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RET-SUS: 10 anos

Resgate da trajetória da rede, análise do presente e avaliação do futuro
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 03/03/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A Constituição Federal, promulgada em outubro de 1988, trouxe muitas conquistas para a sociedade brasileira. Além de formular a garantia da saúde como direito de todos e dever do Estado e definir que “ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada”, constituindo, portanto, um “sistema único”, a Carta atribuiu ao SUS a competência de ordenar a formação de sua força de trabalho. O documento também definiu que o governo federal deve legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e as condições de trabalho.

No entanto, foram necessários 15 anos de intensos debates sobre a situação da educação e do trabalho na saúde para que, em junho de 2003, fosse tomada a decisão política de criar na estrutura do Ministério da Saúde a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), com a missão de articular e construir políticas permanentes para a área junto com o Ministério da Educação (MEC), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), secretarias estaduais e municipais de saúde e educação, trabalhadores, instituições formadoras, docentes, estudantes, movimentos sociais e conselhos de saúde.

“Quando se começou a discutir uma proposta de política de saúde para o governo Lula uma das avaliações – que já vinha das outras vezes em que ele havia sido candidato, mas foi reforçada durante a campanha –, foi de que alguns princípios e diretrizes que fazem parte da Constituição e da legislação do SUS não vinham sendo assumidos pelo Ministério da Saúde e pelo conjunto das secretarias estaduais e municipais enquanto suas responsabilidades políticas”, conta a socióloga e sanitarista Maria Luiza Jaeger, primeira secretária da SGTES.

A necessidade de reorientação da gestão do trabalho e da educação na saúde já vinha ganhando destaque há bastante tempo. A 10ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1996, propôs a elaboração de uma Norma Operacional Básica sobre Recursos Humanos (NOB/RH-SUS). No relatório final, os participantes destacam dois casos de repercussão nacional que colocaram em evidência os riscos que a falta de qualificação do trabalho e da formação podem acarretar, recomendando “a capacitação de trabalhadores em Saúde, para que não se repitam situações como a de Caruaru e a da Clínica Geriátrica Santa Genoveva”.

Quatro anos mais tarde, durante a 11ª CNS, o SUS ainda não havia enfrentado a questão de frente. “(...) os temas desta Conferência – Humanização e Acesso – acabaram por favorecer uma polarização usuários versus trabalhadores de saúde, que desviou a atenção da discussão substantiva: a política irresponsável de governo no campo dos Recursos Humanos – uma das facetas do processo de desmonte do estado brasileiro”, diz o relatório final, constatando: “Se, de um lado, os profissionais de saúde não são responsáveis pelo caos em que se encontra o SUS, por outro, a população é punida pela política de Recursos Humanos vigente”.

A resolução que instituiu a NOB/RH-SUS foi publicada pelo Conselho Nacional de Saúde apenas em 2003 – após diversos esforços de negociação entre gestores, usuários e trabalhadores – e propôs uma ligação estreita entre a formação adequada da equipe e a qualidade da atenção prestada. Também de acordo com a Norma, os novos enfoques teóricos e de produção tecnológica do campo da saúde demandam novos perfis profissionais e, para formá-los, é necessário que instituições de ensino de todos os níveis se comprometam com o SUS e seu modelo assistencial.

A NOB/RH-SUS previa que as mudanças necessárias junto à rede formadora deveriam ser feitas por meio de negociações desencadeadas pelos gestores do SUS. “Apesar dos avanços na atenção à saúde desde 1988, em relação à formação dos trabalhadores e às relações de trabalho o processo foi absolutamente o contrário”, avalia Maria Luiza, detalhando: “As pessoas chegavam para trabalhar [nos serviços de saúde] com enormes deficiências na formação em relação às necessidades de saúde da população e do SUS e a solução geralmente era uma série de cursinhos. Logo, era imprescindível que o Ministério da Saúde assumisse a gestão da educação e ordenasse, junto com o Ministério da Educação, a formação de trabalhadores de saúde no país. Esse ordenar significava transformar a formação técnica e superior e dos trabalhadores de saúde da rede e também entender que o acesso ao ensino fundamental, médio, profissional e superior é um direito dos trabalhadores, principalmente na saúde, e uma necessidade do SUS para qualificar a atenção”.

Também persistiam problemas na gestão do trabalho: “Houve uma absoluta precarização das relações de trabalho, tanto para os profissionais de nível superior, quanto para os de nível médio, principalmente no então Programa Saúde da Família”, lembra.

Nesse contexto, é criada a SGTES para, nas palavras de Maria Luiza, “fazer a discussão com todos os atores envolvidos e construir uma política permanente de gestão do trabalho e da educação tanto para os governos federal, estaduais e municipais que fosse avaliada periodicamente”. Em sua estrutura, foram criados o Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges); o Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde (Degerts); uma Diretoria de Programa e uma Coordenação-Geral de Planejamento e Orçamento.

Trabalhador no centro

“Quando foi criada, a SGTES tinha como sentido dar um novo tratamento ou reconhecimento a quem é o trabalhador, que não poderia ser visto como os recursos tecnológicos, financeiros ou materiais. O trabalhador é produção de subjetividade; produto e produtor. É ator social”, afirma Ricardo Burg Ceccin, coordenador do Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e primeiro diretor do Deges.

Na avaliação de Ceccin, durante muito tempo o país privilegiou projetos de formação dirigidos a uma determinada categoria profissional ou à execução de “ações-programa” – como o Larga Escala e o Profae, destinados ao trabalho em enfermagem, que elevaram a qualidade da resposta assistencial dos serviços de saúde no país – e de ações de “educação em serviço”, hegemonizada como proposta de capacitação de recursos humanos para dar resposta a demandas como implantação de novos protocolos e estratégias programáticas de saúde pública. “É um conceito, mais que uma prática: os níveis centrais formulam políticas e os trabalhadores são treinados para executá-las”, esclarece, ponderando: “Acontece que o trabalhador refaz a estratégia, reassume sua autoria na hora do exercício. Essas práticas têm um componente educativo, de esclarecimento e informação, mas os trabalhadores as modificam, assim como são regulados por elas”.

Em relação ao nível médio, a primeira estratégia do Deges foi levantar todos os programas, projetos e ações de formação que vinham sendo realizados. O Profae, antes ligado à Secretaria de Gestão de Investimentos em Saúde, foi para a SGTES, que também começou a rediscutir o Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância em Saúde (Proformar), antes comandado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), e o Projeto de Formação de Agentes de Vigilância Sanitária, tocado até então pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“A ideia não era eliminar o que já tinha sido feito, mas sim pensar todo o conjunto de formações técnicas necessárias ao âmbito do SUS que pudessem atender às necessidades locorregionais, à Estratégia Saúde da Família, às prioridades contemporâneas do SUS e às demais políticas que estavam sendo construídas. E foi por aí que a gente foi tentando articular, negociar e construir, trazendo sempre para cena a RET-SUS”, lembra Simone Machado, ex-coordenadora de Ações Técnicas do Deges. O estímulo à formação do técnico em agente comunitário de saúde (ACS) nasce nessa época.

Ceccin explica: “Com um projeto de redesenho da educação profissional exercida nas escolas técnicas, passou a ser mais interessante conversar com a rede formadora partindo de uma compreensão de desenvolvimento do trabalho em saúde e conversar com os trabalhadores a partir de uma lógica de desenvolvimento do protagonismo no trabalho. Buscava-se deixar claro que a educação profissional em saúde não é uma questão de gestão de investimentos – o chamado fator humano nas organizações –, nem de profissionalização, no sentido da aquisição de títulos e diplomas de exercício profissional, mas um projeto político de elevação da escolaridade, valorização das capacidades intelectuais, convocação do trabalhador a um pertencimento crítico e político ao sistema de saúde e de ressituar o trabalho das profissões de nível técnico – de operadores de rotinas a operadores de trabalho no mundo social”.

Educação permanente

Na área da educação, a principal iniciativa da primeira gestão da SGTES foi lançada em fevereiro de 2004 e tinha como base a mudança nas práticas de formação e da saúde e a articulação permanente entre ensino, gestão, atenção e participação/controle social. Embora a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde não tenha sido a primeira proposta institucional de integração ensino-serviço, teve como diferencial a participação de todos os atores envolvidos – gestores, trabalhadores e sociedade. “A formação precisava ser mais contaminada, no melhor sentido, pelas práticas de trabalho, por aquela potência de reatualização que o trabalho tem quando entra em ato – e não me refiro à atualização de protocolos ou diretrizes –, mas à atualização produzida pelo encontro com o usuário”, afirma Ricardo.

A política definia os Polos de Educação Permanente em Saúde como as instâncias de articulação interinstitucional e locorregional de negociação para a construção de projetos de cooperação técnica e política entre os gestores estaduais e municipais do SUS, instituições formadoras, entidades representativas dos trabalhadores de saúde, estudantes, docentes e usuários. Os polos tinham base locorregional e a ideia era que, a partir do que surgisse como necessidade nos serviços de saúde, fossem elaborados projetos que seguiam para aprovação no Ministério da Saúde.

“O que a gente avaliava nos projetos era se os dispositivos eram coerentes com o conceito de educação permanente ou não. Para ser coerente, deveria envolver um processo participativo na identificação de prioridades, uma previsão de avaliação, também participativa, ao longo da execução ou ao final dela”, reitera Ricardo. Ele lembra que muitos projetos eram propostas de “atualização em”, com o mesmo sentido de reciclagem. “Atualização que não comece pela equipe aprender a fazer análise de situação de saúde, reconhecer a participação social e avaliar o comportamento do sistema de atenção e gestão dá a entender que a solução é técnica, quando não é. É a rede se comportando de maneira cuidadora e se autoavaliando”, acredita o professor.

No entanto, o Deges não deixou de lado a indução de determinadas formações. “Não dava para deixar todas as políticas de formação dependentes da decisão dos polos, mas tampouco tirar deles o poder de decidir porque, aí, a discussão cessaria. O Deges elegeu algumas prioridades nacionais, como ampliar as residências multiprofissionais no ensino superior; a educação profissional para os ACS na educação técnica; e a educação permanente para o controle social na educação popular, porque, de certo modo, o país já havia tomado essas decisões no âmbito do Conselho Nacional de Saúde”, completa Ricardo.