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Travessia para o passado?

Programa 'social' do governo provisório do PMDB focaliza programas e repete concepções e propostas dos anos 1990
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 12/05/2016 13h24 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Ilustração de Gilberto MaringoniA crise econômica atinge principalmente as parcelas mais pobres da população. Portanto, para garantir a proteção desses segmentos, é preciso que a “travessia” da “ponte” que nos levará a um “futuro” melhor se dê com ênfase no “social”. A solução? Restringir — ou, numa linguagem mais moderna e mais amena, “focalizar” — mais os programas sociais, aqueles que atingiam exatamente esses grupos mais vulneráveis. Pode parecer contraditório, mas esse é precisamente o resumo da proposta apresentada pelo documento ‘A Travessia Social’, que completa o programa antecipado de governo proposto pelo PMDB para o governo provisório de Michel Temer.

O cálculo é simples. A transferência direta de renda, que hoje atinge quase 46 milhões de brasileiros - cerca de 22% da população –, vai se restringir aos 5% mais pobres (cerca de dez milhões de pessoas, segundo o texto). Esses são, de acordo com o documento, aqueles para os quais, efetivamente, “tem sido mais desafiador promover a inclusão social e produtiva”. O programa do PMDB, no entanto, não explica que critérios de demanda fundamentariam essa redução do número de beneficiados. Embora faça a crítica de que vários programas sociais em curso não vêm sendo submetidos a “avaliação que produza consequências”, o documento  também não apresenta qualquer balanço que autorize a conclusão de que apenas os 5% mais pobres precisariam do Bolsa Família. Hoje, as regras sobre quem pode receber o benefício são objetivas e regidas pela demanda: são consideradas extremamente pobres famílias com renda mensal de até R$ 77 por pessoa, e pobres aquelas com renda per capita de, no máximo, R$ 154.

O texto não diz, mas a entrevista de um de seus formuladores, o economista Ricardo Paes de Barros, ao site ‘Tribuna da Internet’ em 2015 ajuda a entender. Dando verniz científico ao discurso do senso comum de que o Bolsa Família sustenta gente que não precisa dele, Paes de Barros afirmou que o programa está “inchado” com “gente que não é tão pobre”. Criticando que o programa se baseie na renda declarada, ele defende que R$ 10 podem mudar a fronteira entre os pobres e os nem tão pobres assim: “Hoje, a renda que você declarar faz uma enorme diferença. Numa família de cinco pessoas, se você declarar que ganha R$ 10 a menos do que de fato ganha, você recebe no Bolsa Família, todo mês, R$ 50 reais a mais. Ou seja: R$ 600 a mais por ano. É claro que eu posso ver melhor ainda se eu refinar o cadastro ou criar outro sistema, mas já é evidente que o Brasil não tem tantos pobres assim quanto tenho hoje no Bolsa Família”, defendeu.

Mas e quem estiver fora desse percentual? “A totalidade da população brasileira, excetuados apenas os 5% mais pobres, está já conectada à locomotiva econômica nacional e deriva sua renda de ocupações produtivas exercidas no mercado”, afirma o documento do PMDB, sem citar fonte ou referência dessa conclusão. A lógica é que, conforme se caminha para os estratos ‘um pouco menos pobres’, as estratégias vão mudando. Assim, o partido do, agora, presidente interino da República tem política também para os 70 milhões de brasileiros que corresponderiam aos 40% mais pobres — aqueles que, apesar de terem “uma renda relativamente baixa”, que o documento não quantifica, devem ser considerados já “incluídos”. Embora reconheça que eles estão “no limiar da satisfação das necessidades sociais mínimas”, essa conclusão serve apenas para lembrar que a crise econômica atual teve um efeito “devastador” sobre eles. O argumento para que, mesmo assim, eles não sejam mais beneficiados com transferência de renda pelo governo é que, estando “perfeitamente conectados à economia nacional”, eles acompanharão nas suas trajetórias pessoais o crescimento econômico que o governo provisório promete trazer.

Amparados por um “abrangente programa de certificação de capacidades”, que reconheça e valorize as competências que adquiriram ao longo da vida, o problema dos 40% mais pobres da população estariam resolvidos. Para os que se encontram nesse mesmo grupo, mas ainda não têm habilidades profissionais, o governo provisório do PMDB propõe uma “formação anual”, “representada por um cupom” que possa ser “utilizada como ativo para aqueles que procuram emprego”. “Vemos de novo a qualificação profissional como centro das políticas sociais para aquele setor ‘não tão pobre’, que precisaria de uma ajuda direta. Como se qualificação resolvesse por si só”, critica Marcela Pronko, vice-diretora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) que estuda educação e organismos internacionais, explicando que sempre houve uma crença de que a qualificação resolveria o problema da ‘inclusão’, mas que, agora, isso volta numa perspectiva de ultrafocalização e ainda com um estreitamento do investimento numa agenda social. “A lógica é a de oferecer ‘oportunidades’, que as pessoas podem aproveitar ou não. Se a pessoa não se insere no mercado, é porque alguma coisa ela fez de errado. Com isso, o mercado se resguarda e diz que a responsabilidade é individual”, explica, completando: “Essa ideia de que é a educação que liberta as pessoas da pobreza é Banco Mundial puro”.

Como fazer a economia crescer

De todo modo, segundo o programa social do PMDB, é exatamente por esses 40% mais pobres “incluídos” que a “economia não pode parar de crescer”. Mas como? O ‘Travessia Social’ aponta dois “motores possíveis do crescimento”, que deverão gerar ampliação do emprego e da renda: o investimento privado e as exportações. No entanto, o texto não se cansa de repetir que qualquer iniciativa nesse sentido depende do “equilíbrio fiscal”, uma conquista que só será possível se forem tomadas medidas estruturais que o partido apresentou no seu documento anterior, a primeira parte do ‘Uma ponte para o futuro’. Entre elas, estão a desvinculação constitucional de gastos mínimos com saúde e educação, a desindexação que impedirá que o reajuste do salário mínimo continue beneficiando também aposentados e beneficiários da assistência social e uma nova reforma da previdência. Isso significa que, além de focalizar ainda mais os programas sociais que já foram alvo de críticas nos governos do PT exatamente pela focalização, o PMDB propõe mexer também nas políticas universalizantes, alterando o mínimo de garantia de financiamento que a Constituição Federal hoje garante. (Leia mais em http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/quem-vai-pagar-o-pato). “A agenda é social, mas a receita é econômica”, afirma Marcela.

Além disso, quando fala em investimento privado, o programa de Temer está tratando, especificamente, de processos de privatização, desde a concessão pública de obras de infraestrutura (como a privatização de rodovias e aeroportos) até a construção de parcerias público-privadas (PPPs) em áreas como saneamento, habitação popular e transporte — englobando, portanto, soluções privatistas para as dívidas sociais que protagonizaram o movimento nas ruas desde junho de 2013. “O governo está empenhado na criação e na melhoria dos bens públicos à disposição da população, em especial das populações mais pobres, mas não será seu provedor direto, para poder concentrar-se em saúde, educação, segurança pública e proteção social, que são bens públicos que o mercado tem dificuldades de prover”, explica o texto. Qualquer semelhança com o discurso do Estado mínimo que dominou o cenário nacional nos anos 1990 não é mera coincidência.

Saúde e educação: túnel do tempo?

O tópico do documento que trata do “desafio da saúde”, no entanto, deixa claro que nem as poucas áreas que o PMDB diz considerar “bens públicos” serão poupadas do mercado. Depois de listar sete medidas genéricas que poderiam dar início a um “grande choque de gestão no sistema”, o oitavo ponto diz a que veio a “agenda de mudanças” na saúde do governo Temer. “É preciso identificar oportunidades de colaboração com o setor privado, para desenvolver parcerias público-privadas com compartilhamento de riscos operacionais e financeiros, para estimular aumentos de produtividade e ganhos de eficiência”, diz a proposta que encerra o rol de iniciativas para a saúde.

Segundo Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse é o ponto principal do programa de saúde do governo provisório de Temer. “A qualquer pergunta, a resposta será: parceria público-privada. Não terá dinheiro, mas terá PPP. É como se fosse uma solução mágica”, analisa. E aqui talvez fique ainda mais claro por que a semelhança com o discurso dos tempos de governo Fernando Henrique Cardoso não é coincidência: de acordo com Ligia, as propostas de saúde do ‘Travessia Social’ são uma cópia fiel do programa de Aécio Neves, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2014 e cujo partido, o PSDB, agora vai compor o governo provisório de Temer. “Ele repete a plataforma social do Aécio, que acende uma vela para deus e outra para o diabo: diz, por exemplo, que vai aumentar a oferta pública, mas via PPPs”, afirma, ressaltando que o programa do PMDB traz uma ênfase ainda maior nessas parcerias. 

Por isso, Ligia acredita que o documento não se refira às formas de ‘privatização’ da gestão que já existem — e contra as quais boa parte do movimento sanitário já vinha lutando —, como a entrega de unidades de saúde para a administração de Organizações Sociais (OSs) ou a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). “Eu penso que se refere a um outro modelo, que já vem aparecendo, mas de maneira muito residual, que é a participação dos grandes conglomerados privados no SUS [Sistema Único de Saúde]. Ou seja, seria o uso do fundo público orientado pelos grandes conglomerados, tanto hospitalares quanto de empresas de planos de saúde”, arrisca.

Marcela sente o mesmo cheiro dos anos 1990 quando olha as ponderações e propostas do documento que dizem respeito à educação e sua relação com o crescimento econômico. A aposta na qualificação profissional como solução para a ‘inclusão’ das camadas mais pobres, e com o agravante de trazer ainda um foco na certificação — que se dá fora das instituições educacionais —, parece, segundo ela, um déja vu. “É uma volta, de certa forma, ao que tinha sido o Planfor [Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador] no governo Fernando Henrique Cardoso. O Planfor era exatamente isso: uma requalificação da força de trabalho, pautada por fora e desatrelada do sistema de educação formal”, diz.

Chama atenção que o documento do PMDB não faça qualquer referência ao ensino superior, segmento de ensino pelo qual o governo federal é mais diretamente responsável. Nenhum comentário ou proposta é feita, por exemplo, sobre a crise das universidades federais, que têm sofrido com falta de recursos desde antes do contingenciamento no ajuste fiscal. Na verdade, a única referência ao ensino superior vai no sentido contrário: ao falar da necessidade de uma nova estruturação do currículo do ensino médio, o documento lamenta que hoje essa etapa da educação “não habilita o aluno para coisa alguma, a não ser exames de ingresso na Universidade, embora se saiba que a maioria dos alunos encerra aí sua formação escolar”. A solução insinuada — através da comparação com uma suposta realidade da União Europeia — é direcionar essa parcela mais pobre da população para a educação profissional. “O documento deixa claro que o interesse não é que todo mundo chegue ao ensino superior. Esses [os mais pobres] têm que ocupar os postos de trabalho simples, o que se aponta com um reforço da educação profissional. Isso também é coisa antiga”, afirma Marcela.

Tanto nas considerações gerais como nas sete propostas elencadas especificamente para a área de educação, o que transparece é uma profunda desatualização não apenas em relação ao debate educacional contemporâneo como em relação à própria legislação. O programa do PMDB fala em reformulação do currículo, por exemplo, sem sequer citar a Base Nacional Curricular Comum, que, depois de muita discussão e polêmica, acabou de ter sua segunda versão entregue ao Conselho Nacional de Educação. Também não faz qualquer referência ao Plano Nacional de Educação (PNE) que, aprovado no Congresso Nacional, deve orientar a política educacional até 2024. Ao priorizar a educação básica como segmento em que o governo federal deve ter “maior presença”, propõe um programa de certificação de professores com pagamento de bônus, ignorando inteiramente o debate que, a partir da análise de experiências inclusive internacionais, questiona a eficácia de incentivos por produtividade no campo da educação. Mas o cheiro de mofo fica ainda maior porque o documento que vazou pela imprensa antes do lançamento oficial traz informações e nomenclaturas muito desatualizadas em relação à organização da educação no Brasil: erra ao elencar os entes federados responsáveis pelo financiamento dos diferentes segmentos, refere-se às etapas escolares como ‘séries’ e não como ‘anos’ e divide a educação básica em “1º e 2º graus”, termos que, desde 1996, foram substituídos por ‘ensino fundamental’ e ‘ensino médio’. “Eles devem ter pensado que estavam na época do Fernando Henrique”, ironiza Marcela.