Começou com a autorização para que as empresas terceirizem todos os serviços, indiscriminadamente. E agora, se o Senado confirmar o texto que acaba de ser aprovado na Câmara dos Deputados, o pacote de desmonte das garantias mínimas do trabalho no Brasil estará completo. A análise é de Ruy Braga, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, em entrevista ao Portal EPSJV no final de março deste ano. Na ocasião, ele já alertava que faltavam duas medidas para que a demanda do empresariado em relação aos direitos trabalhistas ser plenamente atendida: a prevalência do negociado sobre o legislado e a legalização da jornada flexível. Desde a madrugada de 26 para 27 de abril, quando a Câmara votou o Projeto de Lei 6787/2016, de autoria do Executivo, que institui uma nova reforma trabalhista, não falta mais nada. “A reforma trabalhista completa esse serviço, completa o trabalho sujo de eliminar qualquer tipo de promessa de cidadania salarial, de participação do trabalhador na vida político-econômica da sociedade brasileira, de proteção ao trabalho, de representação sindical”, definiu. E completou: “O que o governo quer é eliminar totalmente a CLT”.
Segundo o texto aprovado na Câmara – e que agora segue para o Senado -, patrão e empregado poderão “negociar”, por exemplo, a ampliação da jornada de trabalho para até 12 horas diárias ou 220 horas mensais e a redução do intervalo de almoço ou equivalente. Complementando essa flexibilização, o PL também autoriza o chamado trabalho intermitente, ou jornada flexível, que permite que as empresas paguem os empregados apenas por período trabalhado – exceção é feita apenas à categoria dos aeronautas. Alguns direitos e benefícios, como o fundo de garantia e o 13º salário, no entanto, continuam não podendo ser objeto de negociação. “O substitutivo admite que a negociação coletiva, instrumento concebido para promover a pacificação coletiva das relações de trabalho e a melhoria das condições de trabalho, seja utilizado para o rebaixamento ou supressão de diversos direitos trabalhistas”, afirma uma nota técnica do Ministério Público do Trabalho que pede a rejeição do projeto no Congresso.
Na verdade, o texto aprovado modifica completamente o caráter do que se reconhece no Brasil como negociação coletiva, enfraquecendo também o papel dos sindicatos. “Haverá um colapso da estrutura sindical brasileira tal qual nós a conhecemos hoje. Porque hoje, pela CLT, o sindicato só pode negociar benefícios para os trabalhadores, não pode negociar direitos - a despeito de sabermos que na prática isso acontece. O sindicato às vezes está negociando em nome de uma base de dezenas de milhares de trabalhadores quando, na verdade, são poucas centenas que participam do sindicato. Quando esse sindicato começar a negociar a perda de direitos com as empresas nos acordos, vai haver um problema grave de legitimidade do sindicalismo”, anunciava Ruy Braga. Mas o texto aprovado mostra que o problema vai além. Ele prevê, por exemplo, o estabelecimento de “acordos individuais” dos trabalhadores não só sobre a jornada como também sobre banco de horas e parcelamento de férias. Na mesma linha, estabelece que os representantes dos trabalhadores nas empresas não precisam mais ser sindicalizados. Além disso, desobriga que a homologação da rescisão contratual seja feita nos sindicatos.
O caminho da justiça para a reivindicação dos seus direitos também fica mais difícil para o trabalhador se a reforma for aprovada. “O projeto torna mais rigorosos os pressupostos para uma ação trabalhista, limita o poder de tribunais de interpretarem a lei e onera o empregado que ingressar com ação por má fé”, explica o próprio site da Câmara, que completa: “Em caso de criação e alteração de súmulas nos tribunais, por exemplo, passa a ser exigida a aprovação de ao menos dois terços dos ministros do Tribunal Superior do Trabalho. Além disso, a matéria tem que ter sido decidida de forma idêntica por unanimidade em pelo menos dois terços das turmas, em pelo menos dez sessões diferentes”. Para o Ministério Público do Trabalho, trata-se de uma restrição de acesso à justiça: “Ao invés de criar instrumentos para reduzir o nível de descumprimento das normas trabalhistas e as lesões que geram aos direitos dos trabalhadores, como medida para reduzir a inflação de processos trabalhistas apontada no Relatório, o projeto dificulta o acesso à Justiça do Trabalho para postular a reparação das violações – basilares diga-se, posto que referentes, em sua grande parte, ao pagamento de vernas rescisórias – consagrando uma clara inversão de valores, pois não se preocupa em impedir a própria ocorrência do dano, mas, tão-só, a sua reparação”, diz a nota técnica, que é assinada pelo Procurador-Geral do Trabalho, Ronado Fleury.
A quem interessa?
A maioria dos pontos da reforma trabalhista aprovada pela Câmara eram do grande empresariado brasileiro, expressa em documentos que foram apresentados ao presidente Michel Temer mesmo antes da confirmação do impeachment. O documento ‘Ponte para o futuro’, um plano de governo antecipado do PMDB, também já previa boa parte dessas mudanças. Agora, reportagem do The Intercept publicada no dia da votação do texto mostra que um terço das emendas de parlamentares apresentadas ao PL original foram produzidas em computadores de representantes das confederações nacionais da Indústria, do Transporte, das Instituições Financeiras e da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística.