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Os anos seguintes: a onda neoliberal

Esvaziamento do papel do Estado dificulta consolidação do SUS
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

A Constituição de 1988 é um marco na tentativa de implantar no Brasil o Estado de bem-estar social. Um dos méritos do texto constitucional, nesse sentido, é estender a todos os cidadãos uma série de direitos como educação, saúde e assistência social. Mas a crise econômica no Brasil dos anos 90, em que o país se via afogado em dívidas internas e externas, sem conseguir se desenvolver, mudou o rumo dessas conquistas.

De acordo com Sonia Fleury, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), as agências internacionais indicaram a solução: promover uma série de reformas que incluíam a adoção de uma política de privatização de empresas e a gradual retirada do Estado da economia. Assim, enquanto a Constituição defendia o Estado de bem-estar social, o país caminhava para a instauração de um Estado mínimo, em que os direitos sociais são reduzidos ao assistencialismo. Essas reformas fazem parte do ideário neoliberal, que surgiu nos Estados Unidos e na Inglaterra no início dos anos 80 e se desenvolveu rapidamente em países europeus. As novas políticas buscavam reestruturar a economia, já que desde os anos 60 o capitalismo dava sinais de crise, com excesso de produção e diminuição das taxas de lucro.

De acordo com José Roberto Reis, professor de história na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a relação desconexa entre a promulgação de uma Constituição preocupada com os direitos sociais no Brasil e o caminho neoliberal que o resto do mundo tomava se explica quando analisamos o contexto histórico da época. “Vivíamos o fim de uma ditadura e tínhamos uma forte perspectiva de fortalecimento do nacionalismo. Os anos 80 são, no Brasil, os anos da luta pela redemocratização, e isso foi marcado pela existência de uma sociedade combativa, pela realização de greves, pelo engajamento das associações de moradores, pelas Diretas Já. A população começava a cobrar direitos do Estado e o texto constitucional foi resultado de todas essas lutas. Assim, embora o direcionamento mundial apontasse para o enxugamento do Estado, a Constituição ainda conseguiu consagrar os direitos sociais”, explica.

José Roberto lembra que o marco do avanço neoliberal no país é o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), com grande abertura da economia e diminuição da atuação do Estado. Foi justamente nessa época que começaram a ser feitas as leis que regulamentariam a Constituição. A lei nº 8.080 – Lei Orgânica da saúde, promulgada em setembro de 1990 – tinha essa função. Maria Luiza Jaeger, que foi representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) na Comissão Nacional da Reforma Sanitária, ressalta que a lei foi aprovada pelo então presidente com vetos a três importantes questões: “Foram vetados os critérios de repasse de recursos do nível federal para estados e municípios, o funcionamento das instâncias de participação social e o plano de carreiras, cargos e salários. A partir daí, houve uma grande pressão para que esses pontos voltassem ao texto. Por fim, a Câmara conseguiu negociar os vetos e foi aprovada, em dezembro do mesmo ano, a lei nº 8.142, em que estão presentes o controle social e o tópico do financiamento. A questão dos planos de carreira não conseguiu ser negociada”, conta.

A gestão de Collor foi marcada por denúncias de corrupção, o que levou ao impeachment em 1992. De acordo com José Roberto, seu sucessor, Itamar Franco (1992-1994), deu continuidade ao processo de liberalização da economia. “Foi quando se fez, por exemplo, a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional”, lembra. Mas o professor diz que foi a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) que as políticas neoliberais ganharam força. “Houve uma série de reformas na Constituição, com vistas a esvaziar o papel do Estado e diminuir os direitos sociais conquistados”, afirma.

O Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição de 1988, começava a tomar forma justamente no momento em que o país resolvia fazer o ajuste de suas contas públicas. De acordo com o professor Paulo Mangeon Elias, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o importante para o governo da época era ter superávit. “Era preciso fazer cortes. E a primeira área a sofrer, em casos como esse, é sempre a social”, explica, ressaltando que essa opção deve ser entendida do ponto de vista dos administradores. “O governo entendia que não se podia deixar de investir em infraestrutura, porque isso era a base para a construção econômica e para o desenvolvimento nacional. Também não era possível cortar o pagamento dos juros das dívidas, pois o financiamento externo era necessário para fazer o desenvolvimento.  Então, os cortes foram feitos nos gastos sociais. Era a precedência do argumento econômico sobre o social”, critica.

Diminuição do orçamento e SUS

Os cortes no orçamento das áreas sociais atingiram em cheio o SUS, projeto de universalização da saúde. “Quando o SUS foi implantado, estimava-se que um terço dos brasileiros não tinha acesso ao serviço de saúde. De repente, partiuse para a universalização, o que demandaria mais dinheiro. Só que, em vez de receber mais recursos, a saúde recebeu menos. O orçamento do primeiro ano do governo Collor para o setor foi menor que o do último ano do governo Sarney”, explica Paulo Elias.
Durante o governo Itamar Franco, o fim do repasse dos 30% dos recursos da Seguridade Social para a saúde foi outro golpe duro. “Com isso, o setor saúde perdeu, de uma hora para a outra, mais da metade dos seus recursos. A partir de então, quem tinha que garantir esses recursos era o Tesouro Nacional. A saúde passou a ser vista como responsável pelos problemas financeiros do país. O Ministério da Fazenda passou a alegar que não conseguia equilibrar os gastos públicos porque precisava repassar dinheiro para a saúde”, diz ele.

No governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), o ministro da saúde Adib Jatene, que também presidiu essa pasta no governo Collor, buscou uma nova fonte de recursos: a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), aprovada em 1994 para ser destinada exclusivamente à saúde. “Ele aprovou a CPMF, mas não levou o dinheiro por causa da mesma lógica: a de não aportar mais recursos no setor saúde”, diz, referindo-se ao uso da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que destinou parte da arrecadação a outras áreas.

Uma questão de cultura

Para Paulo Elias, existe uma diferença cultural entre o Brasil e os países do capitalismo central que influencia o resultado da adoção de políticas neoliberais aqui. “Em países da Europa, quando o neoliberalismo veio, já havia um Estado de bem-estar social estabelecido, com uma cultura de direitos sociais bastante consolidada. Aqui, tínhamos acabado de fazer uma Constituição que buscava isso, mas essa cultura nunca existiu”, afirma. Segundo ele, a falta de dessa cultura afetou o modo como a população brasileira recebeu o cerceamento de seus direitos. “Quando o neoliberalismo começou a ser adotado na Inglaterra, por exemplo, não houve mudanças nos pilares do sistema nacional de saúde. Mudou-se a periferia, colocando competição gerenciada, fazendo transferência da administração para agentes privados, aumentando a autonomia desses agentes. Mas ninguém conseguiu tirar recursos do sistema, porque já havia uma cultura estabelecida, uma cidadania organizada. A pressão política nesses países é muito forte”, diz. E compara com o caso brasileiro: “Já no Brasil, sempre houve a ideia de que a classe média e o andar de cima têm uma coisa, enquanto o andar de baixo tem outra. Esse apartheid social está institucionalizado e naturalizado aqui”, analisa.

Paulo Elias ressalta que, apesar de as políticas neoliberais pregarem o esvaziamento do Estado, elas não são as únicas responsáveis pela dificuldade da consolidação de um sistema único de saúde. “Nossa legislação não é clara em muitos aspectos. O Estado brasileiro, na verdade, regula pouco. Algumas leis são contraditórias: dizem uma coisa, colocam a conjunção ‘mas’ e, em seguida, dizem o oposto. Isso acontece com o capítulo do SUS na Constituição: diz que haverá um sistema único de saúde, mas que a saúde é livre à iniciativa privada. Então, podemos dizer que a própria Constituição não estabeleceu um sistema único. Não podemos afirmar que foi o pensamento neoliberal que inviabilizou a construção disso. O problema já se apresentava desde o nascimento do SUS, no DNA”, diz.

Para o professor, o próprio movimento sanitário tinha uma formulação técnica insuficiente na época em que o projeto do SUS foi feito. “O movimento tinha uma diretriz política brilhante, mas a experiência técnica não era proporcional à formulação política. O ‘quê’ era muito maior que o ‘como’”, afirma ele que, na 8ª Conferência participou como representante da USP. Foi por isso que, segundo Paulo, o texto constitucional e, posteriormente, a lei orgânica, não foram revolucionários: “Há uma falsa ideia de que a lei era revolucionária, quando nunca foi. Ela cumpre um papel civilizador, mas consagra as relações e os princípios sociais já existentes. Quando se estuda a emergência dos sistemas de saúde no Brasil, entende-se o presente: eles nascem vinculados ao mundo do trabalho, como um seguro, mediante contribuição. Como é que, de uma hora para a outra, isso vai se tornar um direito?”

O professor ainda chama a atenção para a importância de não culpar apenas o sistema privado pelos problemas do SUS. “É fácil tomar o setor privado como bode expiatório, mas o problema real, no Brasil, é a relação que se estabeleceu entre o público e o privado: o público serve ao privado e o privado não serve ao interesse público geral. Existem vagas sobrando em vários hospitais particulares, que poderiam servir ao SUS de alguma maneira, mas não estamos acostumados a pensar assim. É preciso mudar de mentalidade e pensar um serviço de saúde como alguma coisa que tem que servir à sociedade. Em países como Inglaterra e Canadá, o setor privado atua, mas corresponde a no máximo 10% da produção dos serviços”, diz.

Ele afirma que, hoje, para tentar reverter essa contradição, é preciso efetivar o SUS no cotidiano da cidadania. “Os hospitais governamentais que atendem ao sistema supletivo possuem o mesmo equipamento e os mesmos médicos para todos aqueles que são atendidos, mas a sala de espera e a marcação de exames é diferente. Isso porque a população de classe média não aceita sentar na mesma sala de espera que a população SUS”, diz.

E se não fosse a Constituição? Apesar das dificuldades que o país enfrenta no âmbito dos direitos sociais, Renato Lessa, professor de Teoria Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), acredita que a Carta de 1988 impediu que o impacto das reformas econômicas da década de 90 fosse mais forte. “As reformas que varreram o mundo atingiram o Brasil, mas esse processo aqui só não foi mais acentuado graças à Constituição. Ela foi uma barreira ao processo de descaracterização do Estado enquanto promotor de bem-estar”, afirma. Para ele, a Constituição de 88 representou uma série de avanços que não podem ser esquecidos. “Ela é o coroamento de superação do regime autoritário e da preparação do caminho para uma sociedade mais aberta. Ela pode e vem sendo corrigida ao longo do tempo, e chega aos 20 anos sem apresentar sinais de senilidade.  Nosso maior desafio é cumprir essa Constituição. Acredito que ela deva ser motivo de muito orgulho para o país”, diz.