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Troca e solidariedade na luta estudantil

Estudantes que ocupam o Colégio Estadual Clóvis Monteiro, em Manguinhos-RJ, apresentam suas pautas e descrevem a experiência de se organizar para lutar pela educação e cuidar da sua própria escola. A conversa aconteceu durante a visita de alunos da EPSJV/Fiocruz, organizada pelo Grêmio Politécnico.
Cátia Guimarães e Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 15/04/2016 15h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Logo na entrada, os cartazes afixados no portão da escola dão o tom da ocupação que já dura mais de uma semana na Escola Estadual Clovis Monteiro, localizada no conjunto de favelas de Manguinhos, Rio de Janeiro. “Não espere a mudança, você é a mudança”, diz um deles. Outro, com os dizeres “troca de conhecimento, escreva o seu nome e o que quer apresentar”, deixa um espaço em branco para ser preenchido pelas pessoas ‘de fora’ que, de alguma maneira, querem apoiar a causa.
Três estudantes do Clóvis faziam a vigília. Ao ver o grupo de cerca de 30 estudantes da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), acompanhados por quatro professores e duas jornalistas, uma das ‘guardas’ soltou um grito alegre de espanto. Após alguns minutos de conversa, eles permitiram a nossa entrada. Explicamos o objetivo da visita, entregamos os donativos recolhidos pelo Grêmio Estudantil da EPSJV, e esta equipe de reportagem pediu permissão para divulgar o que veríamos naquela tarde. Com muito cuidado, um dos estudantes da ocupação perguntou sobre o objetivo da matéria e onde ela seria publicada.  Explicamos e fomos autorizados.

Do lado de dentro, em uma escola ampla, arborizada, pequenos aglomerados de jovens ocupavam o espaço. Na quadra, alguns jogavam basquete. Em baixo de uma árvore, outros dedilhavam o violão. Um grupo maior se reunia no pátio principal onde fomos conduzidos para uma roda de conversa. Era um momento reservado ao lazer, encaixado num dia ocupado com muito trabalho: varrer o pátio, lavar banheiros e vestiários, cozinhar, lavar a louça, enfim, cuidar da escola. Da escola deles.

“Como vocês devem saber, o ensino público do Rio de Janeiro está muito ruim. A nossa escola não é tão ruim, mas não usamos todos os espaços dela. Por isso o nosso primeiro objetivo é fazer com que os alunos tenham voz na escola. É muito chato chegar a uma aula e não poder falar, apenas ouvir”, introduziu o estudante J., de 16 anos. A crítica é ampla e sofisticada. Vai desde a dificuldade de diálogo em sala até a política de educação do estado, que prioriza o “currículo mínimo”.  “A escola só se preocupa em passar conteúdo para o Enem. O currículo mínimo que nós temos foca no Enem. Esta foi a pior ideia que já tiveram”, completa W., também de 16, abrindo o debate sobre o sistema de educação implantado no estado do Rio que obriga os professores a seguirem um currículo mínimo, cujo conteúdo, posteriormente, é cobrado no Saerj e Saerjinho, exames de larga escala. Muitos alunos reclamaram do modelo, o que demonstra a centralidade dessa questão na pauta de reivindicações dos estudantes. “Essas provas são muito caras. O dinheiro que gastam nelas poderia estar pagando os funcionários públicos, melhorando a infraestrutura da escola”, aponta N.

Os alunos citam também a meritocracia embutida no modelo adotado nas escolas do Rio e denunciam com veemência a desigualdade na distribuição dos recursos  com a premiação das escolas nas quais as notas nos exames são mais altas. “Aqui, como em todas as escolas da rede, a direção chega a oferecer ponto para quem comparecer para fazer o exame. Pode até tirar nota zero, mas ganha ponto em todas as matérias”, criticam.

“À noite já serão mais”

“A cada duas horas aparecem mais escolas ocupadas”, comemora um dos estudantes. “Agora já são 50!”, diz, para logo ser corrigido por outra jovem: “ Não, já são 51!”. “A noite já serão mais. A gente dorme e no outro dia acorda com mais escolas ocupadas”, comemora.
No final do corredor, um grupo animado joga ping-pong. Na roda de conversa, os estudantes da Escola Politécnica também falam um pouco da realidade de onde estudam e oferecem ajuda caso queiram montar um grêmio estudantil. “O nosso diretório tem 13 pessoas. A proposta é discutir como melhorar o espaço da educação, entender os direitos e as lutas. Porque nós também estamos aqui, mas infelizmente o muro da Fiocruz distancia a escola do território”, diz Y., da EPSJV.
De fato, do lá de lá do muro da Fiocruz, a falta de profissionais e valorização das disciplinas cobradas nos exames de larga escala em detrimento de outras é frequente e também virou uma das pautas da ocupação: “parece que só matemática e português que são fundamentais. Nós só temos um tempo de sociologia por semana. Queremos mais aulas de sociologia e filosofia”, defendem os estudantes do Clóvis.

Eles reclamam também da má administração do espaço público. Segundo os jovens, foi durante a ocupação que descobriram um laboratório de química e física com vários equipamentos fechado.  Foi também nestes sete dias em que a escola está sendo administrada por eles que foi dada uma finalidade a um vestiário grande, que, depois de uma limpeza pesada, está sendo utilizado pelos estudantes. Da mesma forma, os equipamentos de uma rádio inoperante estão cumprindo a função de passar informes e colocar no ar a trilha sonora da ocupação.

Ameaças

Os alunos contam como a ocupação tem incomodado aqueles que não aceitam a ideia de a escola estar nas mãos dos estudantes. Segundo eles, logo na assembleia que decidiu pela ocupação, a direção da escola tentou deslegitimá-los dizendo que eles não eram politizados o suficiente para fazer uma ocupação. “Tem gente dizendo que invadimos a escola que é nossa, que roubamos a comida, que também é nossa, que quebramos a escola quando, na verdade, está tudo mais bem cuidado do que antes. Dizem que expulsamos a direção e os professores, mas eles saíram por vontade própria”, fala J. Apesar disso, os jovens afirmam que há professores que os apoiam e, inclusive, estão indo à escola para continuarem ministrando conteúdos importantes para o Enem. Sobre os alunos que não concordam com a ocupação, eles têm uma resposta certeira: “Decidimos tudo em assembleia. Aqui não tem liderança, a assembleia é o líder. A assembleia decide os rumos da história”.

A ocupação sofreu na última terça-feira uma ameaça grave: três viaturas policiais foram até a escola e forçaram a entrada, inclusive com fuzis. Os policiais estariam atendendo a um chamado de que os alunos mantinham um jovem em cárcere privado. “Perguntamos cadê o mandato. E os policiais disseram: que mandato o quê? [imitando o tom marrento do policial]. Tá escondendo alguma coisa aí? E foram entrando”. De acordo com os jovens, os agentes não deram detalhes sobre quem estaria sendo supostamente mantido em cárcere privado. Além disso, os policiais  ‘ficharam’ o único estudante maior de idade que se encontrava na escola. Para eles, trata-se de uma retaliação. “Nós sabemos que somos protegidos pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] e que eles não deveriam ter feito isso. Agora esse colega tá fichado, com nome, documento, endereço tudo nas mãos deles. Não sabemos o que pode acontecer com ele”, preocupam-se.

Mas intimidação não é uma característica do grupo. Mesmo aqueles que não têm o apoio dos pais e responsáveis continuam na ocupação da forma como podem. “Minha tia tem medo e não me deixa dormir aqui, pede para chegar mais cedo em casa, mas eu sempre estico o máximo que posso. Chego aqui às 8h da manhã e só saio às 22h”, descreve N. Ela faz parte de uma das comissões que organizam a ocupação. Eles se dividem nas comissões de segurança, limpeza, cozinha, atividades culturais, comunicação e comissão geral.
Provocados a dizer o que essa experiência tem significado para eles, os jovens usam palavras e expressões como amadurecimento, “jamais imaginei que isso seria possível”, mais responsabilidade, “direito de falar o que não poderia”, conhecimento dos direitos, possibilidade de integração, conscientização, encontro. E eles deixam claro que não vão terceirizar as decisões sobre a ocupação. “Queremos apoio sim. Mas quem vier vai se submeter ao que a assembleia de estudantes decidir”.

A visita terminou com passeio guiado pelas dependências da escola. Visitamos um enorme auditório que, segundo eles, raríssimas vezes era usado, a sala onde se encontra a rádio, a cozinha, onde já estava sendo servido o café da tarde, com café, achocolatado e biscoitos.  “Ainda há mantimentos que encontramos aqui no refeitório, e já temos recebido doações também”, explicam.

Os alunos da EPSJV reforçam a ajuda para que eles se organizem em um grêmio pós ocupação para que as promessas sejam cumpridas. Os estudantes do Clóvis são taxativos:  “Esta ocupação só vai acabar quando todas as reivindicações forem atendidas. Acabou a luta só de professores e funcionários, agora os alunos também estão juntos”. W arremata: “acham que não temos capacidade nenhuma, que somos um bando de pretos pobres e favelados. Querem nos reduzir sempre. Mas não vamos permitir”.

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