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O que diz o boletim epidemiológico?

Documento publicado pelo Ministério da Saúde aponta orientações a secretários municipais e estaduais. Isolamento social é um dos pontos que causam incertezas por falta de indicações claras.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 24/04/2020 10h54 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Desde as primeiras ações de enfrentamento à pandemia provocada pelo COVID-19, quase semanalmente o Ministério da Saúde publica o boletim epidemiológico temático. Nele constam orientações gerais aos secretários de saúde municipal, estadual e todos os trabalhadores da saúde. De acordo com sua descrição no site do Ministério, o boletim, que é editado pela Secretaria de Vigilância em Saúde, “é uma publicação de caráter técnico-científico, acesso livre, formato eletrônico com periodicidade mensal e semanal para os casos de monitoramento e investigação de doenças específicas sazonais”.

Ao total, já foram 13 boletins com a temática do coronavírus, sendo o primeiro publicado em 3 de fevereiro e o último no dia 20 de abril.  Em geral, eles têm trazido dados como evolução da contaminação no Brasil e no mundo, o coeficiente de incidência, número de óbitos, recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre testes e uso de equipamentos de proteção individual, entre muitas outras informações.

Para o presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Willames Freire, o boletim epidemiológico é a carta orientativa de ações. “É o ABC do gestor. É nele que identificamos a evolução dos quadros em cada região para tomar nossas decisões. Traz as informações concretas e consolidadas para que possamos comparar com a nossa realidade”, explica.

Gonzalo Vecina Neto, da Faculdade de Saúde Pública da USP, define o boletim epidemiológico como uma reunião do conjunto de dados que se tem consolidado da sociedade para orientação do setor saúde. “Um boletim epidemiológico é fantasticamente importante, ele tem que ter cuidadosamente atualizado momento a momento da epidemia. É ele que vai nos dar alguma luz nessa neblina na qual estamos nos movimentando. Temos que aprimorar o boletim e  aumentar a nossa capacidade de testagem para conseguir enxergar melhor o que está acontecendo na sociedade em termos de casos novos e em torno da mortalidade”, detalha.

Para o presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, o boletim é uma ferramenta de disseminação de dados, informações e orientações da área de Vigilância em Saúde e Epidemiológica. “Ele retroalimenta os profissionais e gestores com informações relevantes para a organização dos serviços e a tomada de decisão”, afirma.

Distanciamento social

No centro do debate atual sobre como enfrentar o vírus está a questão do distanciamento social. Nos boletins de número 7 e de número 11, por exemplo, constava a descrição da importância do isolamento social e a diferença entre as medidas  seletiva, ampliada e total.

De acordo com o texto, a primeira tem como estratégia o isolamento de apenas alguns grupos, sejam aqueles que apresentam mais riscos de desenvolver a doença ou os que podem apresentar um quadro mais grave, como idosos e pessoas com doenças crônicas (diabetes, cardiopatias e respiratórias) ou condições de risco como obesidade. Nesse caso, Pessoas abaixo de 60 anos e sem essas características poderiam circular livremente se estiverem assintomáticas. Alguns países, como Austrália, Coreia, Suécia e Japão, começaram a adotar essa medida.

Já o isolamento ampliado é a utilização da estratégia não limitada a grupos específicos, exigindo que todos os setores da sociedade permaneçam nas residências durante a vigência da decretação da medida pelos gestores locais. Esta medida, que é a que o Brasil adota atualmente, restringe ao máximo o contato entre pessoas. E, por fim, o isolamento mais radical se dá quando todas as entradas do perímetro, de uma cidade ou estado, por exemplo, são bloqueadas por profissionais de segurança e ninguém tem permissão de entrar ou sair. Países como Reino Unido, África do Sul, Índia, Bélgica, França e Singapura adotaram essa medida.

De acordo com a pesquisadora da Escola  Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Margareth Portela, a decisão por algum desses modelos deve levar em conta uma diversidade de fatores, como os trabalhadores de saúde disponíveis, o número de leitos e equipamentos e também a evolução do quadro de contaminação. “É sempre importante ressaltar que a contaminação se apresenta a partir de  um crescimento exponencial. Cada pessoa pode contagiar  duas ou mais, dependendo da densidade demográfica. Se essa curva epidêmica cresce, o local vai continuar tendo casos em que quem é infectado tem sintomas quase nulos, mas também aumentam os casos graves, que vão precisar de cuidados mais sofisticados. E cada pessoa que é internada, pelo que estamos acompanhando, fica três semanas em média na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]. A rotatividade desses leitos de UTI não é elevada. Isso vai gerando uma taxa de ocupação muito grande, que precisa ser levada em consideração na hora do relaxamento do distanciamento social”, avalia.

 

Capacidade instalada

Gerou polêmica o mesmo boletim nº 7, publicado no início deste mês, com uma orientação que foi interpretada por alguns especialistas como flexibilização do isolamento social. Segundo o boletim, a partir de 13 de abril, “os municípios, Distrito Federal e Estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado, onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo’. No entanto, o mesmo documento não deixava claro o que considerava como capacidade instalada.

Segundo a professora Margareth Portela, a interpretação é dúbia e pouco orienta os gestores. Para ela, a capacidade instalada deve levar em consideração a quantidade de leitos clínicos e de UTI, mas também material de proteção, equipe e insumos para os tratamentos como remédios, equipamentos e exames laboratoriais. “Temos um gargalo imenso na capacidade de fazer os testes do coronavírus. Além disso, os exames estão nos laboratórios, que não dão conta da necessidade. A tomografia é o exame que permite uma imagem mais precisa do quadro respiratório, mas não conseguimos garanti-la em larga escala. Provavelmente, é a isso que o boletim se refere ao falar de 50% da capacidade instalada de leitos clínicos mais hospitalar. Você até pode ter leitos de UTI à disposição, o que acho difícil nessa quantidade, mas não é só isso. Há uma necessidade muito mais complexa. Nesse caso específico, é necessário ter respiradores - porque a insuficiência respiratória é realmente significativa dentro do quadro da Covid, e a perda da capacidade respiratória pode ser muito abrupta e o paciente tem que ser entubado em ventilação mecânica”, descreve.

O presidente do Conasems indica que é necessário avançar no detalhamento das condicionantes para somente depois indicar o isolamento social. “Esse boletim deveria ter sido melhor discutido conosco. O Brasil é um país continental e tem realidades diferentes e completamente complexas. Só vamos tomar decisões a partir do quadro epidemiológico. Ao que tudo indica,  a capacidade instalada leva em consideração o número de leitos clínicos e de UTI disponíveis, mas precisamos decifrar essa fórmula para começarmos a atuar”, avalia Willames.

Para Alberto Beltrame, do Conass, o mesmo boletim trazia orientações incoerentes. “Em um trecho do texto fala-se de análise de risco para o SUS. Em suas conclusões, considera que as estratégias de distanciamento social adotadas pelos estados e municípios contribuem para evitar o colapso dos sistemas locais de saúde, que estas medidas temporárias permitem aos gestores tempo relativo para estruturação dos serviços de atenção à saúde da população, com consequente proteção do Sistema Único de Saúde e que as unidades da federação que implementaram medidas de distanciamento social ampliado devem manter essas medidas até que o suprimento de equipamentos (leitos, EPI, respiradores e testes laboratoriais) e equipes de saúde (médicos, enfermeiros, demais profissionais de saúde e outros) estejam disponíveis em quantitativo suficiente, de forma a promover, com segurança, a transição para a estratégia de distanciamento social seletivo. Estas conclusões não apresentam, portanto, data ou percentuais específicos, tal como apresentado logo na primeira página do mesmo boletim, sem uma explicação clara de como estes foram estabelecidos”, avalia, ressaltando ainda que também não é esclarecido o que se entende por capacidade instalada: “Seria relacionada à disponibilidade de leitos clínicos? De leitos de UTI? Disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual?. Tampouco explica se esta avaliação seria feita em nível de município ou de região de saúde, o que seria mais lógico, considerando que os leitos dos municípios-polo destinam-se geralmente a toda uma região”.

Para Gonzalo Vecina, há ainda interpretações que podem causar mais transtornos a municípios em que, apesar de o gestor interpretar que sua capacidade instalada seja suficiente, essa mudança pode sobrecarregar  o vizinho, por conta da estrutura regionalizada de organização. “É um  perigo muito grande propor essa medida com a crise epidêmica ainda em ascensão. Mesmo que municípios tivessem o número de casos reduzidos e a capacidade de leitos vagos, não necessariamente têm condições de internar pessoas com casos mais complexos. Essa orientação me parece apenas uma resposta política à pressão posta pelo poder executivo. Por isso é dúbia e não detalha como forma seguir, descreve como forma orientativa para os gestores”, avalia.

 

Quem decide o isolamento?

No dia 15 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou aos governos estaduais, distrital e municipal, no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus territórios, competência para a adoção ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da Covid-19. Isso vale tanto para o distanciamento social quanto para suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio e atividades culturais, circulação de pessoas, entre outras. A autorização foi uma resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).  A decisão foi provocada depois de publicação da Medida Provisória n° 926/20, que estabelece procedimentos para aquisições de equipamentos e outros materiais destinadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus e atribui ao Presidente da República, Jair Bolsonaro, a competência para dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos essenciais. Além disso, estabelece que o poder executivo passa a estabelecer as condições para situação de emergência.

Para o presidente do Conass, cabe ao seu conselho atuar em nome do interesse coletivo da gestão estadual do SUS. “No caso das medidas locais para prevenção, controle e mitigação da pandemia, é preciso levar em conta que o Brasil é um país continental, portanto com densidade populacional distinta e caracterização epidemiológica assimétrica, pelo que o gestor sanitário local é o mais capaz de avaliar a realidade. Como meio de compreender e regular as realidades municipais, micro e macrorregionais o SUS dispõe das comissões intergestores, que propiciam o diálogo e a melhor conformação possível”, explica e avalia a decisão sobre o poder estar na mão dos governadores e prefeitos: “Os fundamentos da decisão vem por meio da  interpretação dos dispositivos constitucionais que dão competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e municípios em relação à saúde (incisos II e IX do artigo 23) e (inciso II, artigo 30), além da necessidade de ampliação da cooperação nacional entre os entes federados e a obediência aos critérios técnicos do SUS”.

Até o fechamento desta matéria, quando o número de óbitos bateu recorde em apenas 24 horas, com 407 mortes, o único estado que iniciou a alteração  no isolamento era Santa Catarina. Segundo dados do modelo epidemiológico utilizado pelo governo do estado, o isolamento social proporcionou uma queda de aproximadamente 50% da taxa de contágio (RT). A taxa média de transmissibilidade variou de 3,10 a 1,56, após as intervenções adotadas pelo estado.  Do dia 13 até 18 de abril, com a flexibilização parcial das medidas de isolamento, a RT subiu para 1,73. A taxa de ocupação de leitos, segundo o boletim epidemiológico do estado, é de 16,3%. No total, foram 381 leitos de UTI reservados à Covid-19 e 62 estão ocupados. A partir desta quarta-feira, dia 23, o governo publicou em diário oficial novas regras do isolamento social flexibilizando estabelecimentos como shoppings, galerias, academias e atividades.