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Votação da PEC Emergencial é adiada em meio à polêmica em torno da desvinculação

Pressionado pela oposição e pela mobilização contra a proposta de extinção dos pisos da saúde e da educação, base governista faz acordo para adiar votação da PEC 186 e promete retirar a proposta de novo relatório que será apresentado na semana que vem
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 26/02/2021 13h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Os senadores Paulo Rocha e Marcio Bittar, relator da EC 186, conversam durante sessão deliberativa no plenário do Senado Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Diante da mobilização contrária à proposta de desvinculação dos pisos previstos pela Constituição para a saúde e a educação contida no relatório do senador Marcio Bittar (MDB-AC) à Proposta de Emenda Constitucional 186, a chamada PEC Emergencial, o plenário do Senado adiou para a semana que vem a votação, e a expectativa é de que um novo relatório seja apresentado na terça-feira (2), sem o trecho que trata da desvinculação.

A decisão foi anunciada na noite  da quinta-feira (25), data marcada para o início da votação no Senado, depois de um impasse entre base governista e oposição, que se utilizou de instrumentos regimentais para tentar barrar a votação do relatório.

Para evitar que o texto fosse retirado do Plenário e encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – como propunha um requerimento apresentado pelo senador Paulo Rocha (PT-PA) – o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), anunciou o adiamento da votação para a próxima quarta-feira (03).

Em entrevista ao jornal O Globo após a decisão, o senador Marcio Bittar afirmou que o novo relatório será apresentado sem a proposta da desvinculação. “Serei obrigado a fazer isso. O plenário não quis sequer discutir a questão da desvinculação”, admitiu.


Trajetória

A PEC Emergencial foi apresentada ainda em 2019 como parte do ‘Plano Mais Brasil’, conjunto de medidas do governo federal para cortar gastos públicos, promover o chamado “equilíbrio fiscal” e a retomada do crescimento econômico. O plano é constituído pelas propostas de emenda à Constituição 186 (PEC Emergencial) , 187 (PEC de Revisão dos Fundos Públicos) , e 188 (PEC do Pacto Federativo).

A PEC Emergencial tramitava na CCJ do Senado no início de 2020, mas com o agravamento da pandemia as comissões interromperam suas atividades e a matéria acabou não sendo votada.

No início de 2021, já sob a relatoria do senador Marcio Bittar, a PEC foi convertida em um veículo para prorrogar a vigência do auxílio emergencial, pago até dezembro do ano passado pelo governo. Com essa justificativa, o relatório da proposta passou a  prever uma série de contrapartidas fiscais, entre elas a desvinculação dos pisos da educação e da saúde – proposta originalmente prevista pela PEC do Pacto Federativo –, mas também mecanismos como o congelamento dos salários de servidores públicos e a não realização de concursos públicos.

Durante a discussão em plenário na quinta-feira, alguns senadores acusaram o governo de “chantagem” ao associar o pagamento do auxílio emergencial a uma reforma estrutural como a que previa o relatório.

“Se o governo tivesse interesse em aprovar o auxílio emergencial, a urgência estaria com uma PEC do auxílio emergencial em separado. Mas ele está exigindo do Congresso Nacional, chantageado, que vote contra a educação, contra a saúde, contra os servidores públicos”, criticou a senadora Zenaide Maia (Pros-RN).


Mobilização

Ao longo da semana, foram várias as entidades e movimentos sociais que protestaram contra a proposta de revogar dispositivos da Constituição Federal de 1988 que prevêem um investimento mínimo a ser feito por municípios, estados e União na educação e na saúde.

Em nota, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) lembrou que ao longo dos últimos 90 anos, apenas as constituições de 1937 e a de 1967 – períodos em que o país viveu ditaduras – não previam a destinação mínima da receita de impostos da União, estados e municípios na manutenção e desenvolvimento da educação.  “Diversos estudos já mostraram que, nos períodos em que não houve vinculação, os recursos da área foram reduzidos, o que evidencia que esta vinculação, longe de engessar orçamentos públicos, contribui para a proteção do direito à educação, ao fixar um piso mínimo que propicia recursos relativamente estáveis, abrigados de decisões políticas momentâneas de governos”, ressalta a nota.

Atualmente, a Constituição prevê a destinação de 25% da receita líquida de impostos para a educação por estados e municípios, e 18% por parte da União. Segundo cálculos da Fineduca, esse montante correspondeu a R$ 298,05 bilhões em 2019, em torno de 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB). “Somados outros recursos que financiam a educação brasileira, as aplicações em educação pública, como proporção do PIB, chegam a apenas 5%, ou seja, a metade da meta do Plano Nacional de Educação, de 10% para 2024. Diante deste cenário: por que abrir mão da vinculação se os recursos são insuficientes? A desvinculação poderá levar, efetivamente, a um nível ainda menor de recursos protegidos e à ampliação das desigualdades de capacidade de gasto entre os entes da Federação”, alertou a entidade.

Nalu Farenzena, presidente da Fineduca, afirma que o relatório da PEC Emergencial que foi assunto durante a semana tinha um caráter “perverso”. “A PEC acrescenta um parágrafo ao artigo 6º da Constituição, que nomeia diferentes áreas de direitos sociais, determinando que na efetivação dos direitos sociais, ou seja, na atuação do Estado para garantir direitos sociais, deve ser observado o equilíbrio fiscal intergeracional. O que isso significa? Em primeiro lugar, e na frente da garantia dos direitos sociais, está o equilíbrio fiscal. Então, se não tem recursos suficientes, se precisa economizar, então se garante os direitos sociais na medida desses recursos”, afirma Nalu. E completa: “É muito perverso. É garantir direitos com uma mão e tirar com outra em nome de uma concepção de equilíbrio e de responsabilidade fiscal que não é a concepção do Estado democrático de direito, e sim a concepção liberal de mercado”.


Novo Fundeb em xeque

Diretor da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara lembra ainda que, caso passasse, a desvinculação inviabilizaria a implementação de uma das principais conquistas dos últimos anos para o financiamento da educação básica, que foi a aprovação, em 2020, da Emenda Constitucional 108, que tornou permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

O novo Fundeb prevê o aumento da complementação da União dos atuais 10% para 23% em 2026. Segundo Cara, 10,5% desse montante seria calculado por meio de um mecanismo criado pela EC 108 chamado Valor Aluno/Ano Total (VAAT), que é calculado com base no quanto estados e municípios destinam para a educação. “O cálculo do VAAT depende da vinculação porque considera tudo aquilo que esses entes têm de recurso na área de educação. Se você não tem o recurso vinculado, como vai ser possível prever o quanto você vai ter para fazer o cálculo? Como resultado, a tendência concreta é que esse mecanismo do VAAT não tenha como ser calculado para distribuir, e aí pode entrar numa lógica de clientelismo”, explica.


Fragilização do SUS

Na área da saúde a proposta de desvinculação também causou polêmica. A previsão de um investimento mínimo por parte dos três entes federados foi uma conquista mais recente do que na educação, obtida por meio da aprovação da Emenda Constitucional 29, em 2000, no caso dos estados e municípios. Os municípios devem aplicar 15% das suas receitas com impostos, os estados 12%. Já o governo federal, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, do Teto de Gastos, deve aplicar a cada ano o valor aplicado no ano anterior, corrigido pela inflação. Na prática, a emenda representou a desvinculação dos recursos da União com saúde. 

Em nota, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) se posicionou contra a desvinculação. “Qualquer proposta que vise a retirar a garantia de um financiamento estável irá afetar diretamente a oferta dos serviços, sejam próprios ou de prestadores do SUS. A desvinculação de receitas destinadas à execução das políticas essenciais para o desenvolvimento social irá fragilizar ainda mais o escasso financiamento do SUS”, afirmou o conselho, lembrando que, mesmo com a vinculação, o subfinanciamento tem sido o “ponto que mais fragiliza o SUS”.

Segundo o Conasems, as três esferas de governo aplicam em ações e serviços de saúde R$ 1.355 por habitante ao ano, ou R$ 3,70 por dia – valor significativamente menor do que é gasto com planos de saúde que, como lembrou o Conselho, atendem a apenas um quarto da população brasileira, que nem por isso deixa de usar o SUS.

“Comparativamente planos privados de saúde, beneficiados por isenções fiscais e empréstimos a juros subsidiados, destinam a seus beneficiários o equivalente a R$ 4.066,88 per capita/ano o que corresponde a R$ 11,14 por pessoa/dia. Isso, sem a garantia plena dos diferentes níveis de complexidade da atenção à saúde, e ainda consideram que os mesmos cidadãos recebem todas as ações ofertadas pelo SUS, principalmente aquelas não cobertas pelos planos”, destacou a nota.


Cláusula pétrea

A procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Élida Graziane argumenta que a desvinculação é uma proposta inconstitucional, já que os pisos para a educação e a saúde constituem cláusulas pétreas da Constituição de 1988.

“Nós temos lá parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição quatro grandes eixos de cláusulas pétreas. São eles: o voto secreto, direto, universal, periódico, livre; a separação de poderes; a forma federativa de Estado; e os direitos e garantias individuais. Mas não basta colocar na Constituição esses quatro eixos de cláusulas pétreas imutáveis, que são o núcleo de identidade da Constituição, se eu não resguardar custeio para cada um deles”, defende. E completa: “Mas ninguém cogita alterar os fundos partidário e eleitoral, que são o custeio resguardado pela Constituição ao voto, por exemplo. Pelo contrário, eles foram ampliados. Ninguém cogita alterar o Fundo de Participação dos Estados [FPE] e dos Municípios [FPM], que custeiam a repartição federativa. Então vai fazer ajuste apenas e tão somente na proteção fiscal aos dois principais direitos sociais que existem na nossa Constituição? Não é cabível”, critica.

Para Élida, condicionar a prorrogação do pagamento do auxílio emergencial à revogação dos dispositivos que preveem piso mínimo  é “extorsão mediante sequestro”. “O que o governo está fazendo com essa PEC Emergencial é extorquindo os pisos em saúde e educação mediante sequestro do auxílio emergencial. Literalmente tirando nossa liberdade de mínima equidade, mínima proteção dos direitos fundamentais mediante essa promessa de que só assim é possível pagar o auxílio emergencial. O que é falso”, destaca a procuradora e professora da FGV, que advoga a urgência de uma revisão do teto de gastos, aprovado por meio de Emenda Constitucional 95.

“O teto de gastos precisa ser revisto não só para o auxílio emergencial, mas também para continuar a dar sustentação fiscal para o SUS no meio da pandemia. Não tem dinheiro para manter os leitos de UTI. O Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e Conasems já estão anunciando que foram desabilitados pelo Ministério da Saúde desde o ano passado mais de 15 mil leitos que foram abertos no auge da pandemia. É uma falácia fazer um debate de ajuste fiscal num momento em que o mundo inteiro, inclusive o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional, o próprio Banco Central norte-americano; todos  falam na necessidade da atuação estatal na política fiscal”, argumenta.