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Proposta quer retirar direitos sociais da Constituição

Temas como saúde, educação e previdência ficariam apenas em leis ordinárias e complementares. PEC teve parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2009 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Vinte e um anos após a promulgação da Constituição Federal brasileira, uma proposta tem como objetivo enxugar o texto e retirar mais de 80% dos seus artigos: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 341/2009 , do deputado Regis de Oliveira (PSC-SP), reduz os 250 artigos do texto atual a apenas 62, e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que hoje conta com 96 artigos, passa a ter somente um. O projeto teve parecer favorável do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA). Entre as principais mudanças previstas na PEC e mantidas pelo relator está a retirada de toda a matéria que dispõe sobre direitos sociais: foram excluídos os capítulos sobre a seguridade social e sobre a educação, por exemplo. A constituição proposta por Regis de Oliveira não traria mais saúde e educação como direitos de todos e deveres do Estado, não estabeleceria o Sistema Único de Saúde nem trataria da assistência social e da previdência. Direitos dos trabalhadores, como seguro-desemprego, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), 13º salário, férias, garantia de salário mínimo e a livre associação profissional ou sindical também não estariam presentes no documento. “O objetivo disso é retirar tudo aquilo que não é matéria constitucional”, argumenta o autor da PEC. Na justificativa da proposta, ele ainda escreve que é preciso evitar “a existência das constituições formais, onde cabe toda e qualquer matéria, por mais irrelevante que seja”.



Apesar de ter dado parecer favorável, Sérgio Carneiro dividiu a PEC em dois substitutivos: o primeiro, que será analisado pela CCJC e dará continuação à tramitação, diz respeito ao enxugamento propriamente. Nele, o relator preferiu restabelecer alguns artigos e deixar o texto final com 76, ao todo — a proposta inicial retirava, por exemplo, as atribuições do presidente da república, os princípios da administração pública, a seções que descrevem a organização de estados e municípios, a fiscalização contábil, financeira e orçamentária, a forma de constituição do poder judiciário e a especificação dos bens da União. Esses e outros dispositivos foram mantidos por Sérgio Carneiro.



Já o segundo substitutivo diz respeito não à supressão de artigos, mas a alterações do texto constitucional que haviam sido propostas no texto original de Regis de Oliveira, como a fusão de Câmara e Senado em uma única casa legislativa. De acordo com Sérgio Carneiro, esse segundo substitutivo não deve ser analisado agora: ele deve constituir uma nova PEC. “Isso porque as propostas são todas muito polêmicas e a aprovação do projeto, tal como estava, seria muito difícil”, explica.



Para Marcus Vinícius Coelho, presidente da Comissão de Legislação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que está em jogo são duas visões distintas de modelos de Constituição. “Alguns entendem que o texto constitucional deveria ser sintético, como o dos Estados Unidos, trabalhando apenas com questões que dizem respeito à organização dos poderes e os direitos e garantias fundamentais, como propõe Regis de Oliveira. Mas há uma segunda posição que entende que a Constituição deve ser analítica, como ocorre em geral na Europa – e no Brasil. Segundo essa concepção, o texto deve ir além da constituição sintética e tratar também da vida da sociedade como um todo: da comunicação social, da cultura, do meio ambiente, da proteção à família, do respeito aos direitos sociais”, diz, afirmando que a tradição da nossa realidade jurídica tem sido baseada nessa segunda visão desde 1934.



O deputado estadual Carlos Mosconi, que participou da subcomissão de saúde, seguridade e meio ambiente da Constituinte de 1988, também critica a proposta de enxugamento. “Hoje, questões como a saúde são encaradas de uma maneira, mas amanhã não sabemos como vai ser. Estando na Constituição, a garantia é muito maior”, diz. Para Marcus Vinícius, existe ainda uma outra questão: de acordo com ele, o fato de os direitos sociais estarem na Constituição faz com que esses temas permaneçam na agenda política do país: “Se forem retirados, corre-se o risco de que saiam dessa agenda”, alerta.





Garantia em leis ordinárias ou complementares



O argumento de Regis de Oliveira é que a parte que ele propõe suprimir deve ser tratada por leis ordinárias ou complementares, e não pela Constituição. Ele afirma que, em 1988, o país acabava de sair de uma longa ditadura e que, por isso, fazia sentido garantir direitos sociais na Constituição, já que havia o receio de voltar a perdê-los mais tarde. “Naquela época, tinha-se a sensação de que era preciso preservar o país contra uma nova revolução (referindo-se ao golpe militar de 1964), uma nova supressão dos direitos. Hoje isso não é mais assim, porque os poderes estão funcionando livremente e a sociedade está tranquila. Não há mais razão para manter todos esses aspectos. Essa estrutura velha é que nós temos que demover”, diz.



Mas, para o jurista Dalmo Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) a justificativa é equivocada. “A garantia na Constituição continua necessária, porque de fato tudo o que foi colocado no texto foi uma conquista que só se tornou possível porque o povo estava nas ruas. Agora, é extremamente perigoso abrir a possibilidade de voltar atrás, porque não existe mais uma pressão tão grande da sociedade sobre os políticos”, diz. Para Marcus Vinícius, o movimento deveria ser o oposto: não pela retirada dos artigos, mas pelo seu cumprimento. “No meu entendimento, essa é uma proposta elitista, porque considera que direitos à saúde e à educação, por exemplo, são matérias que não estão num patamar preferencial de tratamento”, pontua. De acordo com Dallari, a proposta representa um retrocesso: “Essa Constituição é, de longe, a melhor que o país já teve”, comenta.





Facilitar o trabalho do Congresso?



Direitos garantidos na Constituição são mais estáveis, não porque não seja possível alterá-los ou removê-los, mas porque o processo para fazer as mudanças é complexo: “Uma PEC da Câmara, por exemplo, precisa passar por um exame de admissibilidade, por uma comissão de mérito e ainda por duas votações em plenário, em que deve obter aprovação de três quintos dos parlamentares. Em seguida, segue para o Senado, onde passa por novo exame de admissibilidade e por mais duas votações em plenário, para voltar para a Casa de origem e ser, finalmente, aprovada”, explica Sérgio Carneiro. Por outro lado, para alterar assuntos de leis complementares ou ordinárias é preciso conseguir apenas, respectivamente, a maioria absoluta ou simples dos parlamentares.



Um dos argumentos de Regis de Oliveira e Sérgio Carneiro para sustentar a proposta do enxugamento é justamente a agilidade que isso traria às mudanças no futuro, já que é mais fácil alterar leis complementares e ordinárias que dispositivos constitucionais. O autor da PEC afirma que hoje há cerca de 1.200 propostas tramitando na Câmara e mais 400 no Senado: “Com isso, o legislativo não está com sua força toda para legislar”. O deputado diz ainda que considera “um absurdo” que questões sociais sejam difíceis de se alterar. “Se a maioria do Congresso quiser retirar algum direito, alguma garantia dos trabalhadores, ou qualquer dispositivo legal, o que pode impedir? É preciso remover obstáculos de caráter constitucional para resolver um problema da sociedade? Acho um absurdo”, diz.



Marcus Vinícius contesta: “Facilitar o trabalho do parlamento é um argumento muito pequeno para justificar a grave intervenção na ordem jurídica constitucional brasileira – para retirar da Constituição a proteção aos aposentados, o limite mínimo de gastos em educação e em saúde, a proteção à infância e à adolescência. O que não se pode fazer é sacrificar a população sob a justificativa de que o parlamento tem dificuldades”, afirma. Mosconi concorda: “Essa é uma posição temerária. O texto foi um grande avanço, e foi duro conseguir o que está lá. Na área da saúde, o maior avanço já conquistado foi a Constituição. Não tem nada sobrando – só faltando, como a Emenda 29, que não está regulamentada”, afirma.



Artigos podem retornar ao texto



Apesar de já ter recebido o parecer favorável do relator da CCJC, a tramitação da matéria está no começo: o substitutivo de Sérgio Carneiro ainda será examinado e votado por essa comissão e, antes de ir a plenário, precisa passar ainda por uma comissão de mérito. Segundo Sérgio Carneiro, nos dois debates há espaço para que artigos sejam restabelecidos. “É possível que esse não seja o substitutivo a ser aprovado na própria CCJC. Questões como os direitos sociais podem retornar ao substitutivo para viabilizar sua aprovação. A comissão de mérito, por sua vez, também tem autorização para fazer novas modificações. A proposta ainda está aberta”, diz.



Para Marcus Vinícius, é importante que haja uma pressão social sobre os parlamentares, nesse momento. “Fica um alerta à sociedade e aos movimentos sociais. O Brasil é um país com suas características próprias e não pode cometer a alienação jurídica de importar o modelo dos EUA. Nós temos nossa própria realidade, e ela exige que tenhamos uma constituição que proteja os direitos sociais. E são esses direitos que o enxugamento pretende retirar”, reflete.




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