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Público e privado na gestão da saúde

Diversos modelos para gerir o SUS têm surgido nos últimos anos. Quais serão suas implicações?
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 22/02/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Experimente perguntar por aí quais são os principais problemas do Sistema Único de Saúde (SUS). Provavelmente, dois itens aparecerão em massa nas respostas: financiamento insuficiente e má gestão. A falta de recursos financeiros para o Sistema é alvo de debates desde a sua criação e você os vem acompanhando em diversos números da revista Poli (edições 1, 4, 5, 9, 15).

No caso da gestão, as discussões também são antigas. Desde os anos 1990 têm sido buscadas alternativas ao modelo proposto na Constituição Federal de 1988 – segundo a qual a saúde é um dever do Estado e as instituições privadas podem participar do SUS de forma complementar, tendo como preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos –, sob a justificativa de que é necessário dar agilidade e flexibilidade a uma gestão considerada morosa e pouco eficiente.

Assim, surgiram e se desenvolveram modelos e regimes de que você certamente já ouviu falar muito, como as Organizações Sociais (OSs), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as parcerias público-privadas (PPPs) e as Fundações Públicas de Direito Privado, que ficaram conhecidas simplesmente como Fundações Estatais.

Mais recentemente, em dezembro do ano passado, houve ainda uma surpresa: no último dia de seu mandato, o então presidente Lula publicou, com o ministro da Educação Fernando Haddad, uma Medida Provisória (MP 520) autorizando a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), voltada para a gestão de hospitais universitários.

Manifestações contrárias a propostas como essas aparecem por todo o país: em diversos estados há fóruns de saúde que têm se articulado, formando a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. A principal crítica é a de que essas medidas são de cunho privatizante, embora haja quem discorde. Nesta reportagem, você vai entender o que são esses modelos, o que eles implicam e quais são os principais pontos de discussão em cada um deles.


1988: retrocesso?

Agência Brasil

A possibilidade de administração da ‘coisa pública’ pelo direito privado é antiga na nossa legislação. O decreto-lei 200/1967, que dispõe sobre a administração federal no Brasil, divide essa administração em direta – constituída pelos serviços integrados na estrutura da Presidência da República e dos ministérios – e indireta – que compreende as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e ainda as fundações públicas, que, segundo esse documento, são dotadas de personalidade jurídica de direito privado.

A partir da Constituição de 1988, muitos juristas passaram a entender que as fundações públicas deveriam passar a ser trabalhadas apenas como de direito público, embora essa nunca tenha sido uma unanimidade. A lei nº 8.080, que regulamenta o SUS, prevê ainda que a participação complementar das entidades privadas só deve ser admitida quando as disponibilidades do SUS não forem suficientes para garantir a cobertura populacional – e essa participação complementar deve ser formalizada respeitando as normas de direito público, o que inclui, por exemplo, os processos de licitação.

Mas foi logo na década de 1990, época do avanço do neoliberalismo no Brasil, que começaram a ser pensadas estratégias menos centradas no poder público para gerir áreas como saúde e educação, sob a justificativa de que a legislação “engessava” o aparelho estatal.

Nesse cenário, começou a ser gestado o Plano Diretor da Reforma do Estado, coordenado por Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro de Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi esse Plano que citou as OSs, pela primeira vez, como uma saída para melhorar a gestão.

O documento, de 1995, trazia uma noção de Estado bem diferente daquela concebida na nossa Constituição: um dos itens do Plano se chama justamente ‘O retrocesso de 1988’.  O texto aponta, entre os problemas trazidos pela Carta, a “estabilidade rígida” dos servidores civis, o aumento dos gastos com pessoal e a retirada da flexibilidade operacional da administração indireta. Assim, “como resultado do retrocesso burocrático de 1988 houve um encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e serviços, e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”, diz o diagnóstico do Plano.


Publicização e privatização

Algumas questões foram pontuadas no documento: o Estado deveria permanecer realizando as mesmas atividades ou algumas poderiam ser eliminadas? Havia atividades que poderiam ser transferidas da União para estados ou municípios, ou ainda para o setor privado ou para o setor público não-estatal? O Estado precisava realmente do contingente de funcionários de que dispunha?

As respostas a essas questões, elaboradas ao longo do Plano, apontavam para a estruturação de um Estado responsável não mais por executar políticas públicas, mas apenas por financiá-las e coordená-las. A consequência disso, segundo a professora Maria Inês Souza Bravo, da Escola de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foi o enxugamento do Estado brasileiro. “Fizemos nossa reforma no fim dos anos 1980, tentando construir um Estado de direito, na contramão do que estava acontecendo no cenário internacional. As medidas que vieram a seguir são o resultado de propostas mais conservadoras e, consequentemente, surgiram novos modelos de gestão”, afirma.

O Plano Diretor distinguiu, no aparelho do Estado, quatro setores: o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado. E, para cada um desses setores, o controle do Estado deveria variar.

O primeiro – o núcleo estratégico – corresponde aos poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Público, além do Presidente da República, os ministros, seus auxiliares e assessores diretos. Trata-se do “setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento”.

As atividades exclusivas, por sua vez, são serviços “que só o Estado pode realizar”, porque se exerce o poder de regulamentação, fiscalização e fomentação. É aí que entram a polícia, a cobrança de impostos, a previdência social básica e o serviço de trânsito. De acordo com o Plano, nesses dois primeiros setores, é necessário que o Estado tenha controle absoluto.

No entanto, não é essa a indicação para os dois últimos. Nos chamados serviços “não exclusivos”, em que se encaixam a saúde e a educação, “o Estado atua simultaneamente a organizações públicas não-estatais e privadas” e, segundo o Plano, a propriedade ideal para esses serviços é a pública não-estatal: “As organizações nesse setor gozam de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possível dentro do aparelho do Estado”. É para esses serviços que o Plano propõe a criação das OSs, numa estratégia definida como ‘publicização’, que seria a transferência desses serviços para o setor público não-estatal. Assim, o objetivo era transformar as “fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária”.

Por fim, o setor de produção de bens e serviços para o mercado corresponde à área de atuação das empresas, como o fornecimento de água e luz. Nesse caso, a orientação também era clara: “Dar continuidade ao processo de privatização através do Conselho de Desestatização”.

Grandes marcos

Para Geandro Pinheiro, assessor da vice-direção de desenvolvimento institucional da EPSJV/Fiocruz, o primeiro grande marco deixado pelo Plano Diretor foi decorrente das próprias proposições do documento, que aponta um Estado fortemente atuante apenas em determinadas áreas. “Tudo o que não foi considerado estratégico ou exclusivo passou a poder ser assumido pela ‘sociedade’ – e a ‘sociedade’ passa então a ser um vernáculo usado para disfarçar o próprio mercado”, diz Geandro.

A partir daí, ocorreram algumas mudanças importantes, como a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (a lei complementar 101/2000); a lei 9.637/98, que instituiu as OSs, os contratos de gestão e o programa nacional de publicização; e a lei federal 9.790/99, que instituiu as Oscips.

Geandro considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal está na origem de muitas questões na discussão de modelos jurídicos hoje. Isso porque uma das definições dessa lei diz respeito ao percentual da receita corrente líquida que pode ser gasto por cada ente federado com pessoal: para a União, são 50%, enquanto para estados e municípios são 60%. “Para se adequar à lei, foram criadas verdadeiras cartilhas explicando como municípios, estados e a União deveriam atuar para atingir aquele percentual. E muitas dessas saídas estavam vinculadas à terceirização”, explica. A criação de OSs e Oscips tem tudo a ver com esse processo, justamente porque permitem contratar pessoal fora da folha direta de pagamento.


Trabalhadores precarizados e ausência de licitações

De acordo com a nossa legislação, o Poder Executivo pode qualificar como OSs “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”. Essas organizações devem firmar, com o Poder Público, um “contrato de gestão”, para a “formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades”. É esse contrato que discrimina as atribuições, as responsabilidades e as obrigações de cada uma das partes: ele deve conter metas a serem atingidas e prazos de execução.

Outra característica importante diz respeito à extinção de órgãos públicos, como parte do Plano Nacional de Publicização: todos os órgãos responsáveis por exercer as atividades listadas ali em cima deveriam ser extintos, enquanto essas atividades deveriam ser absorvidas pelas OSs. Também ficou prevista a cessão de servidores públicos dos órgãos ou entidades extintos para as organizações.

No mesmo ano em que foi aprovada a lei das OSs, deu-se entrada na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 1.923/98, justamente para contestar essas características como a cessão de servidores públicos para instâncias privadas, método de qualificação das OSs e sua aplicação nas áreas de saúde e educação.

As Oscips também são pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos, mas estão excluídas do rol de entidades que podem ser qualificadas como Oscips os sindicatos, as instituições religiosas e cooperativas, entre outras. A legislação também define quais devem ser as finalidades das entidades para que elas possam ser qualificadas como Oscips – trata-se de objetivos como a defesa do meio ambiente, a promoção da assistência social, do voluntariado, do desenvolvimento econômico, dos direitos humanos e da cultura, por exemplo.

Em vez de contrato de gestão, as Oscips fazem, com o Poder Público, um ‘termo de parceria’, destinado a formar um vínculo de cooperação entre as partes. Assim como o contrato das OSs, esse termo discrimina os direitos, as responsabilidades e as obrigações das partes. No entanto, diferentemente do que ocorre com as OSs, no caso das Oscips não há a prerrogativa de que devam ser extintos órgãos ou entidades administrativas já existentes.

Tanto as OSs quanto as Oscips têm autonomia para definir, em seus regulamentos, os procedimentos que irão adotar para a contratação de obras, serviços e compras, além de seus empregados. Assim, elas podem contratar trabalhadores da maneira que desejarem – como prestadores de serviços ou por meio de cooperativas, por exemplo – e estão livres de fazer licitações para a aquisição de bens e serviços.

Além disso, segundo Conceição Aparecida Rezende, especialista em Saúde Pública e em Direito Sanitário, essas organizações não prestam contas a órgãos de controle internos e externos de administração pública. No artigo ‘Modelo de Gestão do SUS e as Ameaças do Projeto Neoliberal’, ela escreve também que “o que ocorreu, de fato, com as terceirizações previstas na Lei das OSs foi a transferência, pelo Estado, de suas unidades hospitalares, prédios, móveis, equipamentos, recursos públicos e, muitas vezes, pessoal para a iniciativa privada”.

No fim das contas, contratar OSs e Oscips pode sair caro para os entes federados, mas faz com que eles consigam se adequar à lei de responsabilidade fiscal. “É um arremedo. Muitas vezes, sai muito mais caro do que pagar trabalhadores na folha direta de salário, e isso faz bastante diferença no orçamento global. No entanto, esse gasto, que de fato é despesa com força de trabalho, não é enquadrado assim na lei. Muitos municípios gastavam 95% de suas receitas com pessoal e passaram a se adequar à lei fazendo planos de demissão voluntária e contratação por terceirização, por cooperativas, por OS”, conta Geandro.

Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em saúde pública Ligia Bahia, o exemplo mais ‘acabado’ da financeirização na saúde é o das parcerias público-privadas. “Trata-se de uma parceria com entidades privadas não só na gestão como na construção e na operação. É o que acontece nas estradas, por exemplo, em que há uma concessão do poder público para uma entidade privada, por longos períodos. A entidade investe na construção e na conservação da estrada, conserva e cobra pedágios. Imagine transpor isso para a saúde!”, diz a pesquisadora.

Fundações Estatais

Em 2007, o poder executivo apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar 92/07 para resolver o ‘problema’ das fundações públicas: afinal, quais deveriam ser suas áreas de atuação? E essas fundações deveriam ser regidas pelo direito público ou pelo privado? O projeto diz que, mediante lei específica, pode ser instituída ou autorizada a instituição de fundações sem fins lucrativos, integrantes da administração pública indireta, com personalidade jurídica de direito público ou privado. A definição da personalidade jurídica deve ser feita com base na atividade a ser desempenhada: para atividades que não sejam exclusivas do Estado – como saúde, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público, comunicação social e turismo – elas devem ser de direito privado.

Para muitos pesquisadores e sanitaristas, as Fundações Estatais são vistas como um bom modelo de gestão. O artigo ‘Fundação Estatal e o Fortalecimento da Capacidade de Atenção do Estado’, escrito pelo diretor de Atenção Básica da Secretaria de Saúde da Bahia, Hêider Pinto, pelo professor da UFF Túlio Franco e pelo professor da UFRJ Emerson Merhy diz exatamente isso.  De acordo com os autores, a Fundação Estatal “é a combinação de uma autarquia – com todas as vantagens que essa tem em termos de descentralização administrativa e autonomia e agilidade na tomada de decisões operacionais; com uma empresa estatal, buscando nessa a agilidade e autonomia na gestão de pessoal, orçamentária, contábil e relacionada a compras e aquisições”.

Eles explicam que, assim como as empresas estatais, as Fundações Estatais estão subordinadas ao código civil no que diz respeito a compras, contabilidade e gestão de pessoal. E, apesar de estarem subordinadas à lei nº 8.666, que trata das licitações, elas podem também ter um regime próprio e especial para compras, o que traz agilidade.


Divergências

Mas nem todo mundo vê as Fundações Estatais com tanto otimismo, e o projeto da sua criação causou muito rebuliço desde que foi anunciado. De acordo com o jurista Dalmo Dallari, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o texto se baseia em falsos pressupostos e improbidades conceituais. No artigo ‘Fundações Estatais: proposta polêmica’, ele diz que vem se desenvolvendo um processo que visa a “reduzir a participação do Estado nas atividades sociais, transferindo para a iniciativa privada a atribuição de prestar determinados serviços, tradicionalmente qualificados como serviços públicos, como a saúde e a educação”.

Segundo Dallari, um dos motivos para isso é o pressuposto de que “a iniciativa privada é sempre mais competente do que o Estado”, mas, para o jurista, essa premissa não é verdadeira. Além disso, o autor diz que a proposta é inconstitucional. Isso porque a Constituição permite que a leis complementares definam as áreas de atuação das fundações, mas não a sua personalidade jurídica, como quer a proposta.

Privatização?

Como as OSs e Oscips envolvem terceirização, há um certo consenso entre os estudiosos do tema de que elas significam a privatização da gestão. Já no caso das Fundações Estatais, formadas dentro do poder público, as opiniões se dividem. Para Maria Valéria Correia, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o fato de essas fundações serem regidas por direito privado “encobre a natureza de privatização que tem essa proposta”.

Ela reconhece que existem pontos positivos em relação aos modelos de terceirização – a subordinação à lei de licitações e os contratos feitos necessariamente por meio de concurso público são exemplos disso. Entretanto, Maria Valéria diz acreditar que, mesmo assim, o Estado abre mão de gerir a coisa pública. “Essas melhorias são uma ‘embalagem’: os efeitos são menos nefastos, mas a natureza do projeto continua sendo privatizante”, diz.

Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, concorda: “O fio condutor que alinhava e torna iguais, na dimensão mais profunda, iniciativas como OSs, Oscips e Fundações Estatais, é a flexibilização da legislação para poder transferir fundos públicos a capitais privados. Como chamar de fundação estatal algo que é de direito privado? Se é estatal, tem que ser de direito público”, defende.

A jurista Lenir Santos tem uma posição diferente. Em 2005, ela participou da elaboração das Fundações Estatais por uma demanda do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre e, depois disso, foi colaboradora do Ministério do Planejamento quando ele decidiu trazer para si essa discussão. De acordo com ela, as fundações não podem ser consideradas privatizantes: “Nada nessas Fundações é privado. O que elas podem é usar elementos do direito privado dentro do público. Elas continuam totalmente públicas, mas com o orçamento desamarrado e podendo contratar por CLT, por exemplo. Não se trata de repassar a gestão a uma entidade privada. Privatizante é o que põe para fora, como as OS”, defende.

Ela explica que, em relação à gestão, o modelo das Fundações é igual ao das empresas públicas. “A única diferença entre empresas públicas e Fundações Estatais é que as primeiras podem explorar alguma atividade econômica ou trabalhar com serviços tarifados. A Fundação, como não atua com lucro, tem também imunidade tributária”, pontua, acrescentando ainda que o argumento de que as Fundações seriam inconstitucionais, como aponta o professor Dallari, já não são mais verdadeiras, pois o Supremo Tribunal Federal já se posicionou pela sua constitucionalidade.

Para Francisco Batista Júnior, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, o fato de as Fundações Estatais estarem sob a responsabilidade do poder público, sem constituírem empresas privadas contratadas, não muda a “lógica” presente no modelo das OS e Oscips. “Isso porque elas permitem, por exemplo, que se nomeiem, para a administração do serviço público, pessoas ligadas a determinados grupos políticos ou corporativos. Essa é a principal denúncia que temos hoje em relação a algumas fundações no país. Acaba-se tendo uma instituição forte, com absoluta autonomia, com orçamento garantido e dominada por um determinado grupo político”, aponta.

De fato, um dos pontos mais discutidos quando se fala nesses novos modelos é o do controle social, que, segundo os críticos, tem sido desconsiderado. “Nenhum desses modelos traz conselhos paritários”, diz Maria Inês.

Além do mais, a implantação de modelos como OS e Oscips desconsideram as resoluções das últimas Conferências Nacionais de Saúde e do próprio Conselho Nacional de Saúde, que já deliberou contra qualquer forma de terceirização da gestão e contra a proposta das Fundações Estatais. De acordo com Batista Júnior, em geral as OS, Oscips e Fundações Estatais têm sido criadas sem a aprovação nos conselhos estaduais de saúde. “E ainda por cima a prestação de contas tem sido deixada de lado”, critica.

Força de trabalho

Existe outra questão nas Fundações Estatais que vão contra o que a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde defende: apesar de  contratarem trabalhadores por meio de concurso público, o vínculo empregatício é o da CLT. “Defendemos o regime estatutário, mais estável”, diz Maria Valéria. Sara completa: “As novas formas jurídicas todas identificam, no trabalho estável, o grande problema da gestão. Por trás dessa formulação, existe a reivindicação de se poder contratar e demitir a qualquer tempo e em qualquer circunstância”, critica a professora.

Lenir Santos identifica a questão da força de trabalho como sendo o centro de “toda a briga”: “No fundo, acredito que o que está por trás das pessoas que são contra as Fundações Estatais é basicamente o regime da CLT. Não vejo essas pessoas olhando se a proposta é boa para a saúde, se vai melhorar, se é bom para o povo. Eles parecem querer saber apenas se é bom para a categoria que defendem”, critica.

Batista Júnior se preocupa com o fato de a lei estabelecer que cada Fundação Estatal deva ver seus salários. "Se há dois hospitais, cada um com sua fundação, cada um vai estabelecer o salário que quiser. Isso significa correr o risco de ter dois enfermeiros trabalhando em hospitais vizinhos, um ganhando três vezes mais que o outro. Situações como essa inviabilizam o SUS. Em vez de batalharmos para criar uma carreira em que todos os profissionais sejam tratados da mesma forma, priorizando a qualificação, a dedicação exclusiva e a estabilidade, estamos aprofundando as dificuldades que já existem”, diz.

Para Geandro Pinheiro, um ponto importante dessa questão é a necessidade de as fundações se adequarem ao mercado em relação ao pagamento de pessoal. “Diz-se muito que o mercado oferece salários maiores a determinados profissionais, como gestores ou cirurgiões, do que o SUS. E que, para conseguir os melhores profissionais, é preciso poder oferecer maiores salários nesses casos. Isso faz com que toda a luta que temos na área pública de planos de cargos e salários, de um plano de carreira vinculado a critérios de isonomia, vá por terra. Acaba-se criando uma hierarquia de funcionários na instituição – e sob os critérios do mercado, e não das necessidades do SUS”, diz o pesquisador.


Privatização mais tênue

No entanto, existe uma crítica mais profunda que perpassa todas essas ‘saídas’ que vêm sendo apontadas para os problemas de gestão da saúde. “O fato de considerarmos um modelo privatizante se relaciona muito menos ao seu formato propriamente do que ao propósito, ao fim último que esse modelo propõe às instituições. Privatizar não é apenas colocar um serviço nas mãos de uma empresa ou outra entidade privada”, diz Geandro.

De acordo com ele, é preciso ter cuidado tanto ao criticar os novos modelos como ao fazer o que ele considera uma “defesa cega” das autarquias. “Não são apenas as OS, as Oscips, a EBSERH e as Fundações Estatais que privatizam. Sob esse ponto de vista dos propósitos, pode-se dizer até mesmo que há autarquias extremamente privatizadas, pois estamos trabalhando com grupos corporativos ou políticos que fazem com que esses órgãos, de administração direta, atendam e beneficiem a determinados grupos em vez de à população em geral”, afirma o pesquisador.

Assim como Dalmo Dallari, Geandro acredita que aqueles que defendem os modelos da empresa ou das Fundações Estatais, por exemplo, estão sendo levados pelo fetiche de que o bom modelo de gerência é aquele vinculado ao modo privado. “No fim das contas, o que se coloca são modelos de Estado. Há grupos que defendem um Estado forte e público. Ao mesmo tempo, outros grupos defendem a incorporação de novas modalidades, orientadas para o benefício da sociedade e para a melhoria da qualidade do atendimento ao cidadão, sem que o meio para isso importe muito”, explica o pesquisador. De acordo com ele, quem está no poder tem apostado nessas saídas de novas modalidades jurídicas, quando o que se faz necessário é desenvolver um debate amplo sobre os nós presentes na administração pública.


A reforma necessária

Como o decreto-lei da administração federal é ainda da época da ditadura, Geandro diz que reformá-lo é mais do que necessário, mas isso não tem sido pautado pelos governos. “A lei está caduca e precisa ser melhorada. Vemos que há constrangimentos em relação ao orçamento, à gestão dos trabalhadores e dos recursos financeiros. O importante é ver que tipo de saídas conseguimos arrumar”, aponta.

E um dos nós que precisam ser desatados é justamente a Lei de Responsabilidade Fiscal. “Ela é um absurdo. Hoje, um prefeito não pode realizar um concurso público se o gasto com profissionais já estiver no teto máximo, mas pode contratar profissionais por terceirização. Isso precisa ser revisto com urgência”, diz Batista Júnior.

Outro ponto é o fortalecimento e a qualificação da gestão pública. O CNS tem defendido, segundo Batista Júnior, a profissionalização da gestão em primeiro lugar. “Defendemos a regulamentação de todos os cargos, até o de diretor, com critérios de profissionalização e de avaliação. Queremos que todos os cargos sejam preenchidos por meio da construção de uma carreira profissional”, diz.

Para Geandro, há ainda um outro ponto que merece atenção: o envolvimento e a responsabilização do servidor público no seu trabalho. De acordo com o pesquisador, não se pode usar o argumento de que a estabilidade dos servidores leva à ineficiência, mas é preciso que os sindicatos e as corporações enfrentem esse problema. “Não defendo que ninguém seja demitido sem razão, e o regime estatutário, como se sabe, proporciona ao servidor um alto grau de defesa. Mas sabemos que quando se identificam casos de corrupção, de falta de responsabilidade, de desrespeito e descompromisso com a coisa pública, há, no direito público, diversos instrumentos para substituir o servidor sem arbitrariedades: pode-se abrir inquérito, sindicância, uma série de processos. No entanto, isso não acontece com muita frequência e os casos de substituição são raríssimos. Mesmo se contarmos apenas os casos de corrupção identificados, vamos verificar que eles não correspondem aos casos de substituição. Isso precisa ser revisto”, acredita.

De acordo com ele, as discussões nos últimos anos têm sido desarticuladas e individuais: cada instituição tem olhado apenas o seu lado, discutindo modelos para instituições específicas, e não para o Brasil como um todo. Em 2007, o Ministério do Planejamento convocou um grupo de altos juristas brasileiros para discutir os entraves da administração pública e propor uma reforma. O documento final dessa comissão traz um anteprojeto de lei que, entre outras coisas, define as Fundações Estatais e as ‘entidades de colaboração’, termo que abrange entidades não estatais como OSs e Oscips. Para Geandro, o anteprojeto merece ser analisado e criticado. “Mas a proposta tem o mérito de trazer uma discussão da administração pública que, ao ir para o Congresso, vai permitir um debate mais amplo da sociedade em relação a isso”, reflete.

Debate mais amplo

Apesar da importância das novas propostas para a gestão da saúde pública, existe um outro fator que, segundo Ligia Bahia, tem sido deixado de lado e que é o verdadeiro ‘vilão’ no que diz respeito à privatização da saúde: “Privatizar a saúde é aumentar os planos privados. Se observarmos o alcance que têm tido as OSs, as Oscips, as Fundações Estatais e até mesmo as parcerias público-privadas, veremos que esse fenômeno é, na verdade, menos importante que a financeirização e a privatização via mercado de planos de saúde”, aponta a pesquisadora.