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Quando a Saúde quis formar trabalhadores técnicos em Larga Escala

Projeto voltado para atendentes de enfermagem deu, pela primeira vez, visibilidade aos profissionais de nível auxiliar e médio no Brasil
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/07/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Operários - Tarsila do Amaral

O aluno era diferente dos que se viam nas escolas existentes. Essas escolas não reconheciam as peculiaridades desse aluno. Para ele, então, precisava ser construída uma nova escola, com um currículo específico e uma metodologia própria. Esse pode ser o resumo da história do Larga Escala, projeto de formação de trabalhadores de nível médio em saúde que, na esteira da Reforma Sanitária, deu, pela primeira vez, visibilidade àqueles que, na década de 1980, representavam, segundo dados do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), 70% da força de trabalho em saúde. “Larga Escala quer dizer: o Estado-escola, um país-escola”, explica Izabel dos Santos, mentora e executora do projeto, em entrevista a um vídeo produzido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Vídeo Saúde e Casa de Oswaldo Cruz, todas unidades da Fundação Oswaldo Cruz.

O nome do projeto não podia ser mais colado ao seu objetivo: formar, em larga escala, os trabalhadores do Brasil inteiro que atuavam nos serviços de saúde sem escolaridade e sem conhecimentos técnicos formalmente adquiridos. Em outras palavras, mudar um cenário que, na visão de Izabel dos Santos, tinha dois problemas principais: por um lado, fazia com que a prática desses trabalhadores não formados fosse lesiva ao usuário do sistema de saúde; e, por outro, explorava esses trabalhadores. “Era uma exclusão social terrível: eles sustentavam a produção dos serviços de saúde, mas não eram nada”, diz, no mesmo vídeo.

O contexto

O documento em que o Inamps apresenta o Larga Escala diz que ele nasceu em 1981. Em 1982, os ministérios da Saúde, da Educação, da Previdência e Assistência Social e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) assinaram o ‘Acordo de Recursos Humanos’, do qual o Larga Escala é um dos frutos. Já sua formalização legal veio alguns anos mais tarde, em 1985, com a resolução Ciplan (Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação) nº 15, que aprovou o projeto como estratégia prioritária na “preparação de recursos humanos no âmbito das Ações Integradas de Saúde”.

Mas o Larga Escala é resultado de um processo histórico que não se restringe a esse período. Como projeto, representou uma das fases do Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (Preps) – criado em 1975 pelo Ministério da Saúde e Opas, em parceria – que, por sua vez, era uma das iniciativas de extensão de cobertura dos serviços de saúde que se davam naquele momento. E encontrou o seu caminho de implantação no movimento da Reforma Sanitária, que chamou atenção para a importância dos trabalhadores da saúde. “A Reforma Sanitária reconheceu a questão dos recursos humanos como um nó. E, nesse momento, a situação dos trabalhadores de nível médio apareceu de frente, em função do seu volume”, conta Milta Torrez, membro da coordenação pedagógica da EaD da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) que participou da implantação do Larga Escala pelo Rio de Janeiro e fez sua dissertação de mestrado sobre o projeto.

Trabalhador excluído

Milta destaca que um dos grandes méritos do projeto foi o fato de Izabel dos Santos ter identificado uma situação de forte exclusão social num processo em que todos reconheciam apenas uma falta – no caso, de escolaridade ou formação profissional. Para se ter uma ideia, dados do Conselho Federal de Enfermagem mostram que, em 1985, cerca de 41% dos atendentes de enfermagem – que foram o público do Larga Escala – tinham o primeiro grau (atual ensino fundamental) incompleto, quase 23% tinham o primeiro grau completo e 31% tinham o segundo grau (atual Ensino Médio) completo. “O Larga Escala combateu a naturalização das ações de saúde promovidas pelos profissionais de nível fundamental e médio. Fez com que essa questão ganhasse espaço político, colaborando para que o aumento de escolaridade passasse a estar na agenda política do Ministério da Saúde”, opina Isabel Brasil, diretora da EPSJV/Fiocruz, que fez sua tese de doutorado sobre a formação profissional em serviço no SUS.

O que Izabel dos Santos tinha percebido, a partir da observação e do relato dos trabalhadores, era que, durante muito tempo, eles foram submetidos a diversos treinamentos específicos que não configuravam uma formação minimamente sólida nem lhes forneciam qualquer certificação. Daí nasceu uma das principais bandeiras do Larga Escala: a de que a formação deveria substituir os treinamentos utilitários. “Teve um dado momento em que eu comecei a fazer diferença entre formação e treinamento. Foi a partir daí que passei a ter a profundidade que eu não tinha”, disse a idealizadora do projeto no livro ‘Izabel dos Santos: a arte e a paixão de aprender fazendo’.

A ideia, então, foi aproveitar o próprio processo de trabalho como mecanismo de ensino-aprendizagem. “A opção de formar no serviço não se deu porque isso era bonito, mas sim porque eles não podiam se afastar do trabalho”, conta Izabel dos Santos. Reconhecendo as dificuldades impostas pelo contexto,  Isabel Brasil, fazendo um balanço do aprendizado de todo esse processo, alerta: “Só não devemos naturalizar que uma pedagogia que tenha como centro a integração ensino-serviço precise se traduzir em ‘ensino no serviço’. Porque, para criticar o que há de deformação nos serviços de saúde, é necessário um distanciamento. Essa abstração, fundamental para a reflexão, precisa ser feita no espaço escolar ou comunitário, de modo que o trabalhador volte aos serviços não para se adequar àquela realidade, mas sim com condições de tentar transformá-la”.

" (...) precisávamos pensar em uma escola para a inclusão social" (Izabel dos Santos)

A importância da escola

Apesar do foco no serviço, o Larga Escala estabeleceu que, para deixar de ser treinamento, a formação desses trabalhadores precisava acontecer com o respaldo de uma escola. O problema, apontavam Izabel e sua ‘equipe’, é que essa precisava ser uma escola diferente. “Tínhamos uma clientela desescolarizada e regionalmente dispersa, que não tinha como frequentar uma escola na capital. Por isso, precisávamos pensar em uma escola para a inclusão social”, conta Izabel, no vídeo.

Naquela época, o Inamps tinha seis escolas de auxiliares de enfermagem – Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Goiás –, que foram as pioneiras no Larga Escala, modificando sua estrutura e seus cursos para pôr em prática e, ao mesmo tempo, ajudar a construir as diretrizes do projeto. “Tínhamos que usar a resolução nº 15 para ‘convencer’ as escolas de que, a partir daquele momento, elas deveriam priorizar não mais uma clientela externa e sim os trabalhadores do próprio sistema de saúde”, conta Milta. Mas para acontecer em ‘larga escala’, era preciso expandir mais: por isso, o projeto previa a criação de uma escola  em cada estado brasileiro. Daí nasceram os Centros Formadores e as atuais Escolas Técnicas do SUS (ETSUS).

E quem era o professor dessa escola diferente? O profissional de saúde, também do serviço, que conhecesse a técnica a ser ensinada. Segundo Isabel Brasil, a utilização de docentes dos serviços submetidos a uma capacitação pedagógica que ela entende como “aligeirada”, e a consequente redução do número de profissionais fixos nessas escolas, foi fruto das negociações possíveis para a implementação do projeto na época. Ela ressalta, no entanto, que esse movimento foi fundamental para que as ETSUS se fortalecessem a ponto de, hoje, demandarem o aumento do seu quadro fixo de professores e uma formação docente mais ampla como condição para uma educação profissional qualificada. Milta, por sua vez, destaca que um dos maiores legados do projeto foi ter criado a demanda política de formação pedagógica dos professores dos trabalhadores técnicos. “Antes, qualquer um que soubesse a técnica poderia ensinar. O Larga Escala possibilitou a articulação entre as dimensões técnica e pedagógica”, diz.

Toda essa inovação gerou uma outra empreitada: encontrar as brechas da legislação para que os cursos fossem reconhecidos pelas instâncias educacionais formais e, com isso, certificassem o aluno. Depois de muito estudo sobre a legislação educacional, o caminho encontrado foi a modalidade de ensino supletivo, prevista no parecer 699/72. A brecha encontrada foi um trecho do parecer que diz que “os cursos terão estrutura, duração e regime escolar que se ajustem às suas finalidades próprias e ao tipo especial de aluno a que se destinam”.

Metodologia e resultados

Além da demanda por descentralização, o Larga Escala apresentava para as escolas o desafio de pensar uma nova metodologia, adequada a esse aluno tão específico. “O trabalho em saúde é reflexivo. Então, a formação não pode ser decoreba, tem que fazer pensar e agir. Como ensinar a pensar quem nunca foi à escola e mal sabia ler e escrever? O caminho era a problematização”, explica a mentora do projeto. A ideia era, então, partir sempre da realidade do aluno.

Mas atenção: por mais incrível que possa parecer para quem já ouviu falar no projeto Larga Escala, esse movimento não tinha nenhuma inspiração na educação popular de Paulo Freire. É a própria Izabel dos Santos quem diz, no livro feito em sua homenagem. Milta Torrez completa: “O Larga Escala não seguia um referencial teórico-pedagógico exclusivo, mas tinha princípios que apontavam para a problematização da realidade. Naquele momento histórico, a ação mais revolucionária era desmontar a exclusão do trabalhador da educação profissional em saúde: era mais importante 'balizar' a coerência pedagógica pelo objetivo político”.

Quase 30 anos depois, o que o Larga Escala deixou de mais concreto foi uma rede de Escolas Técnicas que hoje abrange o Brasil inteiro. Teve também, segundo a própria Izabel dos Santos, parte da sua proposta materializada no Projeto de Profissionalização de Trabalhadores da Enfermagem (Profae). “O Larga Escala foi um marco fundamental para transformar a formação dos trabalhadores técnicos em uma questão política, embora, por falta de financiamento, nunca tenha se tornado de fato uma política pública”, diz Milta, e conclui: "Mas ele deixou importantes indicativos de que essa política é indispensável para o SUS".