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O direito dos indígenas à saúde

Relatório mostra que em 2009 mais de 23 mil indígenas enfrentaram problemas de saúde sem a assistência do poder público. Nova Secretaria de Saúde àndígena pode garantir o direito da população indígena à  saúde?
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 23/07/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Balanço do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostra que em 2009 mais de 23 mil indígenas enfrentaram problemas de saúde sem a assistência do poder público. Nova Secretaria de Saúde Índígena pode garantir o direito da população indígena à saúde?



 



No Vale do Javari, no estado do Amazonas, 80% dos adultos e 15% das crianças indígenas sofrem com hepatites A, B e Delta (tipo de doença que geralmente ocorre em pacientes que já possuem hepatite do tipo B). De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da Região Norte, a situação lá é gravíssima, também com muitos casos de malária. "Faltam profissionais de saúde, medicamentos e transporte para os doentes se deslocarem. Há mulheres grávidas e crianças com menos de um ano de idade contaminados com malária", denuncia o Cimi. A informação faz parte do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil em 2009, elaborado pelo Conselho.



Em 240 páginas, o documento faz uma análise detalhada das situações de violência à população indígena, entre elas, os casos de violência por omissão do Estado, nos quais se encaixam as situações de desassistência à saúde. Está no relatório, por exemplo, a morte da indígena Celina Cãrkwyj Krahô, da terra indígena Kraolandia, no município de Itacajá, em Tocantins. "A vítima foi picada por cobra e levada para Itacajá, distante 90Km da aldeia. Ela saiu lúcida da aldeia, dizendo aos familiares que voltaria logo. Chegando ao hospital, constataram a falta do soro. Celina foi encaminhada ao hospital de Araguaína, distante 220Km e, devido à demora em receber o soro, seu estado se agravou e ela faleceu". Ou então a morte das sete crianças guaranis em uma única aldeia, na terra indígena Jaraguá, no município de São Paulo. "A comunidade indígena, cerca de 80 famílias, vive confinada em 2,7 hectares de terra não regularizada. A falta de saneamento básico, alimentação adequada, moradia e deficiências no atendimento à saúde contribuíram para o acontecimento", denuncia o relatório.



De acordo com o vice-presidente do Cimi, Roberto Liebgott, os dados, apesar de alarmantes, ainda são subestimados, já que o Cimi não consegue chegar em todo o território nacional. "Como o estado já tem a obrigação com relação às políticas públicas e neste caso as relativas à saúde, analisamos que há uma realidade de profundo descaso com a maioria dos povos indígenas no tocante a uma assistência preventiva e também curativa. O Estado brasileiro ou seus governantes acabam cometendo o crime de omissão diante destes casos, que seriam perfeitamente acompanhados e tratados com prevenção se houvesse efetivamente uma política de assistência na área da saúde ou que a política em curso fosse cumprida", protesta Roberto.



Em março deste ano, a presidência da república editou a Medida Provisória (MP) 483/2010 criando a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Pela proposta, a nova pasta será responsável por tudo que se refere à saúde desta parcela da população. A MP foi aprovada na Câmara e ainda precisa ser votada no Senado. Em 1999, a lei federal 9.836 , também conhecida por Lei Arouca, criou o subsistema de atenção à saúde indígena. Pela lei, o subsistema deve ser componente do Sistema Único de Saúde (SUS) e cabe ao governo federal financiá-lo. Além disso, ele deve ter como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei). Os Dsei devem funcionar como uma unidade organizacional da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão governamental que tem entre as suas atribuições a responsabilidade pela saúde indígena. São 34 Dsei em todo o território nacional.



A lei diz também que estados, municípios e outras organizações governamentais e não-governamentais podem atuar de maneira complementar no custeio e execução das ações de atenção à saúde da população indígena. Desta maneira, desde a criação da lei, a Funasa estabelece convênios para prestar o atendimento. Para o vice-presidente do Cimi, o subsistema foi estruturado de forma equivocada desde o início. "Neste período de 10 anos houve uma assistência bastante fragmentada, em alguns distritos com melhor e em outros com pior assistência, porque dependia muito da estrutura da ONG, entidade ou prefeitura que estabelecia o convênio com a Funasa. Isso acabou gerando em âmbito nacional muito descontentamento e queixas por parte da população indígena. Em muitas regiões, a assistência não chegava", relata Roberto.



Ele cita como exemplo o caso do Vale do Javari, que abre a reportagem, onde, segundo o Cimi, a entidade conveniada não consegue assegurar presença para desenvolver um trabalho de prevenção e combate às endemias.



De acordo com inquérito nacional realizado recentemente pela própria Funasa em parceria com a Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), mais de 15% das mulheres indígenas são hipertensas e mais de 50% são obesas. O estudo, denominado I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, se dedicou a avaliar a saúde, sobretudo das mulheres e crianças. Os dados coletados em uma amostra de mais de 100 aldeias revelam, por exemplo, que a anemia entre as mulheres indígenas é maior do que entre as mulheres não indígenas e que uma em cada três crianças indígenas é desnutrida.



A pesquisa mostrou também a precariedade das estruturas de saneamento. "A mudança desses perfis requer melhoria nas condições de moradia e saneamento, pois parcela significativa dos domicílios indígenas apresenta precariedade. É importante frisar que hospitalizações por diarreia podem também ser reduzidas com o manejo adequado. Apenas metade das crianças que tiveram diarreia na última semana recebeu solução de reidratação oral. Dentre as medidas necessárias para mudar essa situação, destaca-se o aumento na disponibilidade de solução de reidratação oral", afirmou, em entrevista ao portal da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), Carlos Coimbra, um dos coordenadores da pesquisa.



Por que um subsistema de saúde indígena?



Para a pesquisadora do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na Amazônia, Luiza Garnelo, o subsistema de atenção à saúde indígena, previsto na lei 9.836, não foi até hoje implementado em sua totalidade. "O subsistema foi parcialmente implementado. Por exemplo, nunca ficou equacionado o problema da contratação da força de trabalho para atuar neste sistema, o que é um problema crucial e completamente irresoluto", diz.



Luiza explica porque é importante haver um sistema diferenciado para atenção à população indígena: "O princípio do SUS da equidade diz que é preciso tratar diferentemente o diferente para que ele consiga ter a possibilidade de um acesso igual ao sistema de saúde. Então, se uma pessoa não fala português e mora numa região em que se passa três, quatro semanas remando para chegar à unidade de saúde mais próxima, ela nunca terá equidade se não for promovido o atendimento próximo da sua moradias e atendendo às suas necessidades específicas".



A pesquisadora comenta que antes da criação do subsistema a população indígena era totalmente ignorada. E, mesmo com esta política estabelecida a partir da lei Arouca, os níveis de mortalidade infantil, por exemplo, entre a população indígena são cinco vezes maiores do que entre a população branca. "A lei diz que o estado brasileiro é obrigado a fazer uma provisão específica que atenda à singularidade cultural. Além de ser um problema ético, político, de prover de fato o acesso destas pessoas, ainda é uma questão legal. É uma lei que não foi revogada e exige que seja cumprida", destaca.



Da Funasa para a Secretaria Especial de Saúde Indígena



Segundo a Funasa, o orçamento da instituição para o ano de 2009 foi de R$ 5,1 bilhões. Entretanto, deste montante apenas 8% (R$ 340 milhões) foi destinado à saúde indígena, já  que também são responsabilidadea da Fundação outras funções ligadas a saneamento e vigilância sanitária.



De acordo com o órgão, trabalham hoje na atenção à saúde indígena 13.926 profissionais. A Funasa reconhece, entretanto, que há problemas como alta rotatividade dos trabalhadores, sobretudo no pessoal contratado por meio dos convênios, devido a salários pouco atrativos e dificuldades de adaptação em regiões de difícil acesso. "A atenção à saúde prestada pela Funasa encontra os mesmos problemas existentes no próprio sistema de saúde. As limitações para a superação dos problemas em sua maior parte são devidas aos determinantes sociais da saúde, neste sentido resulta fundamental a ação do estado como um todo para estabelecer as condições de bem-estar e de perspectiva de vida da população indígena", declarou, em nota, a Fundação.



Para Luiza Garnelo, a Medida Provisória 483/2010, que cria a Secretaria Especial de Saúde Indígena, é uma medida interessante, entretanto, não está claro na proposta como será a execução dos serviços. "Criar uma Secretaria que não tenha forma de encaminhar este problema que é chave - porque sem força de trabalho você não consegue ter um atendimento de qualidade - acaba caindo no vazio. O trabalho que foi feito até agora é uma proposta de gestão, mas, sem ter quem execute, não adianta", ressalta.



O Cimi acredita que a secretaria pode melhorar a situação do atendimento aos povos indígenas. "A secretaria rompe com essa possibilidade de ter uma assistência fragmentada, e terá como responsabilidade exclusiva a assistência aos povos indígenas", aponta Roberto. O vice-presidente do Cimi lembra que a MP tem que ser votada ainda em agosto. "A medida provisória tem prazo de validade no início de agosto. Se até lá o Senado não votá-la, perderá a sua eficácia. Nesse caso, esta perspectiva de uma secretaria cai por terra", preocupa-se.



Na contramão da municipalização



Outra questão a ser discutida no âmbito do debate sobre saúde da população indígena tem a ver com os rumos que o SUS vem tomando. Luiza Garnelo menciona que o SUS caminha no sentido da municipalização, movimento sugerido pelo próprio poder público, mas que este horizonte não serve para atenção à saúde indígena. "Há um grande movimento de retirar a capacidade de executar ações de saúde do governo federal e passar para o município. Mas quem trabalha com população indígena tem um consenso: este não é um bom modelo para a população indígena. Isso não quer dizer que a municipalização em si seja ruim, mas, na conjuntura de hostilidade e de preconceito étnico que temos, ela é muito mais complicada", afirma.



Ela explica que a municipalização não atende às demandas das populações indígenas devido a relação das municípios com o histórico de conflitos pela terra e de violências antigas contra os povos indígenas. "Há estados onde há conflitos entre os interesses do agronegócio e dos garimpeiros em cima de terras indígenas, então, estas forças municipais em geral estão comprometidas com este tipo de interesse hostil à causa indígena, com algumas extensões", diz.



Luiza menciona que, entretanto, o subsistema de atenção à saúde indígena possivelmente continuará precisando dos municípios para a rede de referência - realização de exames e utilização dos hospitais, por exemplo. Mas no caso das regiões onde há mais presença indígena- norte, centro-oeste e nordeste - a maioria dos municípios com povos  indígenas concentrados tem sistemas municipais de saúde precários, sem condições de oferecer este suporte.



A pesquisadora afirma também que este fato se configura como uma contradição e que é preciso que se discuta o tema com mais profundidade, o que ainda não está sendo feito. "O que me chama atenção é falta de discussão pública e de documentos de orientação sobre estas questões", critica.



Funasa



 



Por meio da assessoria de imprensa, a Funasa declarou que o relatório elaborado pelo Cimi deve ser levado em conta e que esta instituição é parceira no sentido de promover o direito da população indígena à saúde. Entretanto, considera que há um problema com as informações do documento, já que elas não podem ser checadas, pois grande parte provém de notícias da mídia. "O encaminhamento que a Funasa já deu para alguns destes problemas não aparece", afirma a instituição.



Roberto considera que a própria Funasa é quem deveria fazer este levantamento, já que tem condições de avaliar todo o território nacional. Para Luiza, faltam informações qualificadas sobre a assistência à população indígena. "Hoje, você não sabe quais são as taxas de mortalidade da população, quais são as coberturas vacinais. Recentemente houve a divulgação de um inquérito nacional sobre os níveis nutricionais, mas não temos acesso sistemático a dados que permitam o monitoramento e, muito menos, fazer vigilância epidemiológica ou vigilância à saúde desta população", diz.



Confira na próxima semana, reportagem sobre a educação dos povos indígenas.