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PNAD 2009: Brasil ainda tem mais de 70% da população sem ensino médio completo

Apesar de melhorias nos últimos anos, pesquisa mostra que índices de carteira assinada e escolaridade ainda são muito baixos no país.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Em 2004, 18,4% da população brasileira tinha o ensino médio completo. Em 2009, este percentual subiu para 23%. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2009) realizada pelo IBGE e divulgada na semana passada. Quando o critério é a idade, a pesquisa mostra que 90,6% dos jovens de 15 a 17 anos estão freqüentando a escola, contra 85,2% em 2004 e 84,5% em 2008. Já na faixa etária de 18 a 24 anos a escolarização é bastante baixa: apenas 38,5% dos jovens estavam estudando em 2009.

Entre os dados relativos à educação chama atenção também o número alto de analfabetos ainda existentes no Brasil - 14,1 milhões de pessoas, o que representa 9,7% da população com 15 anos ou mais. A porcentagem de analfabetos funcionais - pessoas que sabem assinar o nome, mas não conseguem interpretar um texto, por exemplo - é de 20,36%.

A pesquisa mostrou também que a escolarização cresce de acordo com os níveis de renda. Por exemplo, a freqüência à escola de crianças com idades entre seis e 14 anos foi de 96,5% em classes sem rendimento ou renda inferior que um quarto do salário mínimo. Já em classes com rendimento de um ou mais salários mínimos, a escolaridade na mesma faixa etária atingiu 99% em 2009.

"Nós ostentamos ainda um índice de analfabetismo absurdamente alto. Trabalhar a ideia de que agora nós temos apenas 9,7% de analfabetos com 15 anos ou mais como se isso fosse uma grande conquista civilizatória é um completo absurdo", analisa o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da educação, Roberto Leher. Ele lembra que em países vizinhos, segundo dados da Unesco, as taxas são bem menores: na Argentina, em torno de 2,5%, Chile, 3,5% e no Paraguai, 6%. "O Brasil está junto com países como Bolívia e Peru, nos quais a escolarização é muito mais complexa do que no Brasil, em virtude de existir uma população indígena que é muito relevante, e o espanhol ser praticamente a segunda língua. Por conta disso, claro que a problemática de alfabetização é muito mais complexa lá", compara.

Para o professor, ainda que haja algum crescimento na escolarização brasileira, este não é um mérito do país, já que a média geral da escolarização na América Latina vem subindo, e a do Brasil é até mais baixa do que a média latinoamericana. "É um crescimento em vias de esgotamento, a tendência daqui para frente é de inflexão destes dados", problematiza.

Desafios do ensino médio

Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ramon de Oliveira, houve um avanço no sentido quantitativo de mais estudantes no ensino médio, entretanto, o percentual é bem abaixo do que deveria ser. "O ensino médio é uma ferida histórica que temos no Brasil. A chegada ao ultimo nível da educação básica é uma coisa tardia, houve um crescimento só a partir dos anos 1980, embora muito acanhado. Os dados mostram um crescimento, mas ao mesmo tempo encobrem uma outra questão, que é um quantitativo muito grande de jovens que estão ou fora da escola ou ainda estão presos no ensino fundamental quando deveriam estar freqüentando o ensino médio", observa.

O professor considera que há duas dimensões principais para o crescimento tardio do ensino médio no país. Uma delas está relacionada à estrutura econômica brasileira, à medida que uma grande quantidade de jovens é colocada precocemente no mercado de trabalho e acaba impossibilitada de continuar os estudos. Uma demonstração dessa situação, de acordo com Ramon, é a quantidade de matrículas no ensino noturno, em geral mais precário que o diurno. "Dos jovens que estão no ensino médio hoje, cerca de 50% já estão no noturno", diz.

Segundo ele, o outro aspecto que leva a essa situação histórica de baixa escolaridade de ensino médio é a falta de financiamento adequado da educação. "O recurso investido no ensino médio, mesmo com o Fundeb [Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica] a partir de 2007, ainda é muito pequeno", analisa. Ele recorda que quando essa fase de ensino foi incorporada ao Fundeb, em 2007, o valor destinado a um aluno por ano era pouco mais de mil reais. "Imagine o que é pegar apenas mil reais durante todo o ano para custear a despesa de um aluno no ensino médio! É um valor muito aquém de qualquer país que investe com um mínimo de seriedade. Nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], o investimento médio chegava a pouco mais de R$ 13 mil reais por aluno ao ano. É uma diferença brutal. Aqui no Brasil, os antigos Cefets, hoje Ifets, ou as escolas ligadas à rede federal, há dois anos já tinham um custo aluno de no mínimo R$ 4 mil reais", detalha.

Para Ramon, a escolaridade atingida no ensino fundamental é satisfatória, com quase a totalidade das crianças e adolescentes de 6 a 14 anos na escola, conforme mostrou a Pnad. "O problema central está mais no jovem, porque quando se analisam os dados se percebe que à medida que aumenta a idade, há um percentual razoável de pessoas que nem estão trabalhando, nem estudando. Ou seja, são pessoas que estão marginais ao que deveria ser uma ocupação em sua idade", alerta.

Roberto Leher levanta ainda um outro problema, que é a redução da taxa de conclusão do ensino médio, mas também do fundamental e do superior. "O estoque geral de estudantes cresceu, mas se analisarmos os dados de forma mais desagregada vamos perceber que está havendo um processo paulatino de redução do número de estudantes que efetivamente concluem o nível de ensino que está frequentando. Por isso, a tendência não é de ampliação da escolarização em cada nível, mas dentro de alguns anos esses índices medíocres que temos podem ser menores do que os atuais", diz. O professor informa que em 2008, pelos dados do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], 1,8 milhão de estudantes abandonaram o ensino médio.

Superior para poucos

A Pnad mostrou que em 2009 apenas 10,6% da população tinha o ensino superior completo. Entre as pessoas ocupadas, o índice dos que tinham concluído essa fase de ensino também é pequena - 11,1%. Para Leher, esses e os outros indicadores da Pnad revelam que as atividades produtivas no Brasil funcionam com uma força de trabalho que, no geral, tem uma modesta escolarização. Desse modo, há uma pequena demanda por força de trabalho com escolarização mais elevada. O professor chama atenção para o fato de que são justamente esses trabalhadores com ensino superior completo que têm a maior taxa relativa de desemprego. "Aquilo que Florestan Fernandes denominava como um padrão de acumulação capitalista dependente segue sendo uma marca fundamental da formação social brasileira, a despeito das declarações dos partidos e políticos tradicionais e dos governos de que a escola pública é importante, de que a educação é prioridade, até mesmo das exortações empresariais em favor da educação. Na realidade, o país funciona bem para o capital com uma população baixamente escolarizada", diz.

Outro dado da Pnad mostra que na educação superior, a participação do setor privado foi de 76,6%. Leher comenta que a ampliação de estudantes na educação privada vem crescendo consistentemente desde a década de 1970. "A característica fundamental desse processo da década de 1990 para cá é que essas matrículas no setor privado são, grosso modo, em instituições com fins lucrativos, as chamadas particulares. E são instituições que em geral não podem assegurar um padrão de fato de educação superior, porque na realidade o que os cursos oferecem é uma educação pós secundária, de qualidade muito precária e com um caráter minimalista, a despeito do esforço de professores, que não encontram condições para desenvolver um trabalho acadêmico mais rigoroso e mais sério", afirma.

Diante disso, o professor avalia que é preciso ler o dado de que 11,1% da população ocupada tem ensino superior de forma atenta a esse aspecto da privatização da educação, já que esses trabalhadores, em geral, tiveram essa formação que ele chama de pós-secundária muito ruim. "Temos um quadro que confirma Florestan Fernandes quando ele fala que o capitalismo dependente é uma maneira como o capital se organiza permitindo uma brutal heteronomia cultural. Ou seja, não há um grande problema no fato de termos uma força de trabalho modestamente escolarizada, isso não me parece ser um problema estratégico para os setores dominantes", ressalta.

Escola e emprego

O professor de economia da Universidade Federal Fluminense e assessor da presidência do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), Fernando Mattos, acredita, entretanto, que os dados mostram que o nível de escolaridade no mercado de trabalho está subindo, já que, em relação ao ensino médio, por exemplo, a escolarização da população ocupada aumentou quase 10% entre 2004 e 2009. "O nível médio completo já é uma qualificação razoável porque em várias profissões é o que se espera e se exige. Isso revela uma melhoria do mercado de trabalho no Brasil", analisa.

Recentemente, a OCDE divulgou uma pesquisa que revelou que no Brasil a taxa de desemprego é maior entre os trabalhadores que concluíram o ensino médio do que entre aqueles sem esse nível de escolarização. "Isso desmente uma teoria muito comum na economia do trabalho que é dizer que o nível de renda da pessoa depende da escolaridade. A geração do emprego não depende só de a pessoa querer e ter boa formação, depende também da atividade econômica estar indo bem. Por exemplo, um rapaz que tenha se formado em engenharia naval nos anos 1990 não arrumaria emprego porque nessa época a industria naval do Brasil foi praticamente eliminada", comenta.

O diretor da Faculdade de Economia da UFRJ, João Sabóia, lembra que os dados da Pnad foram coletados em setembro de 2009, ainda durante a crise econômica que atingiu vários países, portanto, indicadores como de desemprego precisam ser analisados sobre esse aspecto. A pesquisa mostra que a taxa de desocupação em relação a 2008 subiu de 7,1% para 8,3%. "A economia estava se recuperando de um choque muito forte e isso ficou evidente na Pnad. Mas desde 2004 há uma tendência clara de melhora do mercado de trabalho, a pesquisa mensal de emprego mostra que a taxa de desemprego vem caindo desde aquela época", afirma.

Para o professor, os níveis de escolaridade entre a população ocupada ainda são muito baixos. "Para se entrar no mercado de trabalho hoje em condições minimamente favoráveis é preciso ter ensino médio completo. A escolaridade tem crescido muito, mas ainda é muito baixa no Brasil, inclusive em relação aos países da América do Sul. E também não podemos esquecer que apesar dessa melhora, a qualidade do ensino ainda está muito ruim, embora o número de anos estudados pela população tenha crescido bastante", assegura.

Carteira assinada

A Pnad mostrou ainda que os trabalhadores com carteira assinada representavam 59,6% do universo dos trabalhadores no ano passado. Fernando Mattos acredita que houve um aumento significativo da participação das pessoas com carteira assinada no conjunto de ocupados nos últimos anos, o que revela uma economia mais robusta e também um acerto nas políticas sociais implementadas. No entanto, ele considera que o nível de formalidade ainda é baixo. "Ainda há muita gente na informalidade no Brasil. Isso é uma característica de país de terceiro mundo. Não há nenhum demérito para a pessoa que trabalha na informalidade, não é isso, mas o ideal era que a economia fosse formada por cada vez mais pessoas no setor formal porque a informalidade muitas vezes é uma estratégia de sobrevivência que a pessoa tem. Mas a formalidade garante mais segurança e mais direitos, já que na informalidade a pessoa não pode planejar muito a vida", define.

João Sabóia concorda: "a falta de carteira assinada é um problema sério para as pessoas e para o país porque quando elas envelhecerem elas terão algum tipo de benefício, seja contributivo porque elas contribuíram ou não contributivo se as pessoas não tiverem outra renda, vão acabar recebendo um benefício de prestação continuada ou ver receber uma bolsa família, o que seja, o Brasil está melhorando nisso, mas ainda está ruim", argumenta.