito flagrante. Há outros indicadores que poderiam dimensionar agravos ambientais como inundações ou poluição, mas que o Brasil não dispõe de instrumentos instalados para medir essas variáveis na delimitação geográfica que seria desejável”, relata.

Educação
As principais perguntas sobre Educação aparecem no questionário da amostra, enquanto o questionário básico pergunta apenas se os moradores do domicílio são ou não alfabetizados. Já o questionário completo pede o grau de escolaridade de todos os moradores do domicílio, qual segmento está cursando e quantos anos de estudo têm cada um, mas deixou de perguntar se a unidade frequentada integra a rede pública ou privada.

Para o diretor de Estatísticas Educacionais do Inep, Carlos Eduardo Moreno Sampaio, o mapeamento do território fornecido pelo Censo Demográfico é fundamental para complementar os dados coletados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. “Obviamente, do ponto de vista da cooperação federativa estabelecida entre o Ministério da Educação (MEC) e os diferentes centros federados (estados e municípios), conhecer esse mapeamento no território é extremamente importante. Além disso, os dados trazem informações muito ricas que contextualizam a distribuição da oferta educacional, o nível socioeconômico da população, os bens, os materiais disponíveis nos domicílios e as características pessoais da população a ser atendida”, do diretor de Estatísticas Educacionais do Inep, Carlos Eduardo Moreno Sampaio.

O Censo Escolar, de responsabilidade do Inep, o Instituto Nacional de Estudos Educacionais é responsável por trazer variáveis como de infraestrutura, condições de oferta de matrículas, formação docente, características das escolas e dos alunos. Assim como o Censo é responsável pela indicação de distribuição de recursos com base da população, o Censo Escolar indica os repasses que serão feitos pelo Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), com base no número de estudantes matriculados. O Inep ainda é responsável pelo principal guia da educação brasileira, o Plano Nacional de Educação (PNE) e lança relatórios a cada dois anos em que indicam o andamento do cumprimento das 20 metas estabelecidas pelo plano.

No último relatório sobre o PNE, divulgado em 2022, o Inep registra o impacto da ausência do Censo Demográfico atualizado e pontua as possíveis divergências. “A série histórica dos indicadores aqui apresentados foi recalculada, o que pode gerar algumas diferenças em relação aos valores anteriormente apresentados”, diz o documento. Já o principal impacto da ausência no Censo foi na atualização da Meta 4, que trata da universalização do acesso à escola para estudantes de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD), altas habilidades ou superdotação. Quesitos que serão solucionados com a divulgação dos números oficiais. A perda das informações sobre educação no Censo Demográfico foi a retirada do questionário da amostra se as instituições de ensino frequentadas pelos moradores (da creche ao ensino superior) são públicas ou privadas. “O quesito permitia identificar as diferenças no perfil socioeconômico dos alunos da rede pública e da rede privada, em cada etapa do ensino, em cada município e bairro do país”, explica a nota do Todos pelo Censo.

Censo na Saúde
Determinar o número de doses de vacina, a distribuição de recursos para Atenção Primária, o número de leitos nos hospitais. Essas são algumas das conclusões tiradas a partir do Censo de forma mais imediata, mas também há aquelas que tratam do planejamento em longo prazo. “Para a gente ter uma boa política de saúde, que cumpra seu propósito de reduzir a desigualdade, precisamos também de dados e de indicadores sociais, econômicos e demográficos”, diz o professor da Ensp.

Para Guimarães, o impacto do atraso no Censo foi sentido de forma especial no planejamento da saúde. “A política pública seguiu baseada em dados defasados em uma época que era necessária maior precisão com a chegada da pandemia”. Como exemplo, ele diz que a disponibilidade de vacinas estava especialmente defasada em relação aos idosos habitantes dos pequenos municípios. Um cálculo não só prejudicado pelo atraso no censo, como também pela não realização da contagem populacional em 2015. Outra dificuldade apontada pelo pesquisador foi no acesso aos dados disponibilizados pelo Datasus, o departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil. “No começo de 2021, quando chegou a variante ômicron, ficamos 40 dias com indisponibilidade do Datasus. E pelo que temos acompanhado, aquela não foi uma situação pontual. Nesse sentido, não é coincidência a criação da Secretaria de Saúde Digital”.

Tania Rego/Agência BrasilMelhorar a qualidade das informações que alimentam o Datasus, em especial da Atenção Primária é um dos desafios colocados pelo secretário da pasta, Nésio Fernandes, ainda que os caminhos para essas mudanças ainda precisem de “amadurecimento interno”. Ele lembra que a falta de iniciativa do governo federal em fornecer dados de qualidade, motivo estados e municípios a entrarem em diálogo direto e montarem uma plataforma própria para o monitoramento de casos, disponibilidade de leitos e internações, além de promover a busca por soluções tecnológicas. No entanto, Fernandes pondera que nem todas as falhas na transparência podem ser atribuídas ao governo anterior. “O Ministério da Saúde tem, historicamente, sistemas de informação muito obsoletos e que de fato geram um processo de produção de dados em saúde com atrasos, diversas incorreções e duplicidades. Então além do desafio da pandemia existiam essas deficiências e que motivaram estados e municípios a discutir e encontrar estratégias para acelerar incorporações de tecnologia, o que não aconteceu com o Ministério da Saúde”, avalia. Ele acrescenta que os dados sobre notificações de doenças deveriam ocorrer em tempo real, mas, exemplifica, os dados de hanseníase e tuberculose tem uma retroatividade de mais de um ano.

Ainda assim, diz Guimarães, as principais fontes de informação para a Saúde para detalhamento da situação nos municípios são esses sistemas para notificação de morte, natalidade, estabelecimentos de saúde, doenças e agravos. “Não conseguimos obter o diagnóstico de saúde dos municípios com a PNS [Pesquisa Nacional de Saúde], conseguimos apenas uma imagem macro”, diz.

E, como para qualquer pesquisa, o Censo é a base para a construção da amostra, inclusive a PNS. Essa pesquisa apresenta dados sobre estilo de vida da população, alimentação, prática de exercícios, consumo de álcool, doenças crônicas. Em 2019, a PNS perguntou, pela primeira vez, sobre a orientação sexual dos brasileiros. Em março de 2022, o Ministério Público ingressou com uma Ação Civil Pública para inclusão de perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo. A decisão favorável a inclusão veio em maio, na qual o juiz Herley da Luz Brasil argumenta que já existe metodologia para tais questões aplicadas na Inglaterra, Canadá e Nova Zelândia. Meses depois a decisão foi revogada, acatando a alegação do IBGE de que não haveria tempo suficiente para inclusão de perguntas dois meses antes do início da coleta de dados. Em artigo publicado em maio de 2022, Bárbara Cobo, professora da Ence/IBGE comemora a inclusão da pergunta sobre orientação sexual na PNS e diz que a inserção da questão ainda está em fase experimental em todo o mundo. Ela defende que não é uma incorporação simples, uma vez que, em diversos inquéritos do IBGE, seja no Censo ou na PNAD, um morador responde por outros no domicílio. “Em questões de foro íntimo, a autodeclaração é fundamental e isso traz um desafio para as pesquisas estatísticas. A própria pessoa deve responder à pergunta sobre sua orientação sexual, situação permitida pela PNS/IBGE que investiga diversos aspectos da saúde da população brasileira a partir da seleção de um morador adulto no domicílio como respondente. Não faz sentido perguntar a uma mãe a orientação sexual de seus filhos, por exemplo”, escreve.

Outra fonte importante de informações amostrais em Saúde é o Cidacs/Fiocruz. “O Cidacs conduz pesquisas de base populacional sobre determinantes sociais e ambientais da saúde a partir da integração de dados administrativos sociais e de saúde.  Dados administrativos são coletados pelos governos nas suas distintas instâncias, municipal, estadual e federal, para execução de políticas, administração de programas e prestação de serviços à população. São dados do mundo real, coletados ao longo do tempo, representativos de um segmento populacional que tem um ou mais atributos em comum com alto grau de validade externa pela alta cobertura populacional”, explica Bethânia Almeida.

Um exemplo recente de pesquisa divulgada pelo Cidacs foi o trabalho publicado em fevereiro, que relaciona uma menor taxa de mortalidade materna de acordo com a quantidade de anos de atendimento pelo programa Bolsa Família. No estudo, foram observados dados de cerca de oito milhões de mulheres que tiveram um parto entre 2004 a 2015, em que 4.056 foram a óbito, segundo o cruzamento do Sistema Nacional de Nascidos Vivos (Sinasc) com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). O resultado do trabalho indica que as mulheres que tinham cobertura do Bolsa Família de um a quatro anos tiveram redução de 15% na morte materna, já aquelas com cobertura de cinco a oito anos alcançaram um fator de proteção de 30%. A pesquisa lembra que o Bolsa Família está condicionado ao acesso à saúde. Em 1990, 120 mães morriam até 42 dias depois do parto a cada 100 mil nascidos vivos. Essa taxa caiu para 69, em 2013, e chegou a 57, em 2019, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Números que voltaram a subir e alcançaram 107 em 2022, um retrocesso de quase 30 anos, enquanto a taxa dos países desenvolvidos é de 12 óbitos maternos para cada 100 mil partos.

Trabalho
Na área de trabalho e emprego, o Censo é fundamental para identificar a taxa de desemprego dos municípios, traçar o perfil ocupacional das regiões e trazer uma variável sensível: a do trabalho infantil. A pergunta não é direta, mas entre as mais de 500 ocupações identificadas, há aquelas exercidas tipicamente por crianças em determinados territórios. “O único lugar que você pode ter a informação detalhada e consistente para orientar a ação sobre o trabalho infantil é o censo demográfico”, diz Jannuzzi.  Já o protocolo mais específico sobre o mercado de trabalho está na PNAD Contínua. Bárbara Cobo explica que o Censo auxilia a identificar trabalhadores informais em escala que alcança o detalhamento por bairros e ao mesmo tempo tem abrangência nacional, enquanto o Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, registra contratações e desligamentos apenas dos trabalhadores com carteira assinada. Já PNAD Contínua, detalha Cobo, é uma ampla pesquisa com muito foco no mercado de trabalho, que nos permite dimensionar a informalidade por diversas características da população, embora esteja restrita às capitais e cidades médias.

A construção da PNAD, assim como o Censo, está baseada em critérios internacionais de formulação de estatísticas para que os países investiguem o mercado de trabalho de forma similar e seja possível fazer comparações. Para saber se alguém está desempregado não basta uma pergunta direta, que se limite a um “sim” ou “não”. “Desemprego é um conceito que requer uma série de perguntas para se chegar à conclusão de que aquela pessoa está desempregada”, diz e explica que, na semana de referência da pesquisa, a pessoa entrevistada precisa estar desocupada, mas ter buscado alguma oportunidade de trabalho seja por meio de amigo, uma consulta em jornal, ou de outras formas no período. Em geral, os questionários são adaptados ao contexto brasileiro e da legislação, além da consulta que deve ser feita de forma constante às pessoas que trabalham com essas informações, com os formuladores de políticas públicas.

Entre os dados captados pela PNAD estão as regiões com maior incidência de informalidade, assim como recorte de cor/raça em relação à taxa de ocupação no mercado de trabalho e a faixa de rendimento. Dados, lembra a economista, que não podem ser analisados fora de contexto. “Mesmo com um período recente de queda da taxa de desocupação, isso se deu em um contexto que você teve queda de rendimento, você teve uma piora da qualidade dos trabalhos. É preciso pensar em que tipo de emprego nossa economia está oferecendo para a manutenção da qualidade mínima de vida”.

Tania Rego/Agência BrasilEla explica que, embora identifique a proporção da população que atua no mercado informal, a PNAD pode detalhar melhor esse processo, assim como a precarização das relações de trabalho. “O próprio questionário da PNAD Contínua precisa ser atualizado para essas novas formas de trabalho e incluir as plataformas de delivery, de transporte”, avalia. E lembra que o cadastro realizado para o pagamento do Auxílio Emergencial foi o primeiro a mapear a informalidade, uma vez que antes “os informais, eram invisíveis nas estatísticas públicas”. O que significou uma necessidade de apressar para conseguir montar um banco de dados de beneficiários, em especial com o cruzamento de dados realizado pelo Dataprev. No entanto, como esse banco de dados não ficou público e foi bastante alterado com a chegada do Auxílio Brasil, Cobo avalia que as informações relativas à informalidade se perderam.

Embora veja a necessidade de construção de indicadores que captem de forma mais profunda a informalidade e a precarização do trabalho e seja parte da missão tanto do IBGE, quanto dos outros produtores oficiais de informação, retratar a sociedade brasileira, essa demanda precisa de incentivo do governo. “Você faz política pública porque identificou um problema que precisa atacar. Sem dúvida nenhuma, quando vem uma demanda por política pública, tem um peso muito maior de relevância para investigar determinado assunto”, diz. Em outras palavras, a atuação do IBGE se dá de forma integrada às demandas dos ministérios, os principais interlocutores do Instituto, ainda que também haja procura por parte dos municípios. “A ideia de você ter política pública baseada em evidências e em estatísticas confiáveis, é que você possa ter um uso eficiente dos recursos e que os objetivos das políticas propostas sejam atingidos. Como, por exemplo, aumentar a qualificação de trabalhadores para determinado setor ou aumentar a formalização”, ilustra.

A pesquisadora lembra que investigar um fenômeno social é sempre uma tarefa muito complexa e não é possível fazer análises considerando apenas um indicador. Desconsiderar essa complexidade pode levar a políticas equivocadas, e como exemplo, ela cita a Reforma Trabalhista. O principal argumento para a Reforma foi a necessidade de gerar um maior número de empregos a partir da desoneração da folha trabalhista para as empresas e possibilidade do trabalho intermitente, ou seja, tornar a contratação mais barata.

O aumento de ofertas de trabalho não veio, o crescimento econômico está baixo e a maioria dos empregos ofertados está no setor de serviços, que oferece salários mais baixos. “Então, esse é um diagnóstico equivocado da situação do mercado de trabalho”, opina Cobo. Ela acrescenta que as políticas em relação ao emprego devem estar associadas ao modelo econômico. “Com uma economia calcada na exportação e prestação de serviços, sem produção industrial, não vamos conseguir gerar empregos de qualidade”, diz.

Em breve, os dados conclusivos do Censo 2022 serão divulgados e teremos um retrato de um cenário pós-pandêmico, em que será possível saber como estamos após a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. E assim, planejar com evidências esse novo tempo.
 

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