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Remédio a preço de ouro

Ação da Defensoria Pública da União e de entidades da sociedade civil quer a quebra de patente de medicamento para hepatite C. Caso explicita as práticas abusivas da indústria farmacêutica na definição dos preços de medicamentos, que têm imposto barreiras para o acesso em vários países
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 28/01/2020 15h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Uma ação apresentada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, no final de 2019, jogou luz sobre um problema central para os sistemas de saúde de todo o mundo, inclusive o SUS. Os altos preços de medicamentos cobrados pela indústria farmacêutica são hoje uma questão de saúde pública em âmbito global, uma vez que impõem barreiras para o acesso e inviabilizam estratégias de enfrentamento de doenças para as quais já existem tratamentos eficazes, mas que permanecem inacessíveis para grande parte da população. E isso mesmo em países ricos, como Estados Unidos e Reino Unido.

Sofosbuvir: cura inacessível

É o caso da hepatite C. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em torno de 71 milhões de pessoas estejam infectadas pelo vírus da doença, transmitido através de contato com sangue contaminado. Todos os anos, 400 mil pessoas morrem devido a complicações, como a cirrose.

No Brasil, o Ministério da Saúde calcula que existam cerca de 700 mil pessoas infectadas sem tratamento hoje. De 2000 a 2017, foram identificadas quase 54 mil mortes relacionadas a complicações da doença, de acordo com dados do Boletim Epidemiológico divulgado pela Pasta, o que faz do tipo C o mais letal e prevalente no país, com 26,1 mil casos notificados em 2018.

Em 2013 começou a ser comercializado nos Estados Unidos um medicamento que prometia ser uma arma de peso no enfrentamento desse quadro: o sofosbuvir. Desenvolvido por uma empresa chamada Pharmasset, ele se mostrou tão eficaz no enfrentamento da hepatite C durante testes clínicos que despertou o interesse de uma gigante do setor farmacêutico, a Gilead, que comprou a Pharmasset no início de 2012 por 11 bilhões de dólares.

A aposta se revelou acertada. Além de encurtar o tratamento, o sofosbuvir, em conjunto com outros medicamentos conhecidos por Antivirais de Ação Direta, ou AADs, aumentou para mais de 90% as chances de cura da doença. Tanto que, desde 2018, três dos quatro regimes de tratamento pangenotípicos – ou seja, que são eficazes no tratamento de todas as seis variedades do vírus da hepatite C existentes no mundo – levam o sofosbuvir em sua composição.

Mas a euforia de quem vislumbrou no novo medicamento uma possibilidade de eliminação da hepatite C como um problema grave de saúde pública esbarrou nos preços proibitivos cobrados pela Gilead. No Brasil, onde o sofosbuvir, juntamente com outros AADs, começou a ser distribuído pelo SUS entre o final de 2015 e o início de 2016, o primeiro lote comprado pelo Ministério da Saúde custou R$ 1 bilhão, com uma quantidade suficiente para tratar apenas 30 mil pessoas. Devido ao seu alto custo, o tratamento com os AADs foi oferecido pelo Ministério de maneira racionada, apenas para pacientes que apresentavam quadros clínicos específicos, como aqueles com fibrose hepática avançada, coinfecção com o vírus HIV e insuficiência renal crônica, entre outros. Segundo dados do Ministério da Saúde apresentados em agosto de 2019 durante um seminário sobre hepatites virais em Brasília, até junho de 2019 apenas 102,2 mil pacientes haviam sido tratados com os AADs no Brasil. O Plano para Eliminação da Hepatite C no Brasil, em linha com a Estratégia Global para as Hepatites Virais da OMS, prevê o tratamento de 657 mil pessoas até 2030. Dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde apontam ainda que, entre 2015 e 2017, durante o período de racionamento do tratamento, 5,7 mil pessoas morreram devido a complicações da hepatite C.

Preços abusivos

Foi nesse contexto que, no dia 21 de outubro de 2019, a Defensoria Pública da União, em conjunto com várias organizações da sociedade civil, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Médicos sem Fronteiras (MSF), a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), entre outras, apresentou a ação ao Cade citada na abertura desta reportagem. Com base em um estudo do grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a ação argumenta que a Gilead abusou de sua posição dominante nos momentos em que obteve o monopólio do fornecimento do sofosbuvir no Brasil, cobrando preços muito elevados. O que, em última instância, impossibilitou o acesso de centenas de milhares de brasileiros ao tratamento contra a hepatite C pelo SUS. A ação pede que o Cade faça uma recomendação pelo chamado ‘licenciamento compulsório’ – conhecido informalmente como quebra de patente – do sofosbuvir no Brasil para, assim, possibilitar que um genérico do medicamento seja produzido aqui, ampliando a concorrência e reduzindo, para o SUS, os custos de um medicamento cuja comercialização no país hoje é uma exclusividade da Gilead.

Isso desde janeiro de 2019, quando o Instituto Nacional de Proteção Industrial (INPI) concedeu à empresa a patente do sofosbuvir no Brasil, que estava desde 2004 em análise. E segundo o estudo da USP, a empresa se aproveitou do monopólio para aumentar de forma abusiva o preço do remédio, que ficou, em média, 1.421% mais caro em relação aos praticados nas compras públicas do medicamento entre 2 de julho de 2018 e 15 de janeiro de 2019. Nesse curto período, a Gilead teve concorrência no mercado brasileiro. Um consórcio formado pelo laboratório Blanver e pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos/Fiocruz) obteve o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de um genérico do sofosbuvir, passando a produzi-lo nacionalmente e participando dos pregões do Ministério da Saúde.

“Havia a expectativa de que a patente não fosse ser concedida pelo INPI à Gilead. Era uma patente fraca, no nosso entendimento”, explica Matheus Falcão, analista de saúde do Idec. Essa leitura deu impulso ao início da produção pelo consórcio nacional para entrar em um mercado que, até 2018, era controlado Gilead, responsável por 99,96% das unidades adquiridas no país. Segundo o estudo da USP, o preço médio da cápsula de sofosbuvir variou de R$ 190,59 a R$ 639,29 entre 2017 e 2018. Com a entrada do consórcio Blanver/Farmanguinhos, caiu quase 90%, para R$ 64,84. Porém, após a concessão da patente do sofosbuvir à Gilead em janeiro, o preço médio aumentou para exorbitantes R$ 986,57. “Além disso, o estudo identificou que a empresa praticava preços diferentes para estados e municípios”, destaca Matheus. Em 2017, por exemplo, enquanto o Ministério da Saúde comprou um milhão de unidades de sofosbuvir a R$ 160,25, os governos estaduais e municipais compraram 72,2 mil unidades a R$ 639,29. Após a concessão da patente em 2019, considerando apenas as compras municipais do medicamento, o preço médio do sofosbuvir foi para R$ 1.428,57, um aumento de 2.103% em relação ao período em que houve concorrência. “No nosso entendimento, a Gilead cometeu abuso de propriedade intelectual, uma infração à ordem econômica. A lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência prevê como atribuição do Cade penalizar a empresa com o licenciamento compulsório do sofosbuvir, encaminhando essa ação junto ao INPI”, defende o analista de saúde do Idec.

Caso emblemático

O sofosbuvir – e a Gilead – estão hoje no centro de um debate que vem ganhando importância em âmbito global. Um debate complexo, que envolve o direito à propriedade intelectual, políticas de acesso a medicamentos e os preços praticados pela indústria farmacêutica, especialmente quando obtém monopólios garantidos por patentes. “As barreiras no acesso aos medicamentos não são um problema só de países de renda média ou pobres”, aponta Jorge Bermudez, chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). “No Reino Unido, por exemplo, atualmente se discute uma proposta de baixar preços de medicamentos com base em três eixos: produção pública, emissão de licenças compulsórias e controle de preços. Até os Estados Unidos estão discutindo formas de baixar preços”, completa.

No país mais rico do mundo, onde o sistema de saúde é majoritariamente privado, são cada vez mais comuns os casos de pessoas que precisam racionar insulina por não terem como arcar com os custos do tratamento, que de inovador não tem nada: as primeiras experiências com o uso de insulina de animais para tratamento da diabetes datam do início do século 20. “A insulina é central para desvendar as práticas contemporâneas sobre patentes na indústria farmacêutica”, aponta Vitor Ido, pesquisador do South Centre – organização intergovernamental que atua no âmbito da ONU como um think tank para o desenvolvimento de políticas de cooperação entre países em desenvolvimento. Ele destaca que a insulina ainda é protegida por direitos de propriedade intelectual ao redor do mundo. Uma das razões para isso é uma prática conhecida como evergreening. “É quando medicamentos recebem novas patentes a partir de pequenas mudanças. Então, por exemplo, você tomava um medicamento duas vezes ao dia e agora toma uma. Isso exigiu uma mudança química incremental, não necessariamente uma mudança substantiva. Mas em certos países isso é dado como uma patente interanual, o que exclui a concorrência por mais 20 anos, pelo menos”, explica.

Mas esse não é o caso em todos os lugares. Interpretações mais rigorosas e leis nacionais mais rígidas sobre quais critérios devem ser cumpridos para a concessão de uma patente levam a resultados diversos. É o caso do Egito, que segundo Felipe de Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso da Médicos sem Fronteiras, é hoje o país que mais trata pacientes com hepatite C. Ao contrário do Brasil, o país não concedeu à Gilead a patente do sofosbuvir. “O Egito teve uma política bastante firme de não conceder a patente, de produzir o genérico e de tratar todo mundo”, ressalta, complementando que, enquanto no Brasil pouco mais de 100 mil pessoas tiveram acesso ao tratamento à base do sofosbuvir, no Egito esse número chegou a quase 2 milhões de pessoas. “O país provavelmente vai ser o primeiro a eliminar a hepatite C, talvez até antes das metas da OMS”, projeta Felipe. Já na Malásia, que concedeu à Gilead uma patente sobre o sofosbuvir, o caminho adotado para ampliar o acesso ao tratamento da hepatite C foi o licenciamento compulsório, que o governo do país emitiu em setembro de 2017. “Na Malásia o tratamento chegava a custar 20 mil dólares por paciente. E aí eles disseram que usariam uma licença compulsória, a Gilead chegou a oferecer uma redução de preços, mas o governo seguiu adiante, e agora eles estão pagando preços bastante baixos, expandindo bastante o tratamento”, aponta Felipe, e completa. “É um exemplo que mostra como o licenciamento compulsório tem um impacto muito considerável para a saúde pública”.

Porque tão caros?

Mas o caso Gilead joga luz também sobre os critérios – ou a falta deles, em muitos casos – que são utilizados pela indústria farmacêutica para precificar seus medicamentos. Uma justificativa muito utilizada pelo setor farmacêutico são os altos investimentos das empresas em pesquisa e desenvolvimento de novos remédios. Para Jorge Bermudez, o caso do sofosbuvir é pedagógico. “Ele mostra que custo e preço não têm a ver um com o outro. A Gilead não fez nenhuma pesquisa para desenvolver o sofosbuvir. Ela simplesmente comprou uma outra firma que tinha o medicamento no seu portfólio, que ‘estourou’ como tratamento da hepatite C”, lembra, complementando que a empresa faturou, em três anos, só nos Estados Unidos, mais de três vezes o que investiu na compra da Pharmasset, que desenvolveu o sofosbuvir.

Lançado em 2013 nos Estados Unidos a 84 mil dólares, o tratamento com o novo medicamento teve seu preço questionado por vários países, inclusive Estados Unidos e Reino Unido. “A Gilead fez um acordo com 11 companhias farmacêuticas indianas, que passaram a produzir o sofosbuvir e a comercializar por 800 dólares o tratamento. Ou seja, cem vezes menos. Com isso a gente vê que o preço é fictício”, avalia Bermudez.

Essa é uma discussão de grande relevância para inúmeros países hoje. Foi inclusive objeto de uma resolução aprovada na 71ª Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2019. A instância máxima de decisão da OMS, de forma inédita, aprovou uma resolução propondo transparência no mercado de medicamentos, vacinas e produtos de saúde.

Felipe de Carvalho, da Médicos sem Fronteiras, organização que se mobilizou pela aprovação da resolução durante a assembleia, conta que o texto aprovado ficou menos avançado do que a proposta original, muito por conta da pressão exercida por países-sede das grandes multinacionais do setor farmacêutico, entre eles Alemanha, Suíça e França. “A resolução falava de quatro níveis de transparência: de preço, de custo de pesquisa e desenvolvimento – que é uma caixa preta que ninguém consegue abrir – de ensaios clínicos e de patentes. Só que ficou muito em torno do preço”, lamenta Felipe. Ele completa, no entanto, que ainda assim a resolução é importante para o questionamento de práticas como a assinatura de acordos de confidencialidade entre países e empresas com relação à negociação dos preços de medicamentos. “Eles impedem que os preços sejam divulgados. O resultado é que muitos países ficam sem parâmetros e acabam negociando às escuras. Então defendemos que os países não assinem acordos de confidencialidade e que haja uma base internacional para que todos saibam os preços que estão sendo pagos”, reivindica Felipe.

Vitor Ido lista como desdobramentos diretos da resolução aprovada em maio medidas recentes votadas pelos legislativos da Itália e da França. “Os países passaram a exigir que se um medicamento ou um produto farmacêutico recebeu investimento público no seu desenvolvimento, isso tem que ser revelado de forma transparente”, diz o pesquisador do South Centre.

Jorge Bermudez lembra ainda do relatório produzido em 2016 por um Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Acesso a Medicamentos, do qual ele foi um dos 15 integrantes. “Ali defendemos uma proposta formulada pela International Law Association, um grupo de advogados especialistas em propriedade intelectual de vários países, e que trabalham a questão do acesso a medicamentos. Eles propuseram que os medicamentos essenciais, começando por uma lista da OMS, fossem isentos de patentes. Isso teria de ser negociado com a Organização Mundial do Comércio, mas é possível”, aponta.

No cenário nacional, Bermudez destaca ainda uma discussão no âmbito da Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, relançada em setembro de 2019, sobre a elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) assegurando que o acesso a medicamentos seja considerado um direito fundamental. Mas para isso, diz, é preciso derrubar a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos. “Ela é incompatível com a incorporação de novos produtos e com o aumento da oferta de medicamentos pelo SUS”.