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PNE é aprovado com ressalvas

Depois de mais de quatro anos em tramitação, Plano Nacional de Educação (PNE) é aprovado, mas financia projetos de instituições privadas de ensino.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 03/07/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A disputa foi árdua e grande parte dela noticiada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). E no último dia 26 de junho, foi aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), determinado pela lei nº 13005/2014 e que traz, entre os pontos polêmicos e conquistas, o financiamento da educação e as 20 metas e 254 estratégias para todos os níveis da educação a serem implantadas no decênio 2011-2020, que já começam com três anos de atraso. O financiamento desse desafio, também conquistado pelo Plano, será de 10% do Produto Interno Bruto (PIB).

De acordo com Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o texto publicado é melhor que a versão original que foi encaminhada ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo em 2010, e isso se deve a mobilização da sociedade civil. No entanto, a versão aprovada recentemente traz pontos críticos como as parcerias público- privadas e a permanência da remuneração dos professores baseada em resultados. "Não há dúvidas que fizemos conquistas importantes. Mas a questão do financiamento não exclusivo para educação pública foi uma estratégia muito bem arquitetada pelo governo federal, que se aliou aos grandes empresários da educação financiadores das campanhas dos deputados ligados à área. Não foi por acaso que a Conae [Conferência Nacional de Educação] foi cancelada", analisa.

A presidente do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes-SN), Marinalva Oliveira, tem uma avaliação mais pessimista. "A nossa conclusão é que o PNE sancionado é uma legislação que atende aos interesses privatistas do empresariado da educação, aprofunda a precarização do trabalho docente e promove uma expansão sem condições adequadas para preservar a qualidade do ensino público, desde a educação básica até a educação superior, na perspectiva de se desobrigar do compromisso do financiamento da Educação Pública", explica e completa: "Outro problema que consideramos grave é a origem de parte desses recursos. Com a destinação dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal, o governo negligencia o financiamento da educação, que é um direito que deve ser assegurado pelo Tesouro Nacional e não a partir de bens finitos. Essa estratégia se mostra, portanto, inconstitucional, pois a educação não pode ficar a mercê da privatização barata de um patrimônio do povo brasileiro, que é reserva natural e esgotável de petróleo. É importante ressaltar ainda que esse recurso poderá existir no máximo no médio prazo, pois as empresas exploratórias não terão lucro imediato, o que torna imprevisível o período em que as empresas estarão aplicando o dinheiro do fundo. E caso os recursos venham, acrescentarão apenas 0,4% do PIB em 2024. O novo PNE é a retificação do velho", avalia.

Essa estratégia por parte do governo federal, segundo Daniel, pode prejudicar diretamente a educação pública. "O impacto negativo na educação é que as parcerias público-privadas giram no entorno de 0,5% a 0,9% do PIB, dependendo de quem calcula. Portanto, quando aprova 10% do PIB pra educação é apenas 9,5% ou 9,1% para educação pública, o que é insuficiente para o cumprimento das metas do PNE. Esse é o aspecto mais grave. O outro está no apoio à financeirização da educação, que impacta na qualidade da educação. O empresário da educação não está preocupado com qualidade e, sim, com a lucratividade", informa.

Entre os projetos financiados por parcerias público-privadas estão o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), bolsas em faculdades privadas como o Universidade para Todos (ProUni), financiamento estudantil (Fies) e bolsas para estudo no exterior (Ciência sem Fronteiras). O PNE garante ainda que creches conveniadas com o poder públicoe escolas de educação especial também serão financiadas. De acordo com o Portal da Transparência, somente instituições como Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), instituições carros-chefe do Pronatec, receberam em 2013 investimentos que chegam a R$ 2 bilhões de reais.

Ao ser questionado sobre o término destes programas, caso o PNE fosse aprovado com a exclusividade do financiamento da educação pública, Daniel defende que propostas foram apresentadas, mas o governo não quis negociar. "Apresentamos duas alternativas: a primeira era a consideração da contabilização dessas matrículas de forma transitória e, com o tempo, parar de contabilizar. E a segunda é que a própira lei que determina esses programas garante a continuidade dos mesmos, mas sem este financiamento. Foi feita muita demagogia por parte do governo", avalia.

Outro ponto negativo avaliado pelos movimentos ligados à educação é a remuneração do professor ligada a metas. Para Daniel, essa questão aumenta a desigualdade dentro dos sistemas. "Os professores vão buscar a remuneração variável, ou seja, a remuneração por bônus. E para eles conseguirem alcançar essa remuneração melhor, eles vão buscar as escolasque possibilitem alcançar esses índices. Principalmente, os melhores professores vão buscar as escolas com mais estrutura, fora, por exemplo, dos bolsões de violência", indica.

Marinalva, do Andes, informa que essa forma de instrumentalização da educação básica e superior, adaptando a força de trabalho as exigências do processo produtivo, faz parte do projeto de educação do governo. "A remuneração dos professores deve se basear em um piso salarial como base e uma carreira estruturada em princípios e critérios claros, definidos em lei, pautados na formação continuada e tempo de serviço. A obrigação do governo é criar condições adequadas de recursos e possibilidades para os professores trabalharem, em sua maioria em regime de tempo integral e dedicação exclusiva . A consolidação da qualidade para o ensino exige condições essenciais para o trabalho docente como carreira e estabilidade no emprego", propõe.

CAQi 

Com a aprovação do PNE, foi criado o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), que é calculado a partir de índices como a jornada de aula, nú¬mero de alunos por turma, va¬lorização do professor e infraestrutura. Baseado no CAQi, será calculado o valor mínimo a ser investido anualmente por aluno. O cálculo leva em consideração padrões mínimos de qualidade com a análise de itens como construção de escolas, compra de equipamentos e número de professores, com valores diferenciados para educação do campo, indígena e para alunos com necessidades especiais. A implementação do CAQi deve ser realizada em até dois anos após a publicação da Lei do PNE. O CAQi foi um mecanismo elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e normatizado pelo Conselho Nacional de Educação em 2010.

"Essa foi uma proposta que nasceu integralmente na sociedade civil e que foi duramente combatida pelo governo federal, mas a presidente não teve condições políticas nem técnicas para vetar. O governo tem tratado o PNE como uma carta de intenções. O CAQi é o único elemento que dá materialidade ao PNE, porque a viabilidade dele deve ser baseada no cumprimento de diversas metas como a equiparação salarial dos professores com as demais profissões, formação inicial e continuada de professores, além do plano de carreiras", explica Daniel, que completa: "Em dez anos podere¬mos resolver um problema históri¬co, que é baixa participação da União no investimento em educação básica".

Sinaeb

A criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), que está incluído no PNE, também é avaliada como uma grande conquista. O objetivo do Sinaeb é superar o atual modelo de avaliação, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), exclusivamente centrado em testes padronizados de aprendizagem. "O novo Sistema aponta para uma nova política de avaliação. A avaliação de hoje só vê o resultado, não analisa os processos para chegar a tal resultado. E a nossa busca é, na verdade, jogar luz sobre o processo, para que fique evidente a desconsideração do governo em relação à educação. Não é possível que o governo não entenda que escolas devem receber investimento diferenciado, como aquelas, que estão próximas de regiões violentas", avalia Daniel. e acrescenta: "O Ideb tem ajudado a aumentar as desigualdades entre as escolas públicas, porque os governantes têm optado por melhorar aquelas escolas que já têm um desempenho melhor, que, na maior parte das vezes, estão localizadas em áreas urbanas, os pais têm escolaridade alta, tem estrutura. Como o Ideb é uma média, eles sobem as que já estão bem estruturadas e aquelas que estão com média baixa ficam abandonadas como sempre estiveram".

Conae e próximos passos

Para Daniel Cara, a partir de agora a questão é pressionar o governo federal para que o PNE seja efetivado. Para ele, o papel da Conferência Nacional de Educação (Conae), que será realizada em novembro de 2014, por conta do adiamento, será o de recuperar o que as eleições não vão pautar. "Os governantes odeiam planos que determinam como eles têm que trabalhar. Eles preferem dessa forma, sem nenhum compromisso, porque abre margem ao marketing político", avalia.

Marivalva, por outro lado, informa o Andes decidiu não participar da Conae. "A avaliação é que a Conae era um espaço convocado pelo governo com a participação de setores da sociedade civil, mas com a intenção apenas de legitimar as políticas e projetos para atender aos interesses privatistas do empresariado da educação. O exemplo mais claro é que as sugestões e reivindicações discutidas e consensuadas na Conae não foram acatadas pelo governo na elaboração do PNE", explica e completa: "A decisão do Andes foi acertada, pois, além do governo não considerar as discussões ocorridas na Conferência anterior, ainda adiou a Conae de 2014", analisa a presidente do sindicato.

Ela indica ainda que agora será o momento de articulação da sociedade, agregando movimentos sociais, populares e sindicais em educação, para construir uma proposta alternativa a do governo. "Diversas entidades como Andes e CSP-Conlutas, SINASEFE, ANEL, Oposição de Esquerda da Une, CFESS, FENET, ExNEEF estão construindo o Encontro Nacional de Educação, articulado a partir do Comitê Executivo da Campanha pelos 10% do PIB para a Educação Pública, Já!, que ocorrerá no início de agosto, no Rio de Janeiro", informa. Neste momento, já estão sendo realizados encontros preparatórios em diversos estados.