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Progredir como?

Anunciado como porta de saída do Bolsa Família e pegando carona no Pronatec, novo plano do governo federal baseia oferta educacional em cursos curtos, a distância e oferecidos voluntariamente por instituições privadas. Especialistas contestam eficácia da medida
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 03/10/2017 16h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

O governo federal lançou no último dia 26 de setembro o 'Progredir'. O Plano tem como foco os inscritos no Bolsa Família, além de pessoas que recebem outros benefícios sociais, e foi anunciado como porta de saída dos programas de transferência de renda. Coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a iniciativa promete "emancipar economicamente" até um milhão de famílias nos próximos 24 meses.

"O Bolsa Família é fundamental, mas qual é o meu sonho, o sonho de todos aqui no auditório? É que daqui a dez, 15 anos que seja, não vou fixar prazo, venhamos comemorar a desnecessidade de qualquer benefício de natureza individual porque todos estarão empregados no nosso país", disse o presidente Michel Temer durante a cerimônia de lançamento realizada no Palácio do Planalto. “Quem está no Bolsa Família precisa e quer progredir na vida. Temos que oportunizar a essas famílias um futuro melhor. O Progredir tem tudo para desencadear o maior processo de inclusão produtiva dos mais pobres no Brasil”, afirmou, por sua vez, o ministro do MDS, Osmar Terra.

Em setembro, 13,5 milhões de famílias receberam em média R$ 179,64 por mês pelo programa. O corte de renda do Cadastro Único – sistema do governo que controla os inscritos – é de até três salários mínimos por família. O 'sonho' de um 'futuro melhor' para esses brasileiros, segundo o governo, pode ser alcançado através do incentivo ao empreendedorismo, da facilitação do acesso ao mercado de trabalho e da oferta de qualificação profissional. E é aí, segundo os especialistas ouvidos pelo Portal EPSJV, que começam os problemas.

Descolamento

O Progredir tem como meta oferecer um milhão de vagas no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) até o fim do ano. Contudo, todas estão no âmbito do Pronatec Oferta Voluntária, chamada pública feita pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC) em setembro de 2016 que começou a funcionar a partir deste ano e se baseia em cursos de formação inicial continuada (FIC) na modalidade de educação a distância (EaD).

"O Programa consiste na oferta voluntária de vagas pelas instituições privadas, logo, como é uma oferta voluntária, não há custo para o ministério ou para o governo federal. Esse é o foco do programa, com as instituições oferecendo vagas FIC em EaD. O MDS pediu parceria para incluir vagas do Pronatec Oferta Voluntária no Progredir, que é voltado para o público do Bolsa Família. E assim foi feita a parceria", diz a nota do MEC enviada ao Portal EPSJV. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, apenas 0,03% das vagas disponibilizadas pelo Progredir serão em cursos técnicos. "No terceiro lote [do Pronatec Oferta Voluntária], que está em andamento neste momento, são 875 mil vagas em modalidade FIC e 310 vagas em modalidade curso técnico", informou a pasta.

"Há um descolamento entre os objetivos e o público-alvo do Progredir", acredita Romir Rodrigues, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Ele, que acaba de concluir o doutorado em Educação com tese sobre o Pronatec, aponta uma série de problemas do tipo de oferta prevista no novo plano do governo federal. "Pensando nesse perfil do Cadastro Único, a pergunta básica é: os beneficiários do Bolsa Família têm acesso à internet, a computador? Sabem usar computador? Pensando nas diversas realidades brasileiras, existe infraestrutura para assistir as aulas à distância?’, questiona, emendando: "Será que um curso de 300 horas feito a distância vai efetivamente impactar para que essas pessoas tenham uma inserção mais propositiva no mundo do trabalho?".

O pesquisador acredita que qualquer programa que tenha como meta um futuro melhor para a população em situação de pobreza deveria, primeiro, investir na elevação da escolaridade dos beneficiários. "O progredir demonstra o desconhecimento da realidade concreta das pessoas que acessam o Bolsa Família, um desconhecimento da realidade do Brasil. Ou melhor, é dentro da realidade deste governo. É um faz de conta", critica ele.

Também para Roberto Arruda, professor da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) que estuda o Bolsa Família, o plano tem "um viés equivocado". "O Progredir tem essa perspectiva de, entre aspas, potencializar o beneficiário do CAD-Único para que ele produza sua própria renda. Vende essa ideia de que, a partir desse processo de qualificação, ele vai se inserir numa relação de mercado em que será 'patrão de si mesmo', o que é um engodo", aponta.

O Progredir deve destinar até R$ 3 bilhões por ano em microcrédito para que as famílias invistam no próprio negócio. Roberto afirma que o governo deveria centrar esforços em medidas que levassem à inserção formal no mercado de trabalho. Mas lembra que o contexto político parece mostrar que essa não é uma prioridade. "A desigualdade brasileira é estrutural, não é apenas uma situação momentânea. A reforma trabalhista aprovada recentemente aprofunda ainda mais a desigualdade. É evidente que as classes empresariais não cedem nem um milímetro para que a classe trabalhadora venha a ter um melhor rendimento. Numa ponta, temos o processo de concentração de renda; na outra, pobreza, miséria, violência, todas as formas de exclusão social, que são medonhas. O empreendedorismo não combate esse processo de desigualdade de forma alguma. Pelo contrário", critica Arruda.

Romir Rodrigues concorda: "Esse empreendedorismo linear e meio burro de achar que abrir um 'negocinho' vai ser suficiente e que, somando, esses vários 'negocinhos' podemos ter mudanças no patamar social do país, não tem sentido. Ter 20 barraquinhas de cachorro-quente gourmet na minha cidade não vai fazer com que haja uma mudança social".

Mais distante do sentido original

Segundo o professor da Unemat, o Progredir é mais um passo de uma gradativa descaracterização do Bolsa Família, que vem acontecendo desde o governo Dilma Rousseff. "Quando surge, o Bolsa Família trabalha no sentido da distribuição a um contingente maior de pessoas de uma fatia da riqueza produzida no país. O governo Dilma tenta, desde seu início, uma maior aproximação com setores empresariais tradicionais. Esse pacto faz com que o programa tenha como carro-chefe a empregabilidade. Essas concessões foram feitas não somente no Bolsa Família, mas em termos de incentivos fiscais e o retorno foi muito pequeno em relação ao desenvolvimento do país. O resultado é que beneficiário do Bolsa foi reduzido à mão de obra e o programa à dimensão da empregabilidade", analisa e completa: "Agora, a empregabilidade parece dar lugar ao empreendedorismo".

O professor do IFRS lembra o programa Brasil Maior, lançado em 2011, momento em que o Pronatec passa a ser uma espécie de vetor para o qual convergem demandas de qualificação profissional dos vários ministérios – inclusive do MDS, que entrava como demandante de cursos para beneficiários de programas sociais e respondeu pela maior parte das vagas oferecidas no Brasil Maior. "Mas o Pronatec era um de vários elementos que se somavam na tentativa de romper o ciclo de pobreza das pessoas. Junto tinha desde ações de valorização da mulher a ações para a população desdentada. Não foi suficiente, mas tinha uma visão de conjunto", diz Romir, para quem isso se perdeu: "Agora essa visão de conjunto sai do horizonte para dar lugar ao indivíduo que, sozinho, vai procurar a qualificação, vai fazer o curso à distância, vai abrir o seu negócio, vai sair da pobreza por conta própria".

Segundo ele, política social e política educacional apontam, hoje, para um mesmo sentido: a redução da participação – e responsabilização – do Estado. "Não é à toa que o Pronatec agora trabalha com voluntariado. Se você quer destruir o que é público e dizer que as iniciativas públicas não são tão necessárias assim, em parte você privatiza, em parte passa para o terceiro setor", resume. Romir compara com os governos Lula e Dilma, que embora tenham destinado uma quantidade grande de recursos para o setor privado, ampliaram a infraestrutura pública na educação profissional e no ensino superior. "Viviam na contradição ou, em outras palavras, acenderam velas para vários santos. Agora se acende vela só para o desmonte do público. Se o Progredir vem reforçar no imaginário social a ideia de que o cidadão vai dar conta sozinho, o Pronatec Oferta Voluntária  vem afirmar que o Estado pode se retirar das ofertas das políticas públicas porque o terceiro setor dá conta. É a terceira via da década de 1990 que retorna com toda força", afirma.

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