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Saúde: a voz das ruas e a voz do mercado

Renúncia fiscal e outras formas de incentivo à  saúde privada são apontadas como estratégia de inclusão pelo consumo e desistência do SUS
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/07/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Wara Vargas/Mídia Ninja

Os governos estão ouvindo as vozes erradas. Em vez de escutarem as milhões de pessoas que ocupam as ruas do país gritando por serviços públicos de qualidade, as políticas governamentais têm seguido as chamadas ‘Vozes da nova classe média ’, título de uma pesquisa produzida pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República segundo a qual o que esse segmento da população quer é consumir serviços privados, principalmente de saúde e educação. A análise é de Lígia Bahia, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que alerta: “A privatização da saúde no Brasil e sua origem e continuidade devem-se, sobretudo, a iniciativas empreendedoras e à intervenção estatal e não à escolha individual. Não são os indivíduos nem a sociedade (muitas vezes encarada como um punhado de gente dentro de algum lugar) que decidem privatizar a saúde”.

A reunião que a presidente Dilma Rousseff teria feito com dirigentes de planos de saúde privados para pensar novas formas de subsídio público, noticiada pelo jornal Folha de São Paulo em fevereiro, é, segundo a pesquisadora, mais uma mostra da estratégia de incluir segmentos crescentes da população por meio do incentivo ao consumo de serviços privados, e não pelo fortalecimento do serviço público. Além de ser considerado um retrocesso em relação à concepção de saúde como direito de todos e dever do Estado, inscrita no SUS, de acordo com Gastão Wagner, professor e pesquisador da Unicamp, esse modelo é economicamente inviável.  “O modo de funcionamento da saúde privada — medicalizada, sem racionalidade e movida pela lógica da rentabilidade do capital — é muito caro. Hoje a saúde privada atende 25% da população e responde por 54% do gasto em saúde no Brasil. A expansão desse modelo para outros 25% vai dobrar esse custo. Já se dobrarmos os recursos do SUS, atendemos 90% da população”, compara. E conclui: “Essa promessa de que o conjunto da população vai ter acesso à saúde privada não é verdadeira. As pessoas podem até estar tendo mais acesso a iogurte e carro, mas saúde é muito caro”.

Embora identifique a cartilha produzida pela SAE em 2012 como uma tentativa de dar embasamento científico a essas políticas, Lígia Bahia ressalta que o incentivo à saúde privada por meio de subsídios públicos não começou agora: remonta ao período da ditadura, se renova nos anos 1980, já por meio de uma política fiscal e, mais recentemente, após a criação do SUS, vem sendo renovado e expandido desde o governo Itamar Franco. Atualmente, a principal forma pela qual o Estado brasileiro tem colaborado com o mercado privado de saúde é a renúncia fiscal.


Incentivo à demanda

Quem decide fazer um plano de saúde individual considera, na hora de fazer as contas, a dedução de imposto de renda que esse gasto lhe trará. Certo? Essa prática, tão naturalizada, significa que o governo está deixando de arrecadar recursos que poderiam ser investidos em serviços públicos, para que você possa pagar por um serviço privado de saúde, seja seguro, consulta médica ou odontológica ou exame. A esse imposto de que o Estado abre mão dá-se o nome de gasto tributário, uma perda de arrecadação que, só na saúde, mais do que dobrou de 2003 a 2011, segundo estudo realizado pelo pesquisador Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Em 2011, apenas com o imposto de renda pessoa física (IPRF), o governo deixou de arrecadar R$ 7,7 bilhões — o total dos gastos tributários foi de quase R$ 16 bilhões. Como esse subsídio é dado ao consumidor, atuando para facilitar, principalmente, a aquisição de planos de saúde e, consequentemente, ampliar esse mercado, ele é considerado um incentivo à demanda. Embora esse raciocínio seja base para muitas pesquisas da área de financiamento, Bruno Sobral, diretor de desenvolvimento setorial e diretor interino de normas e habilitação de operadoras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), discorda dessa relação. “Isso é uma besteira. As pessoas não deixariam de ter plano de saúde se não houvesse esse benefício”, opina.

Segundo a pesquisa do Ipea, o gasto tributário com imposto de renda pessoa jurídica (IRPJ), ou seja, o valor que as empresas abatem por oferecer assistência médica, odontológica ou farmacêutica aos funcionários, ficou em quase R$ 3 bilhões em 2011. Lígia, no entanto, alerta que esse valor é mais baixo em função daquilo que ela considera uma outra forma de incentivo à demanda, que é o fato de as empresas poderem computar os gastos com saúde dos seus funcionários como custo operacional, aquela despesa considerada como necessária para o desenvolvimento das atividades de qualquer empresa. “Gasto com saúde ser tratado como custo operacional num país que tem um sistema universal de saúde é um contrassenso”, opina. Para as empresas, a vantagem é que o dinheiro empregado como custo operacional não é contabilizado no lucro e, portanto, não é taxado. Por isso, essa opção é ainda mais atraente do que a dedução do imposto de renda pessoa jurídica. E não se consegue ter ideia do montante que se deixa de arrecadar com isso.

Em relação ao IRPF, o estudo comparativo de 2003 a 2011, feito pelo Ipea, mostra que o gasto tributário com plano de saúde cresceu  mais de 10%, enquanto as outras modalidades — hospitais, clínicas e profissionais de saúde no Brasil e no exterior — se mantiveram estáveis ou regrediram. Segundo Carlos Octavio Ocké-Reis, uma das conclusões possíveis é que as pessoas estão substituindo o desembolso direto para consultas e outros serviços pela compra de planos de saúde. O mesmo estudo mostra que, nesse período, o lucro líquido do mercado de plano de saúde cresceu mais de 2,5 vezes, um desempenho acima da inflação. De acordo com o pesquisador, além de mostrar que o gasto tributário em saúde está favorecendo atividades econômicas lucrativas, que não precisariam desse incentivo, outra dedução possível, a partir dos dados, é que a renúncia fiscal pode estar induzindo o fortalecimento do mercado de planos de saúde em detrimento do SUS. Como o SUS é para todos, ele conclui: “Isso significa que, em termos per capita, quem tem plano de saúde recebe mais recursos do governo federal do que quem não tem”.

Mesmo reconhecendo o custo político de se eliminar esse tipo de ‘benefício’, que atinge principalmente a classe média, Ocké-Reis acredita que uma das medidas cabíveis seria estabelecer um teto para as deduções de gastos em saúde, como já existe para os gastos com educação. O diretor da ANS discorda. Segundo ele, a diferença é que as demandas de saúde, “por natureza”, são imprevisíveis. “Não se sabe quando nem quanto vamos precisar”, diz Sobral, apesar de essas variáveis terem pouca influência sobre os planos de saúde, que, de modo geral, funcionam na forma de um seguro, em que se paga independentemente de quando e o quanto se vai usar.

De acordo com Lígia Bahia, é preciso considerar ainda que o mercado de plano de saúde no Brasil é preponderantemente empresarial. “A grande briga com a renúncia fiscal não se dá contra a dedução de IRPF da classe média”, opina. Aquilas Mendes, professor de Economia da Saúde da Universidade de São Paulo (USP), concorda: como uma das medidas para conter o financiamento público da saúde privada, ele defende a extinção da renúncia fiscal para empresas, embora acredite que, com um trabalho político de esclarecimento e convencimento da população, a dedução do imposto de renda de pessoa física também pode — e deve — ser progressivamente extinta.

De fato, dados da ANS mostram que, em 2012, 77,3% dos beneficiários de plano de saúde no país estavam em contratos coletivos. O diretor da ANS confirma que o que tem feito esse mercado crescer atualmente são os planos de empresas, principalmente em função do aumento do emprego formal. Ele identifica ainda, como fator de influência, a pressão dos sindicatos pela garantia desse ‘benefício’ aos trabalhadores. Mas, no episódio da suposta reunião da presidente Dilma com empresários desse setor, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) emitiu uma nota em que defende que “a prioridade do governo com a saúde deve ser o fortalecimento do SUS”, considera “inadmissível que recursos públicos sejam destinados a planos de saúde privados” e “repudia veementemente qualquer iniciativa que ignore e prejudique os trabalhadores e trabalhadoras”.

Outras formas de incentivo público à demanda por saúde privada são os subsídios aos planos de saúde dos trabalhadores das estatais e o gasto direto com planos de saúde de servidores públicos. Segundo uma nota técnica do Ipea, produzida por Ocké-Reis e Fausto dos Santos, que hoje está no Ministério da Saúde, em 2006 o gasto total com assistência médica e odontológica dos servidores e funcionários do governo federal e das empresas estatais foi de pouco mais de R$ 2 bilhões. Em 2006, a lei 11.320 criou uma nova forma de incentivo, garantindo aos servidores públicos federais o ressarcimento de parte do valor gasto com planos e seguros de saúde privados.

De acordo com o Portal da Transparência do governo federal, na ação nº 2004, que diz respeito à “assistência médica e odontológica a servidores, empregados e seus dependentes”, o total de gasto direto foi, em 2012, cerca de R$ 185 milhões, além de pouco mais de R$ 10 milhões de transferência direta. Quando se faz a busca por favorecido, o site mostra que, no mesmo ano, as cooperativas ligadas à Unimed em todo o país receberam o maior volume de gasto direto da União, cerca de R$ 91 milhões; já a Amil, maior empresa de plano de saúde do país, recebeu R$ 24 milhões.

E tudo indica que essa política gera uma reação em cadeia. Francisco Balestrin, presidente do Conselho de Administração da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), diz que o crescimento do número de beneficiários de planos de saúde tem impacto direto sobre os prestadores de serviço. “Se os planos de saúde continuarem a crescer no ritmo em que estão, vamos precisar de um número muito maior de leitos para atender a essa demanda. E os hospitais privados não têm como garantir isso”, avisa, sugerindo a necessidade de apoio governamental.


Subsídios diretos: incentivo à oferta

Mas o volume de subsídios públicos ao mercado privado de saúde se dá também por meio da redução da alíquota do imposto pago pelas empresas desse setor. E, como tem acontecido com todos os setores da economia beneficiados pela política de desoneração fiscal (ver reportagem na Poli nº 26), os impostos e contribuições de que se abre mão são exatamente aqueles mais diretamente vinculados ao financiamento das políticas sociais. Um exemplo é a contribuição para o financiamento da seguridade social (cofins). De acordo com Lígia Bahia, com a lei 10.833/2003 , o governo tentou aumentar a alíquota dos estabelecimentos de saúde — hospitais, prontos-socorros, clínicas médicas, odontológicas, de fisioterapia e de fonoaudiologia, laboratórios de anatomia patológica, citológica ou análises clínicas, clínicas de diálise, raio X, radiodiagnóstico e radioterapia — de 3% para 7,6%, mas acabou cedendo à pressão das empresas do setor, que, segundo a pesquisadora, tiveram o apoio da Frente Parlamentar da Saúde.

Recentemente, em 2012, a lei 12.715 , que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica, abriu mão do recolhimento de mais impostos, garantindo “isenção fiscal a ações e serviços de atenção oncológica, desenvolvidos por instituições de prevenção e combate ao câncer”. “Temos uma espécie de Lei Rouanet para os hospitais privados do câncer. Agora os hospitais privados de um sistema universal de saúde vão viver de doação”, ironiza Lígia. A pesquisadora aponta que as empresas têm sido beneficiadas também pelo que ela chama de “jurisprudência pacífica dos tribunais”, que tem garantido que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) não incida sobre a importação de equipamentos médico-hospitalares.

A pesquisadora ressalta ainda a criação de nichos específicos que permitem a expansão do mercado privado e de algumas empresas em particular. Segundo ela, esse foi o caso da regulamentação, pela ANS, dos planos coletivos por adesão, que garantem os benefícios de um ‘plano empresa’ sem que exista vínculo empregatício. Isso significa que os beneficiários podem estar ‘reunidos’ em torno de uma associação, sindicato, conselho profissional ou fundação privada, entre outros tipos de entidades. Segundo Lígia, a abertura desse mercado possibilitou, por exemplo, que a Qualicorp rapidamente se tornasse, como o seu próprio site anuncia, a “maior administradora de benefícios do Brasil”, com mais de 4,4 milhões de clientes.

As empresas, no entanto, não estão satisfeitas. O presidente do conselho de administração da Anahp reclama que o setor de saúde não foi contemplado com os incentivos fiscais que o governo federal tem dado a diversas áreas da economia. “Até o setor de pedras ornamentais foi desonerado”, compara Balestrin. E lamenta: “Não existe incentivo para o setor privado da saúde. O financiamento hoje é feito por bancos privados, com taxas de mercado. É por isso que você ouve cada vez mais se falar em filas e falta de leitos nos hospitais privados”.

Há diversos sinais de que esse discurso dos empresários da área pode estar surtindo efeito. Mesmo depois de o governo ter negado a notícia publicada na Folha de São Paulo sobre a criação de um pacote de medidas de incentivos aos planos privados, e de entidades representativas do movimento sanitário, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) terem repudiado essa ideia, rumores continuaram a aparecer na imprensa. Matéria publicada no jornal O Globo de 5 de abril , por exemplo, diz que o governo está estudando a possibilidade de reduzir PIS e cofins para “aliviar os custos” das operadoras de planos de saúde e desonerar a folha de pagamento dos hospitais que prestam serviço a essas operadoras.

Lígia Bahia conta que, na época da notícia divulgada na Folha, foi difícil imaginar o que poderia ser o tal pacote de incentivos que o governo ofereceria às operadoras já que, segundo ela, quase tudo que poderia ser desonerado já foi. Mas hoje ela tem uma hipótese: acha que a alternativa seria liberar os hospitais privados do pagamento da previdência social, o que também reduziria os custos das empresas de planos de saúde junto a esses hospitais. “É perverso”, opina.

“O capital privado tem sido chamado a investir no país às custas do desfinanciamento da área social” (Áquilas Mendes)

Quando o privado está no público

Segundo estudo realizado por Lígia Bahia e Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, uma das estratégias das empresas privadas ligadas ao mercado da saúde para garantir seus interesses pode ser o financiamento de campanha. Segundo levantamento feito por eles, nas eleições de 2010, 48 operadoras de planos de saúde doaram oficialmente mais de R$ 11,8 milhões para a campanha de 153 candidatos. Na eleição para a presidência, destaca-se a participação da Qualicorp Corretora de Seguros, que doou R$ 1 milhão para a campanha da presidente Dilma Rousseff e R$ 500 mil para o candidato José Serra — entre as operadoras, a empresa foi a segunda maior doadora, ficando atrás apenas da Unimed do Estado de São Paulo/Federação Estadual das Cooperativas Médicas. Entre os candidatos a governador, os que receberam mais recursos de operadoras foram Geraldo Alckmin, de São Paulo, para quem a mesma Qualicorp doou R$ 400 mil e Sergio Cabral, do Rio de Janeiro, que recebeu R$ 170 mil divididos entre a Amil e a Amico. Três senadores, 38 deputados federais e 26 deputados estaduais também receberam doações. Ao todo, as operadoras financiaram candidatos de 19 partidos, sendo a maior parte para o PMDB, PSDB e PT.

O estudo aponta ainda alguns exemplos de atuação possível dessas empresas junto ao Executivo e ao Legislativo federal e estadual, como o acompanhamento e intervenção na tramitação de projetos de lei que afetem seus interesses, a influência na contratação de planos de saúde privados para funcionários públicos com recursos do Estado e, no senado, a aprovação de nomes indicados por elas para a diretoria da ANS.

Recentemente, um artigo publicado no Globo e na Folha de São Paulo pelo jornalista Elio Gaspari denunciou que a diretoria da Agência tem sido ocupada por pessoas vindas dos planos de saúde, empresas que a ANS deveria fiscalizar. Naquele momento, estava acontecendo, no senado, a sabatina de Leandro Tavares, que depois de já ter sido da Agência, foi trabalhar na Amil e agora estava de volta. O texto citava ainda um executivo da Qualicorp, que teria composto a diretoria da ANS entre 2009 e 2012. “A experiência do profissional da iniciativa privada trabalhando no governo só enriquece”, responde Bruno Sobral, um dos diretores da ANS. E completa: “Do ponto de vista da conduta junto às operadoras, só vi aqui diretores com grande espírito público”.

Lígia Bahia diz que, nascida num processo contraditório, mas ainda assim como uma vitória, a ANS internalizou os conflitos, distribuindo representantes dos diferentes interesses pelas suas diretorias, e se afastou do SUS. “A esquerda sanitária denuncia, articulistas denunciam nos jornais, mas nada adianta”, diz.

Para Ialê Falleiros, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a ANS é um exemplo de entidade que, apesar de não ser empresarial, tem ajudado a inverter a lógica de influência entre público e privado. Segundo ela, a Agência, criada para garantir o papel do Estado de regulamentação do mercado de planos de saúde privados, abandonou a tarefa de pautar o privado pela lógica do público: ao contrário, adota o ideário do mercado e age para garantir a sua sustentabilidade e harmonizar os diferentes interesses envolvidos nesse mercado, como o das operadoras de planos e dos hospitais. “Não existe a doença privada e a pública”, opina Bruno Sobral, para defender que, idealmente, o financiamento do SUS e da saúde privada deveria ser igual “em termos de escopo, organização e recursos”. “Essa aproximação entre o modelo privado e o público é natural em relação à atenção à saúde”, diz. Ele acredita que o SUS é um modelo a ser seguido. “Não necessariamente com a quantidade de recursos oferecidos ao paciente, o tempo de espera, a falta de equipamentos”, relativiza. E completa: “O SUS é o maior concorrente das operadoras”.


Enquanto isso, o SUS...

O Ministério da Saúde não quis se pronunciar, para esta reportagem, sobre a renúncia fiscal, alegando que essa política não diz respeito apenas à saúde. Mas o diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas do Ministério da Saúde, Fausto Pereira dos Santos, reforçou, por email, que os investimentos na saúde pública têm crescido. “O investimento federal triplicou nos últimos dez anos: de R$ 28,3 bilhões em 2002 para R$ 93,4 bilhões em 2012. O valor do orçamento aprovado para 2013 é de R$ 99,3 bilhões, portanto, um aumento de quase R$ 6 bilhões em relação ao ano anterior”, diz. De fato, de acordo com a pesquisa do Ipea, de 2008 a 2011, o gasto tributário em saúde diminuiu em relação ao gasto federal em saúde (entendido como as despesas com ações e serviços públicos de saúde financiados com recursos próprios), o que, segundo Carlos Octávio Ocké-Reis, pode indicar algum aumento do investimento no setor público.

Mas esse otimismo está longe de ser consensual. Aquilas Mendes, professor de Economia da Saúde da USP, destaca que o gasto do governo com ações do serviço público de saúde em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) se mantém estável desde 1995 — e a pesquisa do Ipea comprova essa estabilidade no período estudado, de 2003 a 2011. Ele faz as contas: países com sistemas universais como o do Brasil aplicam pelo menos 8% do PIB na saúde; aqui, a saúde pública recebe apenas 3,8% do PIB, segundo dados de 2011, um montante de R$ 138 bilhões. E a regulamentação da Emenda Constitucional 29, que não garantiu mais recursos para a saúde, pode ter piorado a situação: como o investimento do governo federal ficou atrelado ao PIB, de acordo com Aquilas Mendes, isso pode significar inclusive menos investimento, já que de 2011 para 2012, por exemplo, o PIB caiu. Ele destaca que, se a demanda do Movimento Saúde + 10, de garantir a aplicação de 10% da receita bruta da União no setor fosse aprovada, isso significaria mais R$ 43 bilhões ao ano. “Ainda assim estaríamos longe do investimento dos outros países”, compara. Para fechar o quadro, diz, além dos recursos que se deixa de arrecadar com isenção fiscal, a seguridade social perde R$ 53 bilhões anuais, em valores de 2011, em função da Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permite ao governo federal aplicar livremente 20% desse orçamento.

Aquilas lembra que a renúncia fiscal não é uma prática só da área da saúde e sim uma política de governo que atinge todas as áreas. E, segundo ele, essa política de desoneração tributária, justificada como forma de fomentar o crescimento econômico, tem penalizado, principalmente, o orçamento que deveria ser da seguridade social, com isenções de cofins e CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido), por exemplo. “O capital privado tem sido chamado a investir no país às custas do desfinanciamento da área social”, diz. E completa: “Argumenta-se que essa política visa aumentar a competitividade da empresa brasileira. É uma falácia: não se aumenta competitividade deteriorando as condições de trabalho e proteção social de um país”. Por tudo isso, Aquilas defende que o movimento sanitário precisa ir além do específico: mais do que reivindicar o aumento do percentual de investimento, é preciso discutir a política econômica do país. “A utilização do fundo público pelo setor privado só tem sido intensificada”, alerta.

Segundo Lígia, esse processo acontece pari passu a uma mudança na concepção do direito à saúde. “O SUS sumiu do discurso governamental”, diz, explicando que, na trilha das ‘Vozes da nova classe média’, a propaganda do governo federal, muito voltada para beneficiários de planos de saúde, associa cada vez mais o direito ao pagamento. “Há uma desistência do SUS”, concorda Gastão Wagner.


Cultura da colaboração

De acordo com Ialê Falleiros, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, o espaço que o setor empresarial tem conquistado nas políticas de saúde é um exemplo do que ela chama de “cultura da colaboração”, um processo que, entre outras coisas, tenta eliminar as barreiras entre público e privado, sempre a favor do mercado. E isso é resultado da crescente organização coleiva das entidades empresarias da saúde, que existe desde os anos 1960 mas precisou se reorganizar nos anos 1980, a partir da democratização.

Os estudos que a pesquisadora fez para sua tese de doutorado mostram que, já no nascimento do SUS, essas entidades estavam lá. Representados pela Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Fenaess), entidade sindical patronal que era o braço da saúde na Confederação Nacional do Comércio (CNC), os empresários dessa área não participaram da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que deu forma ao SUS, mas se organizaram para disputar seus interesses na Assembleia Nacional Constituinte. Já naquele momento, segundo Ialê, suas principais reivindicações eram a não-estatização da saúde e a não-priorização do serviço público no financiamento estatal. Mesmo tendo propostas rejeitadas, a Federação comemorou uma conquista maior, que precisava ser mantida: a garantia constitucional de que a assistência à saúde seria facultada à iniciativa privada.

O passo seguinte, de acordo com a pesquisadora, foi se desvincular da CNC e criar, em 1994, a Confederação Nacional da Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS), que desempenha um papel cada vez mais importante nessa “cultura da colaboração”. “A CNS entende que precisa atuar junto aos sanitaristas, incorporar o discurso do SUS”, explica Ialê. Em sua tese, ela procura demonstrar como a organização política do empresariado da saúde em entidades como a CNS tem conseguido não só garantir os seus interesses como atuar diretamente junto ao Estado na definição da política nacional de saúde.

Exemplo de sucesso dessa “cultura da colaboração” é a participação da Associação Nacional de Hospitais Privados em vários “modelos de compartilhamento público-privado” que, segundo Balestrin, envolvem governos estaduais e o governo federal. “Os hospitais de excelência participam de muitos projetos: reestruturação de hospitais universitários no Rio de Janeiro, treinamento de pessoal em várias regiões do Brasil”, exemplifica. Em 2009, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), que ofereceu o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) para instituições de saúde privadas consideradas de excelência. A contrapartida ‘beneficente’ que elas devem dar é desenvolver projetos de intervenção no SUS. Seis hospitais de excelência — Albert Einstein, Sirio Libanês, Hospital do Coração, Oswaldo Cruz, Moinhos de Vento e Samaritano — estão capitaneando 111 projetos de desenvolvimento institucional do SUS, em diversas áreas, como capacitação de profissionais, aprimoramento da gestão e inovação tecnológica. “Não se tem controle sobre o mérito dos programas oferecidos como contrapartida”, alerta Aquilas Mendes.

Em termos financeiros, isso significa, de acordo com o portal do Ministério da Saúde, uma isenção fiscal de R$ 993 milhões em três anos — e isso para hospitais reconhecidos não só pela excelência mas também por atenderem a população de mais alta renda. Esse acordo, no entanto, tem chamado atenção também por outro aspecto: institui o privado como referência e carro-chefe das mudanças no setor público. “O que os governos brasileiros têm esquecido é que o público é que precisa ser referência para o privado e não o contrário”, alerta Sonia Fleury, pesquisadora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas. Para Balestrin, da Anahp, entidade da qual os seis hospitais beneficiados pelo Proadi são associados, isso não é um obstáculo: “Somos uma instituição técnica, que busca, através de atividades estruturantes, contribuir para os nossos hospitais e para o sistema de saúde em geral. Praticamos advocacy, que não é bem uma representação política, mas a defesa de princípios técnicos em que acreditamos”, explica. E completa: “Para nós, pouco importa quem está na gestão do sistema sanitário. Estamos sempre dispostos a colaborar”.

Balestrin acredita que a melhor forma de o setor privado de saúde funcionar é existir um setor público “exuberante”. “Porque aí o cidadão vai poder optar”, diz. Segundo ele, o único motivo para existir tensão entre o público e o privado é o subfinanciamento do SUS. “O sistema público está sequelado pela falta de recursos. Não é que o setor privado invista muito, o público é que investe pouco”, analisa. Ele inclusive defende o Proadi como uma forma “inteligente” de garantir recursos para o setor público. “Os hospitais precisam transformar todo o dinheiro da isenção em projetos que são canalizados para instituições públicas que o Ministério da Saúde aponta. Imagina se esse dinheiro fosse depositado na conta do Tesouro Nacional: como iríamos garantir que ele iria pra a saúde?”, opina.


Impactos sobre o modelo de atenção

Além dos impactos financeiros, a participação dos setores empresariais da saúde na formulação de políticas traz consequências também para a organização do modelo de atenção proposto pelo SUS. Gastão Wagner explica que a forma de organizar o cuidado que o SUS tenta implementar — com foco na promoção da saúde, equipes multidisciplinares, entre muitas outras características — é inspirada na tradição dos sistemas nacionais de saúde que integram um Estado de Bem-estar Social. “Mas a viabilidade desse modelo implica quebrar a lógica privada na saúde”, diz.

Bruno Sobral, da ANS, não reconhece essa contradição. Ele diz que as operadoras estão percebendo que o modelo do SUS deve ser imitado. “O problema é que elas nem sempre conseguem se organizar dessa forma, já que é difícil encontrar oferta de atenção básica no mercado, porque dá pouco retorno. Em função dessa dificuldade, elas estão construindo redes próprias”, explica. Gastão diz que também nos EUA algumas empresas adotam parte das diretrizes de sistemas como o SUS, mas a lógica — e o resultado — é bem diferente. “Nesses casos, o médico generalista é muito mais um regulador da demanda, com o objetivo de diminuir custos, do que um profissional com o papel que ele deve ter na atenção básica”, compara.

O problema, segundo o professor, é que nem o SUS conseguiu desenvolver esse modelo “em toda a sua potência”. “Não conseguimos construir redes regionais integrais e fluxo desburocratizado entre as instâncias do sistema, a estratégia de saúde da família tem baixa comunicação com os hospitais”, exemplifica. E, para Gastão, uma das razões é exatamente esse mix entre público e privado. Segundo ele, a dependência do setor privado no Brasil, desde a década de 1980, é muito maior do que nos outros países que implementaram sistemas universais. Ele conta que o SUS já nasceu com 60% dos ambulatórios e 70% dos hospitais sendo privados, atuando pela compra de serviços. “E depois dos anos 1990, com a gestão das OS [organizações sociais] e outros modelos parecidos, o que era público passou a funcionar de forma semelhante aos filantrópicos, o que dificulta a integração em rede”, lamenta. E conclui: “A atenção primária interfere no hospital, na saúde mental e vice-versa. A gente não conseguiu articular isso em rede, em grande medida, pela resistência dos hospitais privados e dos médicos”.


Mas e a nova classe média?

Para os governos mais recentes, no entanto, do essa política de incentivo estaria justificada pelo desejo de uma camada crescente da população, que tem sido identificada como a “nova classe média”. Segundo a notícia publicada na Folha de São Paulo, por exemplo, o suposto pacote de incentivos que o governo negociaria com as empresas de planos de saúde teria como alvo principal exatamente essas classes C e D. O cenário seria mais ou menos o seguinte: com o aumento do padrão de renda, 35 milhões de pessoas ascenderam da classe baixa para a classe média nos últimos dez anos. Com isso, o Brasil seria hoje um país em que mais da metade da população — 53% ou 100 milhões de pessoas — estão na classe média. Os dados são da cartilha ‘Vozes da nova classe média’, resultado de um projeto desenvolvido pela SAE em parceria com a Caixa Econômica Federal e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com o objetivo de “contribuir para o devido aprofundamento do conhecimento sobre a classe média” — um conhecimento que, segundo a cartilha, é “fundamental à adequação das políticas públicas”.

O fato é que, embora os dados sobre a renda da população sejam objetivos, a conclusão sobre essa ampliação da classe média está longe de ser consensual. “Esse é um argumento falacioso”, diz o professor de Economia da Saúde, Aquilas Mendes. Segundo ele, o governo Lula diminuiu a desigualdade no Brasil porque elevou o salário mínimo real e ampliou programas de distribuição de renda para populações miseráveis. “Mas isso foi um incremento da renda para possibilitar o acesso às necessidades mínimas. Não significa falar em classe média”, analisa.

De acordo com a pesquisa da SAE, são “considerados pertencentes à classe média todos aqueles com baixa probabilidade de passarem a ser pobres no futuro próximo”. “Empiricamente”, segundo o texto, isso significa que podem ser considerados como de classe média todos que têm uma renda per capita entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês. Quem ganha menos do que isso pertence à classe baixa e quem ganha mais está na classe alta. “Primeiro, tal abordagem coloca em um mesmo estrato indivíduos com rendimento familiar mensal tão dissímile como a variação entre R$ 1.200 e R$ 5.174 — uma disparidade de 430% entre o piso e o teto!”, critica Mathias Luce, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenador do Núcleo de História Econômica da Dependência Latino Americana, em artigo publicado na revista Trabalho, Educação e Saúde de janeiro deste ano. Em segundo lugar, continua ele, “inclui na denominação de classe média um universo de milhões de famílias cujos rendimentos sequer alcançam o salário mínimo necessário do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)”. Por fim, o professor diz que falta rigor na utilização do potencial de consumo como um dos critérios para se considerar a ascensão desse contingente populacional à classe média. Segundo ele, esse raciocínio ignora três fatores importantes: “o endividamento das famílias, o aumento do desgaste da força de trabalho” para conseguir acessar os bens duráveis, e o barateamento de vários desses produtos, que “passaram à condição de bens de consumo necessário”. Para outros críticos, na saúde não é diferente: “Temos que desconstruir essa ideia de que vai haver extensão de cobertura pela saúde suplementar. Não vai. As empresas já chegaram ao teto. Por isso estão atrás do Estado”, diz Gastão.

De acordo com o texto de Mathias Luce, o aumento do consumo se deu às custas do endividamento familiar. Ele exemplifica: em 2010, as famílias na faixa de renda C foram responsáveis por mais de 44% do consumo de eletrodomésticos. Mas, no cadastro de devedores da Confederação Nacional dos Dirigentes Logistas, as famílias dessa mesma faixa respondiam por 47% da inadimplência. Ele conclui ainda, a partir dos dados que sistematiza, que 64% das famílias inadimplentes recebem abaixo do salário mínimo necessário estipulado pelo Dieese. “A chamada ‘classe C’, que seria a ‘classe majoritária’, só é majoritária em termos percentuais porque é classe trabalhadora e não ‘classe média’, termo que remete — mesmo que seus ideólogos o neguem — à ideia de estrato intermediário entre proprietários do capital e trabalhadores comuns”, conclui.

Mas o fato é que essa leitura da existência de uma nova classe média no Brasil tem justificado a opção por determinadas políticas públicas. Sem discutir os determinantes das escolhas, a cartilha da SAE aponta, por exemplo, que 60% da população, de todas as classes, julgam que os hospitais privados são melhores do que os públicos. “Quanto ao papel do Estado na oferta de serviços de saúde e educação, existe, pela ótica do comportamento, uma demanda crescente por serviços privados com o aumento no nível de renda”, conclui o texto. Além do maior acesso ao emprego formal e, consequentemente, a planos de saúde coletivos, o documento aponta outras três razões para que essa classe média prefira a saúde privada: “a maior disponibilidade de recursos”, “o maior apreço desta classe pela maior qualidade oferecida pelos serviços privados” e “a maior inadequação dos serviços oferecidos às necessidades dos mais pobres”. Segundo Lígia Bahia, que caracteriza esse estudo como “ciência vulgar”, o objetivo é mostrar a opção pelo privado como uma preferência “natural” dos indivíduos. “Já tem quem esteja dizendo por aí que a privatização da saúde é uma opção da ‘sociedade’”, ironiza.

Mesmo que se restrinja a discussão de políticas públicas a uma questão de opinião, não há consenso sobre as conclusões. Uma pesquisa desenvolvida pela professora Lena Lavinas, do Instituto de Economia da UFRJ, e concluída em 2012, com o financiamento da Finep , indica um caminho contrário ao apontado pela cartilha da SAE. Segundo o relatório do estudo, intitulado ‘Medindo o grau de aversão à desigualdade da população brasileira ”, 59,1% dos brasileiros “têm consciência de que a provisão pública de educação e saúde é indispensável ao bem-estar e aceitaria pagar mais impostos se estes viessem a ser de fato aplicados a este fim”, o que significa, de acordo com a pesquisa, que “são majoritários os brasileiros que julgam que educação e saúde devem ser bens públicos e universais”.

Para Lígia Bahia, o fato de parcelas da população, seja a ‘nova classe média’ ou a “classe operária de macacão”, almejarem ou não um plano de saúde, é apenas resposta a um determinado estado de coisas. E ela aposta: “É de se esperar que, na medida em que se acumulem as experiências negativas da privatização, a pressão por um efetivo Welfare State seja apenas uma questão de tempo”. Não será esse o recado enviado pelas vozes das ruas?