Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Uma história dos direitos do trabalho

Garantias vigentes até hoje, como férias e 13º salário, são resultado de lutas e não concessões do Estado, dizem pesquisadores
Redação - EPSJV/Fiocruz | 12/07/2022 16h06 - Atualizado em 12/07/2022 16h23

O fim da estabilidade decenal na iniciativa privada foi apenas mais uma das muitas mudanças pelas quais a CLT, a Consolidação das Leis Trabalhistas, passou ao longo dos seus quase 80 anos de existência. O ‘golpe de misericórdia’ veio há exatos cinco anos, com a lei nº 13.467, da Reforma Trabalhista, que, sozinha, alterou cerca de cem dispositivos legais, a maioria oriundos da CLT. Para seus defensores, essas mudanças representam uma modernização necessária para adequar as relações de trabalho aos novos tempos. Para os críticos, elas significam um desmonte da proteção do trabalho que, em outros tempos, os trabalhadores conquistaram com muito esforço – embora isso nem sempre seja visível. “Todos os direitos trabalhistas e sociais, mesmo que sejam aparentemente apresentados como concessões, são resultados de pressão e lutas”, diz Murilo Pereira Neto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A própria CLT é um exemplo. Reconhecida como o grande pacote de direitos dos trabalhadores no país, ela é diretamente associada ao governo Getúlio Vargas. Para começar, vale lembrar que nem todos os seus 922 artigos eram novidade – como o próprio nome diz, essa legislação representou um esforço de consolidar leis e normas que já existiam, além de outras que foram criadas. Até porque, antes dela, havia leis que só valiam para algumas categorias profissionais. Pereira Neto também lembra que algumas conquistas foram sendo ampliadas, como é o caso do direito a férias, reconhecido em 1925, mas, inicialmente, com duração de apenas 15 dias. “Houve uma resistência grande do empresariado alegando que alguns trabalhadores não poderiam ser substituídos na linha de montagem e, se tivessem férias, a produção pararia”, conta o professor, que completa: “Era uma luta internacional pelo controle da intensidade da exploração da força de trabalho, uma disputa pelo tempo de trabalho que tem várias dimensões:  a jornada, o descanso semanal remunerado, o direito a férias remuneradas... Essa e outras lutas que foram realizadas na Primeira República depois são consolidadas na CLT”.

Como iniciativas concretas de Estado, de acordo com o historiador Demian Melo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi nos anos 1930, também sob o governo Vargas, que se “instaurou a legislação trabalhista no Brasil”. Mas, segundo ele, isso foi resultado de debates e pressões que vinham de muito antes. “Desde 1917 existem no Congresso Nacional iniciativas visando à discussão sobre direitos trabalhistas no Brasil”, diz, ressaltando que, não por acaso, naquele ano, em que aconteceu a Revolução Russa, “a luta de classes atingia um certo pico”. A lembrança é importante, na sua avaliação, para que não se perca a dimensão do quanto, mais do que a plataforma de um ou outro governante, a pauta dos direitos trabalhistas era parte do movimento internacional de trabalhadores, com reflexos por aqui. Como lembra Pereira Neto, em três anos seguidos, 1916, 1917 e 1918, o país viveu greves que tinham, entre as suas pautas, a definição da jornada de trabalho de oito horas.

Isso, no entanto, não quer dizer que não haja intencionalidade dos políticos de plantão. No caso do Varguismo, diz Melo, o investimento na defesa dos direitos do trabalho mostra a capacidade de perceber as prioridades das reivindicações naquele momento e contorná-las com uma estratégia que, nas suas palavras, consistia na “concessão de alguns direitos justamente para evitar o conflito social”. Na linguagem popular, seria algo como dar os anéis para não perder os dedos. “A jornada de trabalho de oito horas aparece ali. Mas a gente não pode esquecer que essa era uma agenda internacional da classe trabalhadora, que existia há muito tempo na Europa, nos Estados Unidos, nos países pioneiros na industrialização”, ilustra.

A própria sobrevivência da CLT, segundo o professor da UFF, é fruto de uma “forte atividade do movimento sindical grevista”, já que, em função da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, toda essa legislação foi suspensa pouco tempo depois da sua promulgação. A Constituição de 1946, que marca o período que veio após o fim do Estado Novo, a ditadura varguista, inclusive avançou no sentido de reconhecer o direito de greve, que não havia antes – apesar de elas serem realizadas mesmo assim. Também foi um feito da Carta de 1946 a extensão da estabilidade decenal para os trabalhadores rurais.

“Os direitos trabalhistas e sociais são resultado direto ou indireto de pressão de baixo, de organização e lutas que muitas vezes se diluem no tempo porque, não necessariamente têm uma sequência cronológica, e  nem sempre são promovidas pela mesma organização”
Murilo Pereira Neto

No Brasil, outro caso exemplar foi a conquista do 13º salário, que teve, inclusive, uma greve para chamar de sua. Aliás, mais de uma. A conquista veio em 1962. Mas em 1961, quando o Congresso demorou a votar a medida que tramitava por lá, os trabalhadores paralisaram por um dia para pressionar pela aprovação – um movimento que, segundo Pereira Neto, envolveu várias categorias e foi muito reprimido. A lei foi aprovada, mas a sanção presidencial não veio. O motivo, segundo Melo, eram resistências que vinham de empresários e políticos que protagonizavam a instabilidade política de um governo que, pouco tempo depois, em 1964, seria derrubado por um golpe empresarial-militar. O fato é que, no ano seguinte, em julho de 1962, outra greve acabou desempenhando uma dupla função: colocava os trabalhadores como personagens da crise política, se mobilizando para apoiar Jango na queda de braço da hora, ao mesmo tempo em que pressionava pela pauta de reivindicações sindicais que, naquele momento, destacava a formalização do 13º salário. A assinatura do presidente veio, enfim, no mesmo ano. “O percurso do chão de fábrica no mundo das leis ficou bem nítido nesse caso do 13º”, ressalta Pereira Neto, lembrando que já era um costume naquela época que os empregadores dessem aos funcionários o que se chamava de um “abono de natal”. O agrado, que era um reconhecimento pelo esforço ao longo do ano, poderia vir na forma de cesta de natal, panetone ou qualquer outra doação, assim como também poderia não vir. “A luta pelo 13º salário transformou a concessão em direito”, destaca o professor da Unifesp.

Depois vieram 21 anos de ditadura, que terminou abalada, entre outras coisas, por um novo ciclo de greves que surgiam do chamado novo sindicalismo. Um ataque mais feroz às legislações do trabalho veio logo em seguida, mas, para Pereira Neto, “tudo que ainda foi conquistado” depois tem relação com o ciclo de greves realizadas nesse período que, pela primeira vez, se estenderam pelo país inteiro, por diferentes categorias e estados, na cidade e no campo. Um exemplo importante, segundo ele, foi a luta desses movimentos contra a chamada Lei do Arrocho, que estabelecia o índice de reposição salarial sem possibilidade de negociação e sem preocupação com o aumento real, acima das perdas provocadas pela inflação. Um conjunto de direitos trabalhistas que viriam a ser garantidos pela Constituição de 1988, como o seguro desemprego, também são, na avaliação do professor da Unifesp, resultado desse momento. “Os direitos trabalhistas e sociais são resultado direto ou indireto de pressão de baixo, de organização e lutas que muitas vezes se diluem no tempo porque, não necessariamente têm uma sequência cronológica, e  nem sempre são promovidas pela mesma organização”, resume.

Leia mais

Fim da estabilidade na iniciativa privada, no passado, e descaracterização do FGTS, no presente, são importantes para pensar o desemprego e a precarização do trabalho