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Pronatec: público e privado na educação profissional

Pesquisadores discutem estratégias de financiamento público de vagas em instituições privadas, como já acontece no ensino superior.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 29/04/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O Ministério da Educação lançou ontem o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec). Anunciado como destaque da política educacional do novo governo desde o discurso de posse da presidente Dilma Roussef, o Programa ainda não havia se tornado público quando esta esta matéria, publicada na última edição da revista Poli, foi concluída. Havia, no entanto, algumas pistas de estratégias que seriam utilizadas pelo programa - e que se confirmam pelo anúncio oficial. Em entrevista coletiva no dia 13 de abril, por exemplo, o ministro Fernando Haddad adiantou que essa iniciativa deveria utilizar as mesmas “soluções clássicas” do ensino superior, como o Reuni (Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), o Fies (Financiamento Estudantil) e o Prouni (Programa Universidade para Todos). Matéria publicada no jornal O Globo de 23 de abril, intitulada ‘Contra o apagão da mão de obra’, informou, sem citar fontes oficiais, que o Pronatec previa ainda a construção de mais 120 centros de formação federais e o aumento de repasse de recursos aos governos estaduais para ampliação, reforma ou construção de “escolas profissionalizantes”, por meio do programa Brasil Profissionalizado.

Público e privado na educação

O problema é que, além de “clássicas”, as “soluções” apontadas pelo ministro são também polêmicas. O Fies é um programa em que o Estado oferece bolsas para os alunos que estudam em “instituições não gratuitas” de nível superior previamente cadastradas. As bolsas são, na verdade, um empréstimo. O estudante paga pequenas parcelas em prazos estabelecidos durante o curso e financia o saldo devedor após a conclusão. “Esse programa é extremamente oneroso para o Estado“, avalia Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E explica: “Embora seja empréstimo, é subsidiado a juros de 3,5% ao ano, enquanto a taxa selic básica de juros é de 11,5%; e essa diferença é custeada pelo Estado. Esse gasto, hoje, já ultrapassa, seguramente, R$ 500 milhões por ano e, com a expansão agora para as escolas técnicas privadas, nós podemos ter uma projeção de que aumentará de forma exponencial”.

O Prouni também oferece bolsas — integrais ou de 50% — para alunos selecionados a partir do resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cursarem o ensino superior em instituições privadas. Não se trata, no entanto, de um empréstimo: o governo ‘paga’ as bolsas na forma de isenção fiscal para as instituições filantrópicas e particulares. Os alunos que não receberem a bolsa integral podem complementar o benefício financiando a metade do valor da mensalidade pelo Fies. 

Na base da crítica a essas duas iniciativas está o questionamento de se financiar, com dinheiro público, vagas em instituições privadas. Referindo-se ao Pronatec, o secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, Eliezer Pacheco, explica a opção: “Há uma constatação óbvia de que lamentavelmente o setor público no Brasil não atende toda a demanda, apesar da expansão imensa que se fez. Portanto, são milhões de jovens que não têm ainda condições de estudar nas instituições públicas. Por isso, de forma suplementar nós também queremos política de financiamento para estudantes nas instituições privadas. Com o Prouni, nós abrimos 800 mil vagas para estudantes pobres, ao mesmo tempo em que dobramos as vagas nas instituições públicas de ensino superior. São políticas que se complementam, sempre no sentido de democratizar o acesso”, afirma, ressaltando que considera esse um aspecto secundário do Pronatec:  “infelizmente a imprensa quando trata disso destaca sempre a relação com o setor privado”, lamenta.

Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade do Estado do Rio de janeiro, concorda com o diagnóstico mas discorda da solução. “Existe outro caminho político para se garantir o acesso do jovem à educação profissional: o fortalecimento de políticas voltadas para a implantação do ensino médio integrado nos sistemas estaduais de ensino”, opina. Ela lembra que, de acordo com a Emenda Constitucional 59, a oferta de ensino médio pelo poder público é obrigatória. Como essa fase do ensino é responsabilidade prioritariamente das redes estaduais, uma estratégia “lógica” seria, segundo ela, instituir políticas que permitissem aos sistemas estaduais oferecer educação profissional integrada ao ensino médio.

Leher contesta também a ideia de que o financiamento da educação privada é emergencial e está acontecendo em concomitância a um fortalecimento da rede pública. “No caso das universidades, o percentual dos estudantes matriculados nas instituições públicas caiu em relação ao setor privado. Nos anos 1990, cerca de 32%, 34% dos estudantes estavam nas públicas; hoje são 22%. Então, empiricamente, a afirmação de que estamos dando acesso à rede privada agora enquanto expandimos a rede pública não é verdade: percentualmente, a participação de estudantes nas instituições públicas no governo Lula foi menor, inclusive, do que no governo [Fernando Henrique] Cardoso”, diz. Leher considera ainda que grande parte da expansão das universidades públicas foi “muito precária”, sustentada pela tentativa de fazer com que “as instituições públicas fossem se moldando ao paradigma da oferta privada” — esse é o parâmetro, segundo ele, de algumas metas estabelecidas pelo contrato de gestão do Reuni. “Estamos azeitando a máquina pública para operar a expansão privada”, conclui, chamando a atenção ainda para o fato de que, hoje, o privado que opera na educação não é mais, prioritariamente, composto por instituições familiares que, segundo ele, às vezes mantinham algum “resquício de princípio acadêmico”: “Hoje é briga de cachorro grande hoje: lidamos com fundos de investimentos estrangeiros. As instituições passam por processos de aquisição por grandes corporações que estão na bolsa de valores e, portanto, precisam valorizar suas ações”, explica.

Que educação é essa?

“O que adianta financiar para que a instituição privada faça conforme sua concepção pedagógica?”.  A preocupação é do professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Claudio Gomes, que destaca a necessidade de as políticas públicas fazerem também alguma indução no projeto pedagógico. “O caminho é fazer mais instituições públicas, dar velocidade ainda maior à expansão da educação profissional pública. Porque assim teremos condições de fazer o ensino médio integrado”, opina.

Eliezer Pacheco, no entanto, garante que o ensino médio integrado será a orientação principal do Pronatec. “Até onde eu sei, trata-se de ofertas de vagas de educação profissional subsequente ou concomitante ao ensino médio nas instituições privadas. E isso não tem nada de ensino médio integrado”, avalia Marise, ressaltando que ensino médio integrado não é sinônimo de ensino médio profissionalizante. Marise analisa, inclusive, que essa proposta retoma alguns pressupostos perigosos da educação profissional. Um deles é a vinculação dessa modalidade de ensino exclusivamente ao exercício produtivo. Outro é o que ela chama de uma “tese desenvolvimentista”, que consiste em regular a formação profissional de acordo com a geração de empregos — que, em geral, são postos de trabalho de natureza simples e instrumental. Leher tem a mesma preocupação: “Que modelo de ‘inclusão social’ nós vamos ter com essas escolas? Será que não temos aqui um pressuposto de que pobre deve ter educação pobre? Ou de que os filhos dos trabalhadores pouco qualificados também serão, embora com um certo verniz, força de trabalho de baixo custo?”, questiona. E completa: “Eu vejo uma perspectiva ético-política muito conservadora nesse processo porque naturaliza a ideia de que o dualismo educacional é o imperativo da vida real e, portanto, não temos como mudar isso”.

Sistema S

Uma parte importante da rede privada de educação profissional instalada no Brasil integra o chamado Sistema S — composto por nove instituições, entre elas o Senai e o Senac — que forma uma polêmica à parte. Embora tenha gestão privada, o Sistema S é mantido com recursos chamados de parafiscais. Esses recursos são considerados públicos porque resultam de contribuições compulsórias das empresas, que, por sua vez, repassam essa despesa para o custo dos produtos, portanto, para o consumidor. Apesar disso, muitas instituições vinculadas a essa rede cobram pelos cursos que oferecem.  A maior regulação sobre o Sistema S é uma das frentes de atuação do MEC desde o governo Lula e, segundo Eliezer Pacheco, é também uma das prioridades do Pronatec: “Queremos resgatar o caráter público do Sistema S, porque ele é mantido por recursos públicos. Nós estamos chegando a 2/3 de gratuidade no Sistema S, queremos chegar a 85%, voltado principalmente a atividades de apoio a escolas públicas estaduais”, aponta.

Leher, no entanto, diz que é preciso estar atento à articulação entre essas duas ações. O risco, alerta, é que essa gratuidade seja ampliada através de compra de vagas por parte do Estado. “Com isso, vamos ter um novo afluxo de recursos públicos no Sistema S”, destaca.

 

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