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PEC 241 ou o fim do SUS e da escola pública

Pesquisadores explicam por que o novo regime fiscal proposto pelo governo significa a perda de bilhões de recursos para a saúde e a educação públicas
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 22/09/2016 14h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Leitos de hospitais fechados, aumento das filas para tratamentos, exames e internações, falta de vacinas, deterioração de unidade e postos de saúde, escolas superlotadas, falta de professores, de creches, de merenda, de vagas nas universidades. Este quadro poderia ser uma simples previsão pessimista considerando as dificuldades que a população brasileira já enfrenta hoje na educação e na saúde públicas, mas, segundo diversos pesquisadores, não se trata de um mero exercício de imaginação, mas sim da descrição objetiva do que vai acontecer caso a PEC 241/2016, a chamada PEC dos gastos, enviada pelo governo Temer ao Congresso, seja aprovada. O pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea), Carlos Ocké Reis, é taxativo: “A PEC significa uma redução tão grande de recursos que inviabiliza a manutenção do SUS. Se hoje em dia tem pouco [recurso], amanhã não vai ter nada”. O professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Luiz Araújo, concorda: “Se eu já tenho uma creche precária, ou se tenho um serviço precário de saúde, o máximo que eu vou conseguir é atualizar os preços dessa precariedade. Significa o congelamento dos serviços atuais. Então, a expansão para cobrir o crescimento da população a gente não vai ter”, reforça.

Mas por que isso vai acontecer? A PEC 241 estabelece um novo regime fiscal no país e define o valor máximo que o governo pode gastar com despesas primárias, que incluem a saúde e a educação, nos próximos 20 anos. A regra atrela a despesa anual da União ao que foi gasto no ano anterior mais a correção da inflação. O objetivo, segundo o governo, é equilibrar as contas públicas para que deixem de apresentar déficits. Tanto na saúde quanto na educação, atualmente existem regras que garantem percentuais mínimos que o governo deve aplicar nestas áreas. No caso da saúde, a Emenda Constitucional 86 (EC 86), aprovada no ano passado, atualizou esta aplicação e definiu um gasto de 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) em 2016, percentual que progressivamente deveria chegar a 15% em 2020. Já na educação, o governo federal é obrigado pelo artigo 212 da Constituição a investir 18% da arrecadação de impostos. Para 2017, por exemplo, a PEC significa o congelamento desses percentuais ao que foi investido em 2016 mais a correção da inflação. Em 2018, o cálculo do que deve ser aplicado seria feito pelas despesas do ano anterior, mais a inflação, e assim sucessivamente pelos próximos longos 20 anos, com previsão de revisão pelo Congresso e mudança da regra apenas daqui a dez anos. Na prática, isso significa o fim das vinculações constitucionais para as duas áreas. “O fim da vinculação deixa a cargo do Executivo o montante que vai ser aplicado. Ou seja, passa a não ser mais uma política de Estado, se torna uma política de governo”, explica Carlos Ocké Reis.

O governo federal tem feito constantes afirmações de que, mesmo com a aprovação da PEC, não haverá diminuição dos recursos para a saúde e a educação, o que, segundo o economista, não é possível garantir. “Isso não significa que o governo não pode aplicar mais. Ele pode. Mas a gente passa a ter um teto geral de despesas primárias. Dificilmente um aumento de recursos que pode ocorrer na saúde, por exemplo, não vai prejudicar outras áreas, então são recursos que vão estar em intensa disputa entre as áreas setoriais”, explica. O governo tem argumentado que o Congresso terá liberdade para alocar mais recursos na saúde e na educação, desde que observado o teto geral, o que significa bancar a diminuição de recursos em outras áreas. A análise do perfil dos deputados e senadores eleitos em 2014 não permite, entretanto, uma projeção otimista sobre o quanto eles batalhariam pela manutenção do SUS, por exemplo. Um estudo dos pesquisadores Ligia Bahia e Mario Scheffer, professores do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMP-FM/USP), respectivamente, aponta para o crescimento de parlamentares eleitos com doações de empresas de planos privados de saúde. “Deputados federais e senadores eleitos com apoio dos planos de saúde tendem a integrar bancadas mobilizadas para apresentar projetos de lei, relatórios, pareceres, requerimentos e votações em defesa dos interesses dos planos de saúde. Também atuam para vetar proposituras que contrariam esses mesmos interesses ou em manifestações de descrédito dirigidas à saúde pública”, alertam os pesquisadores.

Dois anos e meio de zero investimento na saúde

Para se ter a dimensão do impacto da PEC 241 no financiamento do SUS, Carlos Ocké Reis calculou o quanto se teria perdido caso a mesma regra prevista na PEC tivesse sido aplicada entre 2003 e 2015:  o resultado teria sido a perda de  R$ 257 bilhões.  Para deixar ainda mais claro o quanto isso significa, o economista compara esse valor ao investimento público anual do SUS que, em 2015, girou em torno de R$ 100 bilhões. “À luz do que foi gasto em 2015 em ações e serviços públicos de saúde, nós perderíamos dois anos e meio de aplicação. É como se durante dois anos e meio nós deixássemos de aplicar recursos no SUS”, reitera.

Em diversas reportagens nas últimas semanas, governo e parlamentares afirmaram a intenção e as tratativas para que a PEC seja votada até o final de outubro. Mas caso isso não aconteça de forma que o novo regime fiscal possa vigorar já em 2017, o governo tem um plano para tomar um atalho via Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), como alerta o consultor da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Funcia. “O governo encaminhou um substitutivo ao projeto de LDO para 2017 mudando tanto o texto do anexo de metas fiscais quanto do corpo da lei onde eles estabelecem o teto de despesas para 2017. Não é exatamente a mesma coisa porque, se a PEC não for aprovada, continuam valendo a EC 86, que estabelece os mínimos para a saúde, e o artigo 212 da Constituição, que define os percentuais para a educação, mas o substitutivo conseguiu estabelecer o teto geral de despesas do governo”, explica. Funcia detalha que se os mínimos para a saúde e a educação superarem a metodologia de cálculo para o teto geral das despesas, vão-se cortar gastos de outras áreas para se garantir esse mínimo. O problema é que isso também inviabiliza o crescimento de recursos para as duas áreas e, na saúde, significa um retrocesso em relação aos gastos atuais, que há pelo menos dois anos, vinham sendo um pouco maiores do que o mínimo previsto (de 13,2% da RCL). “Os recursos que são de aplicação obrigatória pela EC 86 já são insuficientes para garantir os gastos com saúde no atual patamar que estão. Em 2014, se gastou 14,3% da RCL, em 2015, 14,8%, e neste ano, muito provavelmente, vai se passar de 15%. Então, se você tiver uma LDO que estabelece o teto de despesas e ainda um dispositivo constitucional que estabelece o mínimo, o que o governo vai fazer para a saúde é não dar nada além do mínimo”, salienta. O professor Luiz Araújo complementa que se trata de uma manobra inconstitucional. “Não se pode flexibilizar a vinculação constitucional por meio da Lei de diretrizes Orçamentárias. E é uma clara tentativa de aplicar uma medida restritiva do governo, importante para viabilizar o superávit primário e mostrar eficiência para os verdadeiros patrocinadores do golpe, de forma a criar um fato consumado e um ambiente favorável para a aprovação da PEC 241 de 2016”, critica em seu blog.

O texto-base do substitutivo da LDO já foi aprovado pelo Congresso e limita o teto de gastos de 2017 à inflação de 2016, exatamente como quer a PEC 241. Mas os parlamentares não votaram ainda as emendas ao projeto da LDO, o que, para 2017, enquanto não for aprovada a PEC 241, pode garantir um certo alívio ao SUS. Algumas delas, como explica Francisco Funcia, tentam melhorar os recursos para a saúde estabelecendo uma regra que garanta os percentuais aplicados em 2016 mais a correção da inflação, o que significaria mais do que os 13,2% da RCL. “Já temos disponíveis para a saúde neste ano R$ 106,9 bilhões. É claro que este valor foi definido por um decreto e pode ser mudado, mas a saúde tem a garantia neste momento de que pode empenhar esses R$ 106,9 bilhões em ações e serviços públicos de saúde. E então, corrigindo isso pela inflação, teríamos para o ano que vem algo em torno de R$ 113 bilhões”, calcula. Ou seja, cerca de R$ 22 bilhões a mais do que seria aplicado caso a PEC 241 seja aprovada ainda neste ano. Em reportagem publicada no jornal O Globo, desta quinta-feira, o relator da matéria no Congresso, deputado Darcício Perondi (PMDB-RJ), afirma que vai apresentar seu parecer sobre a PEC na próxima segunda-feira (26/09) e que pode aceitar algumas emendas vindas da base aliada. Entre elas, a reportagem cita uma proposta do deputado Marcus Pestana (PSDB-MG) que fixa o percentual a ser aplicado em saúde a partir do que foi gasto em 2015, o que representaria um pouco mais de recursos para o setor.

Para o consultor do Conselho Nacional de Saúde, a PEC 241 é perversa também porque não leva em conta o crescimento da população e da demanda pelos serviços de saúde. “Vão congelar os recursos num patamar mais baixo ainda do que o que está sendo aplicado hoje, como se a demanda pela saúde fosse continuar estável pelos próximos 20 anos. Só se não nascesse mais gente poderia se imaginar que esses valores seriam suficientes, mas mesmo assim ainda teríamos o problema dos equipamentos novos, dos medicamentos mais complexos que têm patente, então não dá para transformar o setor saúde na mesma lógica do setor de manutenção de prédios, em que você vai comprar cimentos e parafusos. A saúde é uma despesa pública que lida com a necessidade da população e que na Constituição diz que é de relevância pública”, argumenta.

PNE condenado

Um estudo feito pelo consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Marcos Rogério Mendlovitz, mostra que a aplicação do mecanismo da PEC 241 resultará em uma aplicação menor do que o estabelecido pela Constituição na educação já a partir de 2018. Em 2025, o montante perdido em relação ao percentual mínimo em vigor atualmente chegaria a mais de R$ 13 bilhões.

Mas o cenário é ainda pior. O professor da UnB Luiz Araújo explica que, com a regra do novo regime fiscal, a perda de recursos para a educação vai se tornar maior à medida que o país volte a crescer. “Neste momento, a inflação e os impostos estão batendo. Porém, quando o país sair dessa situação, e dificilmente a crise vai durar tanto tempo, vai haver um aumento da receita, e esse aumento da receita não vai ser distribuído para a educação. Como a motivação dessa mudança [promovida pela PEC] é garantir o superávit primário, estamos diante de uma monumental transferência de recursos da área social para o pagamento da dívida pública. Todo benefício do crescimento econômico do país vai ser usado para pagar dívida e não para pagar dívida social, durante 20 anos”, critica. Um exemplo disso é o cálculo feito por Marcos Mendlovitz com a aplicação da mesma regra da PEC em exercícios anteriores. Quando se calcula os percentuais a serem empregados na educação entre 2010 e 2016 caso a PEC estivesse em vigor, apenas neste último ano, em um cenário de crise, no qual a arrecadação do estado caiu muito, os recursos atingiriam o piso constitucional de 18%. Nos anos anteriores a 2016 os percentuais a serem aplicados seriam menores do que os 18% e significariam perdas para o setor que variam entre quatro e cinco bilhões.

Luiz Araújo lembra também que a PEC vai impedir a execução do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado há dois anos com metas que deveriam ser cumpridas até 2024. “O PNE é um plano expansionista, aumenta as vagas em todas as áreas. Na prática ele está sendo revogado, porque sem poder expandir além do que já está sendo feito, fica congelado na oferta que se tem hoje. A gente não vai pagar a dívida social que nós acabamos de aprovar numa lei nacional que deveríamos pagar, com a expansão da educação infantil, do ensino médio, do ensino superior. Isso vai estar inviabilizado”, aponta, lembrando ainda que a PEC vai incidir sobre o mercado de trabalho para os profissionais da educação.

Disputa do fundo público

A PEC 241, associada a outras iniciativas já anunciadas na imprensa pelo governo federal, como as parcerias público-privadas em diversas áreas – como nas creches – e a aposta em planos de saúde populares como solução para os problemas sanitários, como anunciado recentemente pelo Ministro da Saúde, pavimenta, na visão dos pesquisadores, ainda mais o caminho para o fortalecimento do setor privado. “Se eu congelo os gastos só corrigindo pela inflação e ao mesmo tempo eu tenho uma pressão da sociedade, isso vai induzir que se encontrem formas mais precárias de prestar o serviço para poder diminuir a pressão que a sociedade está fazendo. Quanto mais a gente pressionar, mais os governos vão tentar respostas. E aí tem um monte de possibilidades criativas de privatizar, digamos assim, que já estão sendo feitas, como a entrega da gestão para as Organizações Sociais (OSs)”, alerta Luiz Araújo. Carlos Ocké Reis concorda: “Estamos diante do fortalecimento dessa tendência que, de certa maneira, já estava em curso, de privatização do sistema de saúde brasileiro, portanto, de aumento dos gastos das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde, e, simultaneamente, o desmonte do SUS. Só que agora é isso mesmo, mesmo”, reforça.

Francisco Funcia observa ainda que na saúde a privatização não só inviabiliza o SUS, como dificulta qualquer atendimento pela ineficiência do setor privado. “Fala-se muito que a população vai poder usar a rede dos planos de saúde. Mas que rede? O plano de saúde não tem rede. O serviço público vai encarecer porque vai ter mais encaminhamento sem qualquer compromisso do ponto de vista da racionalidade do sistema para fazer exames, internações, tratamentos mais especializados, o que vai agravar ainda mais o financiamento do SUS, ao mesmo tempo em que se abre um baita filão para o setor privado”, afirma. Pelos dados apresentados pelo pesquisador, cada usuário do SUS custa atualmente cerca de três reais por dia, o que equivale a aproximadamente R$ 1.100 por pessoa ao ano. “Com R$ 1.100 por pessoa, o SUS dá conta de internações, transplantes, vacinas... e ainda dizem que o problema é de má gestão. Duvido que o setor privado faça melhor”, ironiza.

Comentários

Se o governo quer fazer um ajuste fiscal e cortar gastos, porque não começa acabando com as aposentadorias diferenciadas de políticos e acessores que recebem salários e beneficios incompatíveis com a realidade brasileira ????

Nos brasileiros estamos diante de um movimento anti-democrático, onde o governo quer impor regras a população sem discutir com ela e explicar suas reais intenções de implantar no país uma política neoliberal onde as camadas mais vulneraveis da população terão seus direitos de acesso a saúde, educação, e ascensão social eliminados para beneficiar somente os financiadorse da Divida Pública.