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Sete dias sob Temer

Há uma semana na presidência interina, governo do PMDB fecha ministérios representativos, descaracteriza a seguridade social, reduz programas sociais, ameaça diminuir o tamanho do SUS, e a lista não acaba...
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 19/05/2016 11h37 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
O presidente interino na cerimônia de posse Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Alguns dias depois da posse do presidente interino Michel Temer, um colunista de economia de uma emissora de rádio comercial disse, em tom comemorativo, que o novo presidente tem que servir “entradas apetitosas” aos convidados da festa, já que o “prato principal” iria demorar um pouco. Leia-se como prato principal as reformas já prometidas e anunciadas, como a da previdência e a trabalhista, almejadas sem meias palavras por convidados como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). No mesmo bate-papo, o colunista e um economista convidado concordam que está na hora de “vender parte do Brasil” para sanar as dívidas.

Ao que tudo indica, os interlocutores do bate-papo estão afinados com o pensamento que guia os passos do governo provisório. Dando continuidade à analogia do banquete, muitas “entradas apetitosas” foram servidas na bandeja nesses sete dias de governo provisório de Temer e os convidados que se deliciaram certamente não foram os trabalhadores.

A reportagem da EPSJV/Fiocruz faz aqui um esforço de mapear as primeiras ações de Temer que ameaçam desmantelar conquistas sociais e direitos. Também entram na lista medidas que podem parecer não tão prejudiciais, mas que demonstram as trapalhadas e a raiz conservadora deste governo.

Dia 1

Temer toma posse e já anuncia a extinção e fusão de ministérios e secretarias e o compromisso com as reformas da previdência e trabalhista. O presidente provisório aparece cercado de figurões, alguns já confirmados nas chefias das pastas do novo governo. Chama atenção a presença de Aécio Neves, candidato derrotado do PSDB nas últimas eleições presidenciais. Nas redes sociais, chovem críticas sobre a ausência de representatividade da sociedade brasileira entre os novos ministros: nenhuma mulher, como não acontecia desde a ditadura, e nenhum negro. O presidente interino diz que vai “incentivar de maneira significativa as parcerias público-privadas” e reforça que “ao Estado compete cuidar da segurança, da saúde, da educação”. Já “o restante terá que ser compartilhado com a iniciativa privada”.

A medida provisória 726 confirma a extinção, modificação e criação de ministérios e define o papel de cada um na estrutura governamental. Deixam de existir pastas consolidadas, como o Ministério da Cultura, e emblemáticas, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário e as Secretarias de Igualdade Racial, Política para Mulheres e Direitos Humanos, consideradas conquistas importantes de segmentos historicamente esquecidos nas políticas públicas. A Cultura migra para o Ministério da Educação, como era há 30 anos; o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Social viram uma única pasta; e as secretarias ficam subordinadas ao chamado Ministério da Justiça e Cidadania.

A seguridade social também é atingida pelo novo desenho do governo provisório. O antigo Ministério do Trabalho e Previdência Social passa a ser apenas Trabalho e a Previdência é deslocada para a pasta da Fazenda. O presidente interino declara que a mudança é uma garantia para que o endurecimento das regras para aposentadoria de fato aconteçam.

A Controladoria Geral da União passa a integrar o novo Ministério da Fiscalização, Transparência e Controle.  A mudança é questionada pelos servidores do órgão, que temem o enfraquecimento do poder de fiscalização dos próprios atos da presidência e ministros.

Causa estranheza a atribuição dada ao novo Ministério da Educação e Cultura de “delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinação de suas demarcações”, conforme estabelece a portaria 726. A ação cabia, anteriormente, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Pedro Diamantino critica a mudança em artigo publicado na revista Carta Capital: “Se os governos Lula e Dilma apresentaram déficits de desempenho na efetivação desses direitos, agora temos a restauração da inviabilidade operacional desta política, lançada no limbo de uma estrutura inexistente e sob discurso de enxugamento da máquina pública”.

A Medida Provisória 727 põe em marcha o avanço da privatização com a criação do chamado Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) que se destina à “ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização”.

Mal é empossado e o novo ministro do Desenvolvimento Social e Agrário Osmar Terra (PMDB-RS) já contradiz o discurso de Temer de que não cortará programas sociais e dá declarações questionando a quantidade de beneficiários do Bolsa Família. “As pessoas têm que ter renda, não pode ser objetivo de vida viver só do Bolsa Família e o que está acontecendo é isso”, dispara, anunciando que o novo governo vai buscar formas de “oportunizar a saída” de beneficiários do programa. Antes, o documento que apresentava as propostas do PMDB para a área social já falava em reduzir o número de beneficiários do programa dos atuais 46 milhões para cerca de 10 milhões.

Dia 2

Alexandre de Moraes (PSDB-SP), ex-secretário de segurança do Estado de São Paulo, é confirmado como Ministro da Justiça e Cidadania. Sobre Alexandre pesa a atuação violenta da polícia paulista nas recentes ocupações de escolas e em vários protestos, como os do Movimento Passe Livre. Pouco antes de assumir o ministério, ele deixou mais uma marca em São Paulo: foi a partir de uma consulta sua que a Procuradoria Geral do Estado liberou a Polícia Militar a realizar a reintegração de posse de prédios públicos sem autorização judicial. O novo ministro, que cuidará também dos Direitos Humanos, já atuou como advogado do ex-presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha.

A decisão de extinção do Ministério da Cultura (Minc) é fortemente criticada pelos servidores e pela classe artística, que denunciam um enorme retrocesso. Os servidores da pasta recebem o ministro interino da educação, o administrador de empresas Mendonça Filho (DEM-PE), que agora também passa a ser responsável pela Cultura, com vaias e palavras de ordem. “O Ministério da Cultura tem sete entidades vinculadas, com enorme importância na política cultural, como Iphan [Insituto do Patrimônio Histórico de Artístico Nacional], Ancine [Agência Nacional do Cinema] e Funarte [Fundação Nacional de Artes]. Elas terão que se relacionar com uma estrutura que tem outras prioridades, e que dificilmente dará peso político para as demandas da cultura na relação com as áreas centrais do Governo ou nas negociações externas. Para quem depende o tempo inteiro de negociações externas e internas ao governo, isso é péssimo”, lamenta o ex-secretario executivo do Minc João Brant em entrevista ao Blog do Sakamoto.

O ministro interino da Fazenda, Henrique Meirelles, confirma a jornalistas a necessidade de colocar em prática medidas duras e acena com a possibilidade de criação de tributos temporários.

Já em clara demonstração sobre como agirá em relação às alianças com países da América do Sul, priorizadas na última década, o ministro interino das Relações Exteriores José Serra (PSDB-SP) responde às críticas feitas pelo Secretário-Geral da Unasul Ernesto Samper sobre o impeachment de Dilma. “Tais juízos e interpretações do Secretário-Geral são incompatíveis com as funções que exerce e com o mandato que recebeu do conjunto de países sul-americanos”, rebate Serra, “subindo o tom”, segundo sua própria definição. No mesmo dia, o ex- Ministro da Saúde do governo FHC, através de outra nota à imprensa, “rejeita enfaticamente” as manifestações contra o processo em curso no Brasil dos governos da Bolívia, Venezuela, Cuba, Equador e Nicarágua, além da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos, aos quais questiona a permissão de opinar.

Dias 3 e 4

Em entrevista à Globo, Serra confirma que o governo provisório vai subir o tom da resposta aos países que criticam o golpe no Brasil.

Em entrevista exclusiva ao Fantástico, o presidente interino rejeita a crítica de que faltou diversidade na composição do seu ministério e afirma que vai buscar “representantes do mundo feminino” para as secretarias. Mais uma vez, ele reforça a importância da Reforma da Previdência. Em algumas das principais capitais, ouvem-se panelaços, apitaços e gritos de ‘Fora Temer’ durante a entrevista.

Dia 5

O Ministro da Justiça Alexandre Moraes causa polêmica ao defender em entrevista à Folha de S.Paulo, que o governo interino não nomeie obrigatoriamente para a chefia da Procuradoria-Geral da República, o primeiro colocado na lista tríplice da votação feita pelos próprios membros do Ministério Público Federal, como vinha sendo praticado nos governos do PT. Horas mais tarde, o ministro é desautorizado pelo próprio presidente interino, que garante o respeito à lista tríplice.

Na mesma entrevista, Alexandre Moraes diz que “nenhum direito é absoluto” e expõe a visão sobre as estratégias de resistência de movimentos sociais: “não é possível, como alguns defendem, a anarquia total, cada um faz o que quer. Hoje se invade um prédio público, amanhã se invade, como se invadiu, a Assembleia Legislativa [de SP, ocupada por estudantes], depois o Tribunal de Justiça, depois a casa de qualquer pessoa”.

Repercute a imagem do novo logotipo do governo interino: ‘Brasil: ordem e progresso’, confeccionado a partir de uma bandeira do Brasil da época da ditadura, com a ausência dos estados do Acre, Amapá, Roraima, Rondônia e Tocantins.

Os produtores do filme ‘Retratos de identificação’, sobre perseguidos da ditadura militar no Brasil, denunciam que a embaixada brasileira em Paris cancelou a projeção do filme prevista para o dia 31 de maio. “Sinal dos tempos? A projeção-debate havia sido organizada pela Associação Alter'Brasilis e, segundo os organizadores, o cancelamento da sessão foi feito por telefone, com a alegação de que o filme trata de um ‘assunto sensível”, criticam os produtores do documentário.

Dia 6

A Folha de S. Paulo amanhece com outra ‘bomba’ atirada por mais um ministro provisório: “o tamanho do SUS precisa ser revisto”, afirma Ricardo Barros (PP-PR) à frente da pasta da Saúde. O ministro interino declarou também que o país não tem mais condições de sustentar todos os direitos que a Constituição determina e que, a exemplo, da Grécia, que cortou aposentadorias e vive uma das maiores crises sociais do mundo, o Brasil precisará “repactuar as obrigações do Estado”. Pela segunda vez em menos de cem horas de governo, a declaração é revista pela repercussão negativa e o próprio ministro volta atrás, dizendo que não se referia ao tamanho do SUS, mas sim ao da Previdência.

O Diário Oficial da União publica entre as centenas de exonerações, a do presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), gestora da TV Brasil, TV Brasil Internacional, Agência Brasil, Radioagência Nacional e do sistema público de Rádio, composto por oito emissoras. O presidente Ricardo Melo havia sido indicado por Dilma e, conforme assegura a lei de criação da EBC, deveria cumprir um mandato de quatro anos. Os conselhos curador e de administração da empresa se manifestam contra a medida e reafirmam a importância do cumprimento da lei para que se assegure a independência dos canais públicos. Circula na imprensa o nome de Laerte Rimoli como possível indicado de Temer para a presidência da empresa. Rimoli é ex-diretor de comunicação da TV Câmara indicado por Cunha e assessor de comunicação da campanha de Aécio Neves à presidência em 2014.

Entre a enorme lista de exonerações do Diário Oficial da União está também a do presidente da Funarte João Bosco, gerando reações dos trabalhadores. A exemplo de servidores da cultura do Rio de Janeiro, que ocupam o edifício Gustavo Capanema, sede do Ministério da Cultura na capital carioca, o prédio da Funarte em São Paulo também é ocupado contra o desmonte do setor feito pelo governo interino.

Reforçando o que já havia sido dito no primeiro dia de governo interino, Osmar Terra determina um pente-fino no Bolsa Família e afirma que podem sair do programa mais do que 10% dos beneficiários em um “processo gradual”.

O  ministro interino das Relações Exteriores, José Serra, toma uma mais uma medida que dá pistas sobre a relação entre o Brasil e os países chamados periféricos: determina um estudo sobre quanto vem custando a manutenção das embaixadas brasileiras na África e no Caribe.

O Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, dá mais detalhes sobre a reforma da previdência que deve ser encaminhada ao congresso em, no máximo, 30 dias. A reforma valerá não só para os futuros trabalhadores, mas também para quem já está no mercado. Em tese, apenas os que já estão aposentados seriam poupados. Em entrevista à jornalistas, Meirelles reforça que a idade mínima para aposentadoria deve ser uma das mudanças e coloca em xeque a previdência como um direito adquirido: "uma das questões mais profundas e complexas que precisam ser analisadas é a que caracteriza o direito adquirido e o que é meramente a expectativa de direito, baseada em normas que vão ser discutidas no devido tempo".

Dia 7

Em mais um descumprimento de promessa, a construção de 11.250 casas do programa Minha Casa Minha Vida é cancelada pelo ministro interino das Cidades Bruno Araújo (PSDB-PE). O financiamento tinha sido liberado pela presidente Dilma por meio de portaria no dia 10 de maio e os contratos seriam para os beneficiários da categoria entidades, que contempla os projetos habitacionais coletivos de movimentos sociais.

Um dia após declarações desastrosas sobre o SUS, Ricardo Barros diz que não cabe ao Ministério da Saúde controlar a qualidade dos planos de saúde. Em entrevista ao Estado de São Paulo ele repetiu ainda a declaração de que “quantos mais planos de saúde, melhor para o SUS”. Na mesma matéria, a professora da UFRJ, Ligia Bahia, rebate as declarações do ministro: “Ao defender a expansão da saúde suplementar, o ministro está lavando as mãos. Mas a estratégia está errada, porque boa parte desse grupo vai pagar o plano, não ter assistência e, de novo, buscar o SUS”.

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Em entrevista à Folha de S. Paulo, o ministro provisório da saúde, Ricardo Barros, afirmou, entre outras coisas, que o "nível de desenvolvimento econômico" brasileiro não permite que direitos como a saúde fiquem "por conta do Estado". Além de negar o caráter universal do direito à saúde, que é reconhecido como uma das maiores conquistas da Constituição de 1988, Barros defendeu a ampliação dos planos privados como caminho para desonerar o sistema público, citou a Grécia como exemplo da retirada de direitos que o Brasil tem que fazer diante da crise e, repetindo o ex-presidente - eleito indiretamente - José Sarney, afirmou que a Constituição torna o país "ingovernável". "Porque só tem direitos lá, não tem deveres". Diante da repercussão da entrevista, que foi destacada como manchete do jornal, o ministro provisório mudou o tom. Deu declarações dizendo que o SUS "está estabelecido", mas atacou a previdência social, como grande vilã do déficit do orçamento, e continuou defendendo que o financiamento das políticas de saúde não pode ficar só a cargo do Estado. Mesmo antes da entrevista, o documento 'A Travessia Social', que apresenta o programa do PMDB para a área social, propõe a construção de parcerias público-privadas para a saúde. Nesta entrevista, o médico sanitarista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gastão Wagner, faz uma análise crítica da entrevista.
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