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RET-SUS: 10 anos

Resgate da trajetória da rede, análise do presente e avaliação do futuro
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 03/03/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Nossa história começa nos anos 1960, quando fatores externos e internos disparam um debate até então inexistente na saúde: a formação de seus trabalhadores de nível elementar e médio. Na América Latina, a década é marcada pela ideia de que o desenvolvimento social e econômico da região dependia também do desenvolvimento de políticas públicas de saúde. Ou seja, o ingresso no clube dos países ‘de primeiro mundo’ não viria somente pela construção de parques industriais. Também era preciso acabar com o ‘atraso’ que doenças como malária e cólera representavam. 

Assim, em 1961, é assinado pelos membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Uruguai, um documento que ficaria conhecido como Carta de Punta Del Este. Além de objetivos para a educação, a expansão industrial do setor privado e o aumento da produção agrícola, a Carta propunha, dentre outras medidas, a criação de um plano decenal de saúde pública para as Américas; a construção de planos nacionais a partir dos Ministérios da Saúde dos países signatários; a organização de serviços de saúde locais para prevenção e tratamento; e a formação de pessoal profissional e auxiliar. 

“Surge a ideia de que era preciso haver uma expansão de serviços rurais de saneamento e atenção à saúde simplificados”, afirma Roberto Passos Nogueira, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Segundo ele, é a partir desse contexto, já na década seguinte, que o governo da ditadura militar começa a implantar vários Programas de Extensão de Cobertura. Um deles, o PPREPS (Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde), lançado em 1975 a partir de uma cooperação entre a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o governo brasileiro, tinha como objetivo reformular as práticas de gestão e de capacitação de trabalhadores, até então desenvolvidas de forma dispersa por instituições responsáveis pela prestação de serviços, no caso do nível médio e elementar.

Segundo Passos Nogueira, uma parte importante do PPREPS era a assessoria e consultoria que prestava às secretarias estaduais de saúde. “A ideia era institucionalizar a ação educacional dentro do sistema de saúde fazendo com que os treinamentos não fossem coisas eventuais, marginais, em função de campanhas, de momentos, da entrada de novas pessoas, mas que houvesse uma continuidade da ação de capacitação em todos os estados. O PPREPS sempre insistiu na integração ensino-serviço como modelo pedagógico central”.

E foi assim que, aos poucos, foram surgindo centros formadores dentro da estrutura das secretarias estaduais de saúde. Na prática, era o início da criação de uma rede de formação voltada para o atendimento a pessoas que já trabalhavam nos serviços ou estavam em vias de contratação. Roberto Passos traça o perfil predominante dos agentes e atendentes que atuavam nas unidades de saúde: “Tinham, em geral, apenas o nível elementar que, naquela época, correspondia às quatro séries do ensino fundamental hoje. Eram pessoas qualificadas de uma forma muito rápida, às vezes já diretamente em serviço sem que houvesse uma preocupação em habilitá-las para uma função educacional reconhecida e mais ampla”. Segundo ele, o PPREPS tinha a preocupação de “dar uma melhor qualidade e garantir uma cidadania, do ponto de vista do atendente, para ele não estar somente ligado a uma única função, mas poder se mover dentro do mercado de trabalho a partir de uma certificação, que é o que aconteceu com o Projeto Larga Escala”.

Larga Escala

Até a década de 1980 os esforços em torno de uma política de qualificação profissional para os trabalhadores de nível médio da saúde eram ainda pulverizados. A busca por institucionalizar uma política nacional de formação profissional deu origem, em 1981, ao Programa de Formação em Larga Escala de Pessoal de Nível Médio e Elementar para os Serviços Básicos de Saúde.

Na época, a então consultora da Opas e idealizadora do Larga Escala, Izabel dos Santos, dava conta de que havia cerca de 300 mil trabalhadores empregados nos serviços de saúde sem qualificação específica, desempenhando funções as mais diversas, que iam desde processos administrativos gerais até a prestação de assistência em áreas como enfermagem, nutrição e odontologia, contando também com aqueles que atuavam em saneamento e vigilância sanitária, conforme escreveu na Revista Saúde em Debate de março de 1989.

No mesmo texto, Izabel afirma que esse contingente representava aproximadamente metade da força de trabalho em saúde no país e caracteriza esses trabalhadores: “No plano social não possuem identidade de categoria profissional, dificultando sua organização em entidades de classe, enquanto que no plano institucional sua inserção nos planos de cargos e carreiras é precária”. Na opinião dela, o saldo era extremamente negativo porque além de receberem os salários mais baixos do setor, essas pessoas viravam reféns das instituições para as quais trabalhavam porque não tinham uma habilitação formal garantida por uma formação legitimada pelo sistema educacional. 

A ideia que o Larga Escala queria colocar em prática era a reestruturação dos centros formadores em Escolas Técnicas de Saúde, que dessem conta do desafio de formar adultos, muitas vezes analfabetos, já inseridos nos serviços e dispersos Brasil afora. Para isso, seu regimento deveria garantir o ensino multiprofissional, a centralização dos processos de administração escolar, a descentralização da execução curricular e a utilização de profissionais de nível superior da rede de serviços como instrutores.

Mas era preciso legitimar esses espaços. A estratégia encontrada foi recorrer ao Ensino Supletivo. “O Ensino Supletivo compreende vários tipos de processos destinados à educação de adultos, que por vários motivos não lograram percorrer o Sistema Regular de Educação. Caracteriza-se por ampla flexibilidade curricular e viabiliza o acesso e a volta permanente à escola como processo de educação continuada”, diz Izabel na Saúde em Debate, continuando: “A execução dos processos educacionais é realizada pelas escolas públicas do Sistema, mas é possível também a delegação de competência a qualquer instituição que se submeta às suas normas. Deste modo, a legitimação do ensino por outras instituições é viável desde que os órgãos competentes da Educação autorizem o seu funcionamento”.

Esse era um dos trabalhos de Ena Araújo Galvão, ex-coordenadora de Ações Técnicas do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Deges/SGTES) que à época assessorava o Larga Escala. “Veja você a batata quente que Izabel colocou na minha mão. Ela queria uma escola completamente oposta à escola tradicional, que é uma escola-endereço”, lembra. Ainda por cima, muitos gestores da saúde não reconheciam a importância de uma estrutura de formação de trabalhadores incorporada às secretarias estaduais. “Diziam que quem faz educação é o MEC. E a gente voltava a essa discussão, trabalho de formiga, dizendo para o gestor que contratou pessoal sem qualificação que ele estava colocando em risco a vida das pessoas”.

Ena ressalta que o arcabouço conceitual-filosófico já estava dado pelo PPREPS e tinha algumas premissas: o trabalho como princípio pedagógico, ou seja, o espaço de trabalho como local de aprendizagem; a formação docente, que, em um primeiro momento, se traduziu na capacitação pedagógica; e a prática-reflexão-prática como eixo metodológico da construção curricular. “Essa caminhada durou 19 anos, até 1999 quando entrou o Profae e nós já tínhamos 26 escolas autorizadas pelo sistema de educação. Mas acredite se quiser, com toda a dificuldade, nós chegamos a formar – é óbvio que de 60% a 70% dos alunos eram da área da enfermagem – quase 96 mil alunos e outros três mil docentes”, afirma.

Segundo Roberto Passos Nogueira, a grande dificuldade do Larga Escala era sua instabilidade. “Em uma época que não se tinha o SUS com uma estruturação e um planejamento uniformizado, o projeto, com muita frequência, acabava ficando dependente de lideranças nas secretarias, pessoas que, na passagem de um governo para o outro, perdiam sua função, iam para outro lugar e o projeto parava”, recorda, concluindo: “Apesar de ter esse nome – Larga Escala – ele dependia muito do apoio de pessoas que viam nessa atividade um sentido emancipatório para o trabalho e para a cidadania desses trabalhadores”.

A própria Izabel dos Santos reconhecia que o Larga Escala deveria ser visto como um movimento ou uma proposta política e não como um projeto com estrutura e organização de planejamento. Na Saúde em Debate, ela esclareceu: “O projeto Larga Escala não é um elenco de etapas e metas que se cumprem de forma sucessiva e isolada, mas um processo dinâmico que se constrói no dia a dia da luta pela democratização em realidades sociais concretas, onde a qualificação é o elemento básico para dar habilitação e cidadania a trabalhadores e, ao mesmo tempo, assegurar a melhoria da qualidade da assistência a que a população do nosso país tem direito”.