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Reforma da saúde nos Estados Unidos é aprovada

Trinta e dois milhões de cidadãos norte-americanos passarão a ter cobertura de saúde no país. Proposta, no entanto, não é de sistema universal.
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 31/03/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


No último dia 30 de março, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, promulgou a versão definitiva da reforma do sistema de saúde do país. No dia 21 de março, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos havia aprovado a primeira parte do projeto. O texto, sancionado por Obama dois dias depois da aprovação na Câmara, representava o primeiro pacote de mudanças no atual modelo, que já havia sido aprovado pelo Senado em dezembro do ano passado. As modificações introduzidas pela primeira parte da reforma passaram a vigorar imediatamente após a sanção de Obama ao projeto. Já a segunda parte das propostas, mais polêmica e que modifica alguns itens do projeto sancionado, foi aprovada pelo Senado em 25 de março e retornou à Câmara no mesmo dia. Depois de toda a tramitação, o texto final foi assinado por Obama no dia 30.



Entre as principais mudanças introduzidas pela reforma, está a obrigatoriedade de contratação de plano de saúde, que deverá ser feita pelos empregadores ou diretamente pelos cidadãos, através de subsídios do governo. Com a medida, estima-se que 32 milhões de pessoas passarão a ter cobertura por planos de saúde. Considerada por Obama e seus aliados como um marco histórico para os EUA, a reforma suscitou uma série de polêmicas, que tomaram a cena política do país nos últimos meses e alcançaram repercussão internacional. O novo modelo, no entanto, não institui um sistema universal de saúde com financiamento público, como existe no Brasil, por exemplo, e concentra-se na ampliação da cobertura oferecida por planos privados.



Atual modelo



Os EUA não possuem um serviço público de saúde que garanta atendimento universal à população do país.  Desde 1965, dois programas oferecem cobertura para cidadãos que se situam na chamada ‘faixa de pobreza’ e para aqueles que têm mais de 65 anos: o Medicaid, financiado pelos governos estaduais, e o Medicare, financiado pelo governo federal, respectivamente. A parcela da população que não se encaixa nos perfis de nenhum dos dois programas só tem cobertura de saúde se contratar planos privados. Aqueles que não conseguem contratá-los ficam ‘descobertos’ e pagam por cada um dos serviços de saúde que utilizam.



A cobertura pelos planos privados, no entanto, também não é integral: as dificuldades enfrentadas pela população para a garantia dos tratamentos e procedimentos supostamente cobertos pelas seguradoras e até mesmo para a associação aos planos são problemas reconhecidos no país. Orientados pela perspectiva de obtenção de lucro, os seguros privados evitam admitir cidadãos que potencialmente precisem de muitos tratamentos e, ao mesmo tempo, negam a autorização para procedimentos e tratamentos àqueles que fazem parte dos planos.



Eugênio Vilaça, especialista em Planejamento de Ações de Saúde pela Ensp (Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz), concedeu uma entrevista aos alunos do curso de Gerência de Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) na qual analisa as diferenças entre os modelos de saúde universais e o implementado historicamente nos EUA. Segundo o pesquisador, a principal diferença é a segmentação: “O modelo segmentado tem uma presença forte nos Estados Unidos. Há um segmento para os pobres, um segmento para os idosos e outro para quem pode pagar. Já o SUS foi pensado num outro modelo, público universal, no qual não há segmentos. Os sistemas públicos universais operam com maior eqüidade, com custo menor e têm mais efetividade. Numa análise comparativa, quem opta pelo sistema público universal faz uma opção correta porque é o sistema mais barato e melhor. O Brasil fez uma opção pelo sistema público, mas ao mesmo tempo não criou a base material na Constituição para operá-lo. Na prática temos um sistema segmentado: 25% da população brasileira tem um plano privado e 75% é quem vive só com o sistema público do SUS”, compara.



O pesquisador explica que a opção por um determinado modelo reflete, na verdade, uma opção por um projeto de sociedade. “A alternativa para melhorar o sistema americano seria o pagamento de mais impostos para o Estado prover o serviço, mas o americano tem horror a isso. É um valor da sociedade, o auto-interesse com base no individualismo capitalista e liberal americano. Já no Canadá ou na Inglaterra, as pessoas não se importam em pagar 50% de impostos de renda para ter serviços de saúde e uma educação de graça”.



Os EUA investem parcela significativa de seu Produto Interno Bruto em saúde: são 16%, o que representa um gasto de US$ 7.200 por cidadão norte-americano por ano. Na opinião de José Noronha, sanitarista e pesquisador da Fiocruz, o dado chama a atenção: “Os EUA são o país que mais gasta em saúde no mundo, mas têm um sistema extremamente desigual”, destaca. Em palestra promovida pelo Centro de Estudos da Ensp no último dia 24 de março, que abordou a reforma do sistema de saúde dos EUA, o pesquisador explicou que foi justamente a crescente insatisfação da população com os serviços de saúde do país, somada ao aumento anual da lucratividade dos planos de saúde, que criou as condições para a reforma do modelo atual.



“A reforma acontece em um cenário de aumento sistemático do comprometimento da renda da população e das empresas com gastos de saúde e de clamor por ampliação da cobertura. Dados recentes demonstram que mais de 40 milhões de pessoas não têm qualquer tipo de cobertura nos EUA: aqueles que não têm emprego formal, os imigrantes e os donos de pequenos negócios, que não têm renda para contratarem planos, vão à falência quando têm algum problema de saúde. Essa situação, em contraste com o significativo aumento da lucratividade dos planos, criou o clima para as mudanças nesse momento”, disse.



Impacto concreto das mudanças



Noronha lembrou que Bill Clinton tentou aprovar, durante seu governo, uma reforma na área da saúde baseada na criação de um sistema universal com financiamento público, que foi derrotada sob forte oposição dos planos de saúde, associações médicas e segmentos conservadores da política nacional. Ele explicou que a atual reforma se baseia em outros pilares, identificados com a lógica do mercado: “A proposta de Obama trabalha com outra lógica. O que o presidente fez foi aplicar uma estratégia de ampliação da cobertura, atingindo a faixa de cidadãos descobertos através de mecanismos que permitem às seguradoras terem seus lucros, agradam aos médicos em função do aumento de pessoas a serem atendidas e também à indústria farmacêutica, que irá vender mais com o aumento de pessoas recebendo prescrição de medicamentos”.



O pesquisador destacou que a proposta inicialmente formulada por Obama trazia avanços maiores, que precisaram ser retirados do texto para garantir sua aprovação. “O grande diferencial entre o que o presidente propunha inicialmente e o que foi aprovado é a ideia de criação de uma opção pública universal dentro do conjunto dos planos de saúde oferecido. Ou seja, entre as opções, haveria um ‘mini-SUS’ para as pessoas que não estivessem cobertas pelo Medicaid, Medicare ou pelos novos arranjos com os planos privados. Isso foi retirado, e o que foi aprovado são esses arranjos com os planos privados”, disse.



Objetivamente, o projeto aprovado introduz mecanismos que estendem a cobertura para 32 milhões de pessoas, entre cidadãos norte-americanos e imigrantes legais. Os imigrantes ilegais não foram beneficiados pelo novo modelo. A contratação de planos de saúde passa a ser obrigatória para cidadãos e empresas, que receberão subsídios do governo e incentivos fiscais para tal. A lei também prevê a cobrança de multa a cidadãos e empresas que não contratarem os planos privados. Os planos, por sua vez, serão obrigados a prestar um conjunto definido de benefícios e estarão sujeitos à fiscalização do governo. Algumas restrições aos mecanismos comumente utilizados pelos planos para negar atendimento aos segurados também foram aprovadas: o veto a pacientes com doenças pré-existentes (desenvolvidas antes da contratação do seguro), por exemplo, passa a ser proibido ainda em 2010 para crianças e, em 2019, para pacientes adultos. O limite de idade para que jovens sejam dependentes dos pais nos planos foi estendido: atualmente definido como 18 ou 19 anos ou até o fim da faculdade, o limite passa a ser de 26 anos. Outra mudança é o aumento da faixa considerada como ‘de pobreza’, que permite o atendimento de mais pessoas pelo Medicaid. Além disso, houve corte nos benefícios do Medicare para pessoas de alta renda, para reduzir gastos. O novo modelo será financiado através de aumento nos impostos e da taxação às empresas que vendem os planos de saúde mais caros. Mesmo com todas as mudanças, cerca de 12 milhões de pessoas ainda ficarão sem qualquer tipo de cobertura de saúde.



As emendas aprovadas pelo segundo pacote de propostas cancelaram os chamados ‘acordos especiais’ previstos no projeto inicial, que dispensavam alguns estados do pagamento das prestações dos novos beneficiários do Medicaid. O novo texto prevê uma ajuda do governo federal para todos os estados custearem os gastos introduzidos pela reforma. Outras mudanças aumentam as taxas de impostos para a parcela mais rica da população e ampliam a cobertura de compra de medicamentos para idosos pelo Medicare. Além disso, o texto prevê modificações no sistema de benefícios a estudantes, que passa a ser subsidiado pelo governo.



Noronha avaliou que as mudanças aprovadas pela reforma, mesmo inseridas na lógica do mercado, representarão avanços importantes: “Obama espera que os mecanismos criados possam possibilitar o oferecimento de planos mais baratos e aumentar o controle e a fiscalização sobre produtos ofertados. É um mecanismo para subsidiar a demanda, que oferece apoio governamental para as pessoas contratarem planos. Isso é um pouco frustrante para quem esperava mudanças mais profundas, mas mesmo essas conquistas foram significativas. A medida que impede veto dos planos a pacientes com doenças pré-existentes é uma conquista extremamente importante. Cabe lembrar, ainda, que, com a reforma, os EUA vão aumentar a participação dos segmentos privados – ainda que com subsídios públicos – na gestão dos cuidados da saúde. De qualquer forma, temos que celebrar o que foi aprovado nos EUA do ponto de vista do avanço da democracia”, disse. E finalizou com uma ressalva: “Mesmo com avanços, acho que o que foi aprovado não deve nos inspirar. Devemos refletir sobre como países como Cuba, Inglaterra e França conseguem oferecer sistemas com custos muito menores e indicadores melhores que os dos EUA. A reforma é um estímulo dentro da universalização, mas mecanismos como esse não devem ser nossa fonte de inspiração”, disse.