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Caminhos e desencontros de uma Pátria Educadora

Educadores e militantes discutem as bases da proposta de reforma educacional elaborada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos por encomenda da Presidência da República. Prioridade da lógica empresarial na gestão e no currículo e falta de diálogo com o PNE são algumas das principais críticas.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/07/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No dia 1º de janeiro deste ano, a presidente recém-eleita Dilma Rousseff anunciou o lema do seu novo governo: Brasil, Pátria Educadora. A motivação, segundo ela, era deixar claro que a prioridade dos seus próximos quatro anos à frente do país seria a educação. Menos de seis meses depois, no dia 22 de maio, como parte das medidas de ajuste fiscal, o Ministério do Planejamento anunciou um corte de R$ 9,4 bilhões no orçamento da educação. Entre um momento e outro, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República elaborou um documento com análises e propostas que tinham como objetivo suscitar a discussão sobre um “projeto nacional de qualificação do ensino básico”. Não por acaso, o documento, apresentado como uma versão preliminar, recebeu o nome de ‘Pátria Educadora’. “Minha tarefa principal no governo é ajudar a presidenta a construir uma agenda pós-ajuste fiscal”, explica o ministro Roberto Mangabeira Unger, responsável pela SAE. No dia do fechamento desta edição, a SAE lançou a versão preliminar de um novo documento para discussão, focado especificamente na  instituição do Sistema Nacional de Educação e na regulamentação dos artigos 23 e 211 da Constituição.

Foi amplamente noticiado pela grande imprensa o fato de o documento ter sido não só elaborado como apresentado sem a participação (e a presença) do Ministério da Educação (MEC). Mangabeira minimiza a crise, explicando, primeiro, que, por não ter uma “jurisdição específica”, as ações da SAE acabam sempre caindo na área de algum ministério. Segundo ele, além disso, as propostas contidas preliminarmente no documento só foram lançadas depois de ele ter ouvido “dezenas de interessados na educação” e ter “trabalhado intensivamente com a presidenta e com o Ministério da Educação”. Contatado pe-la Poli, o MEC não aceitou comentar a proposta, explicando, via assessoria de imprensa, que “apesar de o ministro Mangabeira ter se reunido com secretários do MEC e o então ministro Cid Gomes (...) o documento não foi feito em parceria com o MEC”. Para o professor Luiz Araújo, da Universidade de Brasília (UnB), no entanto, essa divergência com o MEC é mais de trâmite do que de concepção política. “É correto dizer que esse é um documento que nasce e está sendo produzido fora do prédio do MEC. Mas, em termos de conteúdo, uma boa parte das políticas que o MEC desenvolveu nos últimos 20 anos de forma esparsa estão presentes no documento de forma sistematizada”, opina.

Perspectiva empresarial?

Esse, aliás, é o grande – e único – mérito da iniciativa da SAE na opinião de Luiz Araújo. “Por incrível que pareça, é a primeira vez, nos últimos 20 anos, que o governo federal apresenta para a sociedade uma proposta de educação num documento oficial”, diz, e analisa: “O documento sistematiza um conjunto de ideias que estão em debate, sendo praticadas por diferentes governos, e dá uma coerência a elas. Ao fazer isso, ele ajuda no contraponto porque exige que você discuta a proposta global e não apenas programas”. Para exemplificar essa relação, o professor cita o elogio à meritocracia, um dos aspectos que mais têm sido citados nos debates públicos de crítica ao documento. “Nenhuma novidade: várias propostas meritocráticas que estão no documento têm sido defendidas pelos organismos internacionais, estimuladas pela OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico] e praticadas por estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco já há mais de uma década. O que o documento faz é propor um ganho de escala para essas políticas”, explica.

Foi ao ministro da educação, Renato Janine Ribeiro, no entanto, que  o professor Luiz Carlos de Freitas apelou através de uma carta aberta apresentada durante um seminário realizado em maio na Unicamp e que recebeu mais de duas mil assinaturas. Depois de desenvolver severas críticas ao ‘Pátria Educadora’ e elencar sugestões alternativas, a carta convida o ministro a se juntar à luta contra a concepção expressa no documento elaborado pela SAE. “Vossa Excelência será chamada, pelas gerações futuras, a prestar contas dos caminhos que vier a pavimentar neste momento decisivo para o futuro da educação brasileira. A área de educação, através de suas entidades científicas e sindicais, deve se mobilizar para que lhe seja fornecido o apoio necessário para enfrentar a cultura de auditoria e as políticas de mercantilização em curso na proposta do documento preliminar da Secretaria da Presidência da República. Some-se a essa luta”, convida, caracterizando a reforma educacional incentivada pelo documento como de cunho empresarial.

De fato, o documento reconhece que muitos dos “experimentos” que tentaram melhorar os “resultados do ensino público” no Brasil nos últimos anos valeram-se da “lógica de eficiência empresarial”, “surtiram efeitos positivos inegáveis” e, por isso, “devem ser incorporados ao projeto de qualificação do ensino público”. Entre as práticas que expressariam esse padrão empresarial, são listadas, no texto, “a fixação de metas de desempenho, a continuidade da avaliação, o uso de incentivos e de métodos de cobrança, o acompanhamento e, quando necessário, o afastamento de diretores, a despolitização da escolha de diretores e a individualização do ensino, especialmente para alunos em dificuldade”. Mas, apesar de reconhecer o tanto que temos que aprender com essa “orientação empresarial”, o documento alerta que precisamos de “muito mais do que ela é capaz de oferecer”. “O que eu estou dizendo naquela parte do documento é que nós tivemos avanços localizados no país sob a inspiração desse paradigma empresarial, que foca mecanismos de cobrança, meritocracia, padrões de desempenho, mas que esse paradigma empresarial é completamente insuficiente para nos guiar num projeto nacional de qualificação do ensino público”, defende-se Mangabeira.

Luiz Araújo reconhece que, no texto, o “conceito” de eficiência empresarial na educação fica restrito aos primeiros parágrafos. Mas, na sua avaliação, a proposta é inteiramente atravessada por essa lógica e “tira consequências dela”. O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Murilo Vilaça exemplifica: “O documento afirma categoricamente que uma nova política de remuneração dos professores não resolveria os problemas da educação, o que é de um truísmo absurdo porque é óbvio que nenhum problema complexo se resolve com uma medida isolada. E depois segue com algumas informações que sugerem que a política de incentivos vai ser mantida na educação básica. Esse é um jogo perverso. A lógica é: eu te pago pouco e, para que você saia desse estado de penúria absoluta do seu salário baixíssimo, proponho o cumprimento de algumas metas; se resistir, você deixa de ganhar um complemento do seu salário”.

No texto da SAE, essa referência à fraca relação entre o salário do professor e a qualidade da educação é apresentada como resultado de “abundante evidência empírica”. O professor Dermeval Saviani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no entanto, lembra que outras evidências empíricas mostram, na verdade, que as reformas educacionais pautadas por avaliações padronizadas e meritocracia deram errado em outros lugares do mundo. “Esse documento vai na contramão das lutas da educação, na contramão de todos nós que resistimos à onda neoliberal mas, mais do que isso, ele defende um modelo que, de certa forma, já demonstrou sua falência, como ficou bem evidenciado na autocrítica feita pela Diane Ravitch”, analisa. Saviani está se referindo à ex-secretária adjunta de educação dos Estados Unidos, que liderou o movimento pela criação de um currículo nacional no governo George Bush e foi indicada por Bill Clinton para coordenar os institutos responsáveis pelos testes federais naquele país. Depois de protagonizar essa experiência, ela escreveu um livro chamado ‘Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação’, em que explica o quanto esse sistema foi danoso para a educação do país. “Qualquer ênfase exagerada em processos de responsabilização é danosa para a educação. Isso leva apenas a um esforço grande em ensinar a responder testes, a diminuir as exigências e outras maneiras de melhorar a nota dos estudantes sem, necessariamente, melhorar a educação”, disse Diane em 2010, em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo, em que ela resume as conclusões apresentadas no livro. E completou: “(...) as evidências acumuladas nesse período sobre os efeitos de todas essas políticas me fizeram repensar. Não podia mais continuar apoiando essas abordagens. O ensino não melhorou e identificamos apenas muitas fraudes no processo”.

Professores e diretores

No tópico referente aos diretores e professores, o 'Pátria Educadora' apresenta um diagnóstico em que se encontram “dificuldades de toda a ordem”. Os professores diz “vêm comumente dos alunos mais fracos do ensino médio”, a maior parte provavelmente sofreu pelo menos uma reprovação na condição de aluno e, sendo assim, eles escolhem as escolas de pedagogia, principalmente as privadas, porque nelas o ingresso é mais fácil. No ensino superior, o drama se repete: a maioria se forma em instituições particulares, “muitas de seriedade duvidosa, dedicadas ao lucro e carentes de recursos intelectuais”. E mesmo a minoria que ingressa nas universidades públicas é submetida a um processo que, embora apresente “ao menos alguns elementos de formação aceitável”, nem de longe oferece um “ensino compatível com o rumo” proposto na reformulação educacional proposta pela SAE. “É voz corrente nas universidades e no professorado que os melhores alunos costumam não ficar na docência”, resume o texto. Para piorar o cenário, o documento afirma que, entre os que permanecem na profissão, “muitos procuram minimizar, a qualquer custo, tempo na sala de aula”, preferindo tarefas administrativas e, inclusive, faltando ao trabalho “alegando doença”. Mas o texto avisa: “Não se trata de demonizar o professorado, que é também produto e vítima de uma história de descalabro”. Questionada por email sobre a fonte desses dados, que não constam do documento, a assessoria de imprensa da SAE não respondeu.

Para mudar esse quadro, o documento propõe três caminhos. Um é a criação de uma carreira nacional para o magistério, vinculada ao piso salarial, e que seja acompanhada por uma Prova Nacional Docente. A ideia é que, após a conclusão dos cursos de nível superior, os ex-estudantes de pedagogia e licenciatura se submetam a uma prova, com questões teóricas e práticas, através da qual eles terão que demonstrar que estão preparados para se tornarem futuros professores. O objetivo principal, segundo a proposta, é “valorizar a carreira e atrair para ela número maior de vocações docentes”. O senador Cristóvão Buarque (PDT-DF), que já foi ministro da educação, concorda com o diagnóstico apresentado no documento e defende uma proposta de carreira federal do magistério, com termos mais específicos do que o que é sugerido nessa versão preliminar do documento da SAE. “Estou totalmente de acordo com essa descrição. Mas qual é a raiz disso? Ele não aponta. Primeiro, é que no Brasil o magistério é uma profissão muito mal remunerada. Então, quem vai fazer o magistério, salvo uns heróis missionários, é quem não consegue passar em direito, engenharia, medicina, informática. Segundo, a formação dos professores está péssima nas faculdades. Elas formam, no máximo, teóricos, filósofos da pedagogia, não licenciados”, diz.

A segunda proposta do documento para resolver o cenário de má formação dos docentes da educação básica é a criação de Centros de Qualificação Avançada onde os professores fariam cursos de complementação à formação recebida no ensino superior e aprenderiam a desenvolver “as práticas e os protocolos exigidos pelo Currículo Nacional” – numa referência ao resultado da construção da Base Nacional Comum, que está sendo tocada pelo MEC e deve estar concluída até meados de 2016 –, além de discutirem as “experiências e inovações do professorado”. O documento também aponta como terceira prioridade a “transformação” dos cursos de pedagogia e licenciatura, apontando que os instrumentos hoje disponíveis para qualificar as instituições privadas, que formam a maioria dos professores, são insuficientes. O diagnóstico, no entanto, não inclui comentários sobre os programas do próprio governo federal que têm incentivado, com subsídios públicos, a ampliação da oferta de vagas nessas instituições privadas – o Programa Universidade para Todos (Prouni), inclusive, destaca entre o seu público-alvo os professores da rede pública de ensino para formação em cursos de pedagogia, licenciatura e normal superior nessas instituições. Na verdade, o documento propõe a construção de um novo programa de bolsas, “por analogia extensiva ao Prouni”, condicionando a participação da instituição à adaptação dos seus cursos a “protocolos curriculares e ao cumprimento de metas”.

Sobre os diretores de escolas de educação básica, o documento destaca apenas que, em grande parte do país, eles “são nomeados por apadrinhamento político ou eleitos em processos que favorecem a irresponsabilidade e a indiferença ao mérito”. Perguntada por email se essa constatação sinalizaria que a SAE defende a eleição para escolas públicas, que é uma histórica bandeira de muitos  movimentos sociais da educação, a assessoria de imprensa também não respondeu.

O fato é que o “ideário” expresso no documento aposta que “tudo pode começar a mudar numa escola com bom diretor” e, para isso, propõe duas iniciativas capazes de mudar o cenário nacional. A primeira é exatamente a premiação das escolas que alcançarem metas de desempenho avaliadas por “comissões independentes”. Mas como não se pode apenas “confiar no efeito dos incentivos”, diz o documento, é preciso criar Centros de Formação de Diretores, a partir do esforço conjunto da União e dos estados. Esses Centros formariam não apenas os diretores em exercício, mas também os “candidatos” a diretor – embora, aqui, a palavra ‘candidato’ nada tenha a ver com eleição, já que o texto, na sequência, explica que isso deveria resultar num acordo para que os estados escolhessem os diretores entre aqueles que foram “habilitados” por esses espaços. Em outro trecho, que trata da construção de um “federalismo cooperativo” para a educação básica, o documento diz ainda que os “diretores de escolas com desempenho insatisfatório receberiam apoio e orientação” e que, “em último caso, seriam afastados e substituídos”.

Na avaliação do professor Luiz Araújo, o cenário desenhado pelo documento não tem respaldo em dados concretos e as propostas apresentadas não dialogam com as lutas que vêm sendo travadas na educação a partir do conhecimento e da experiência acumulada no país. “O Paulo Renato [ministro da educação do governo Fernando Henrique Cardoso] assinaria embaixo do diagnóstico que ele apresenta: a educação vai mal porque as escolas não estão ensinando o que deveriam, porque os professores são mal preparados e porque elas têm problema de gerência. E adicionou-se um componente que não estava previsto na década de 1990, de que as relações federativas são precárias”, opina, resumindo: “A visão é que, aperfeiçoando os instrumentos de avaliação para premiar e punir, se intervém na educação. Pelas avaliações se muda o currículo, e isso fica claro na formação de professores: faz-se uma prova nacional, ela vira uma necessidade social para o professor exercer a profissão, para ser aprovado ele tem que estudar o que a prova vai pedir e, com isso, altera-se o currículo das universidades sem precisar intervir nelas. E se isso não der certo, se intervém”.

Para o professor da UnB, é preciso discutir se esse diagnóstico está ancorado em dados da realidade já que, no caso do documento preliminar da SAE, não são citadas fontes nem referências. Em primeiro lugar, ele levanta dúvidas sobre as informações ‘primárias’ apontadas pelo documento. Embora aponte como real e legítimo o debate sobre a atratividade do magistério, ele explica que, ancorado em pesquisas, o máximo que se pode dizer é que a linha de corte dos cursos de licenciatura é baixa em relação a outros, como medicina e engenharia, mas ressalta que isso acontece também em cursos que não formam para a docência, como administração e ciências contábeis. “Não conheço estudos que mostrem que o aluno ingressante na licenciatura é repetente”, exemplifica.

Para contestar o cenário apresentado, ele cita como exemplo um estudo publicado em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado à própria SAE, com condução de Paulo Roberto Corbucci e Eduardo Zen, que, cruzando as notas do Índice de Desenvolvimento Educacional (Ideb) e indicadores de condições sociais, mostra, com dados reais dos municípios brasileiros, que “fatores extrínsecos” à escola, como renda, condições de moradia e taxa de escolarização local, influenciam muito mais os resultados educacionais do que os fatores relacionados à “infraestrutura pedagógica da escola”, como existência de biblioteca, laboratórios e quadras de esporte. Ignorando esses dados reais, diz Luiz Araújo, a proposta da ‘Pátria Educadora’ – e as políticas públicas em curso, ele acrescenta – aposta que a formação dos professores e a gerência da escola são os fatores determinantes para a nota dos alunos. Ele não tem dúvida de que uma péssima formação e um péssimo professor “pioram a situação”, mas a questão, diz, é como se atribui o peso adequado a cada uma das determinações.

Concepções de educação e sociedade

De fato, o documento não aponta nem discute soluções para determinações que estejam fora da ‘governabilidade’ da área da educação. E como se resolve isso? Mangabeira Unger responde: “[Resolve-se] por aquilo a que eu dediquei minha vida: o pensamento sobre a transformação estrutural da sociedade, as mudanças das instituições econômicas e políticas. Mas isso não é o objetivo de um projeto como esse”. E completa: “Não é a escola que muda as instituições econômicas e políticas. Para isso, existem as outras partes do meu pensamento e do meu trabalho”.

Isso não quer dizer, no entanto, que a proposta preliminar da SAE ignore as desigualdades presentes entre a população brasileira. A questão é que ali são destacadas apenas as diferenças de “capacitações e comportamentos” que caracterizam uma “sociedade de classes”, como a nossa. Segundo o ministro da SAE, “disposições” como a capacidade de gerir o tempo e, especialmente, a autodisciplina e o ‘espírito’ de cooperação, estão desigualmente distribuídas entre os “membros de diferentes classes sociais”, o que representa um problema, mas também uma oportunidade. “Nós não queremos construir um ensino qualificado que seja mais acessível aos filhos da classe média ilustrada do que aos filhos dos trabalhadores. E esta é uma ameaça imensa àquilo que nós queremos, que é a aliança revolucionária da ciência com a democracia”, diz Mangabeira. No documento, o desafio a ser enfrentado para chegar a esse objetivo são as “capacitações pré-cognitivas” que devem buscar superar as inibições “às vezes chamadas socioemocionais” “que barram o caminho” de “grande parte da massa de alunos pobres no país”. Embora não possam se confundir com tentativas de “doutrinação moral”, essas capacitações são, segundo o texto, “de comportamento tanto quanto de consciências”.

A constatação do documento é de que, numa sociedade opressora e desigual como a que vivemos, a família não consegue exercer, por exemplo, o seu papel de ensinar disciplina aos filhos, o que faz com que a escola tenha que “assumir parte das tarefas da família” e demonstraria a importância da escola em tempo integral. O texto exemplifica: “É a situação que se multiplica em grande escala no Brasil: nas periferias e nos bairros pobres de nossas cidades, mais da metade das famílias costuma ser conduzida por mãe sozinha, casada ou solteira. Revezam-se os homens como companheiros instáveis. Esta mãe, pobre e geralmente negra ou mestiça, luta para zelar pelos filhos e para manter ao mesmo tempo emprego ou biscate”. Sobre isso, embora não desenvolva muito, a proposta concreta que consta desse esforço preliminar da SAE é a adoção de “um quadro de agentes comunitários” que tenham como tarefa “buscar este aluno”, assumindo “parte das tarefas da família ao criar, na escola, espaço de estímulos e cobranças em turno social ampliado”. O documento propõe, também de forma genérica, que a escola se organize cooperativamente para, através do exemplo, ensinar o aluno a cooperar. “Quando o documento fala da dimensão pré-cognitiva, traz uma discussão da pedagogia das competências, que diz que a educação deve estimular a criança nesse campo emocional para que ela consiga se desenvolver corretamente; que a infância é a esfera em que a competência socioemocional vai ser construída e que o êxito só vai se dar a partir disso”, explica Marise Ramos, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, completando: “Parece que agora é a infância que está sendo disputada”.

A referência que o texto da SAE faz às famílias desestruturadas é, para Marise, um exemplo perfeito do conservadorismo do pensamento ali expresso. “O documento parte da ideia de que a família não pode cuidar. Daí, transforma os problemas sociais em problemas individuais e os pedagogiza”, explica. E conclui: “Converte-se um direito em um preceito salvacionista e seletivo, ou melhor, seletivamente salvacionista”.

Mas Marise chama atenção para o fato de que, também aqui, o documento da SAE se aproxima da política que tem sido desenvolvida pelo Ministério da Educação. Um exemplo é que, desde o ano passado, já existe uma parceria entre o MEC, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Instituto Ayrton Senna para fomentar a pesquisa nessa área. O acordo, firmado em março de 2014, resultou no ‘Programa de Apoio à Formação de Profissionais no Campo das Competências Socioemocionais’, formalizado como um edital de financiamento a projetos que deveriam permitir a “criação de estratégias para o desenvolvimento de competências socioemocionais aliadas à formação de profissionais do magistério, bem como a melhoria da educação básica na rede pública”, com recursos da Capes. Foram selecionados dez projetos que puderam receber, cada um, até R$ 566.440, de acordo com os termos do edital. E essa relação não se reduz ao MEC. O trabalho do Instituto Ayrton Senna nessa área está descrito num estudo – intitulado ‘O desenvolvimento das habilidades socioemocionais como caminho para a aprendizagem e o sucesso escolar dos alunos da educação básica’ que, segundo informações do site da instituição, foi produzido por “encomenda” do Conselho Nacional de Educação (CNE) para “subsidiar” um parecer que está em tramitação sobre o papel das competências na educação básica. Esse ideário foi aplicado como projeto-piloto pelo Instituto Ayrton Senna também numa rede pública: através de uma parceria com a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, foi realizado, entre 2013 e 2014, o projeto chamado ‘Solução educacional para o ensino médio’. Esse piloto foi realizado em 53 escolas de tempo integral e, com destaque, no Colégio Estadual Chico Anysio, que já aplica uma proposta curricular desenvolvida pelo Instituto Ayrton Senna e é considerado pelo ministro Mangabeira Unger um exemplo de escola com currículo inovador. “Algumas ideias convergem porque compõem uma epistemologia e uma ideologia que estão presentes no movimento empresarial Todos pela Educação, na OCDE, no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes]. São ideias que sustentam um pensamento educacional conservador global. Por isso se permite que um documento não tenha nem referências bibliográficas”, resume Marise.

Prioridades e orientação do currículo

“As reformas consumadas sob a inspiração empresarial caracteristicamente não mexem no currículo e na maneira de ensinar a aprender. Elas se focam na gestão, mas são relativamente passivas com respeito à didática e ao currículo, exatamente o oposto do que eu estou propondo”. Esse é um dos argumentos apresentados pelo ministro Mangabeira Unger para negar as críticas de que o documento preliminar produzido pela SAE carrega uma concepção empresarial de educação.

Para Luiz Araújo, no entanto, essa é uma “meia verdade”. “A solução desse currículo é uma solução de ranking. O formato de salvar as gerações que têm potencial é meritocrática, inclusive na criação de uma rede de excelência paralela”, exemplifica. O professor da UnB está se referindo principalmente aos processos de individualização defendidos no documento que se desdobram na proposta de se construírem escolas de referência – batizadas de ‘Anísio Teixeira’ –, as quais se ingressaria por meio de concorrência, voltadas para “alunos com maior potencial”. Cristóvão Buarque critica: “Já começa aí o problema, quando se fala em escola onde entra quem tem mérito. Todos, aos quatro anos, têm mérito igual. Eu sou favorável à meritocracia, mas a gente tem que oferecer a todos e o processo é que mostra quem tem mérito, não é a entrada”. Segundo o senador, isso mostra uma “falta de ambição” da proposta, que não aposta numa estratégia para colocar o Brasil entre os melhores países do mundo em educação. Isso porque os países que ele considera que “deram o salto” na educação, como a Finlândia e a Coreia do Sul, construíram um sistema em que todas as escolas têm a máxima qualidade. “Tem que acabar com essa história de que existe escola boa ou ruim. Escola é que nem oxigênio: ou é bom ou não se usa”, conclui.

Mangabeira Unger lembra que o Brasil sempre teve escolas de referência, como o Colégio Militar e os colégios de aplicação as universidades. “Isso não é uma invenção. Agora, é preciso compreender qual o papel legítimo disso dentro de um projeto revolucionário de transformação da qualidade de ensino. Voltamos aqui ao tema de se reconciliar compromisso igualitário e reconhecimento das diferenças individuais”, defende. Marise Ramos discorda. Segundo ela, as escolas de referência de fato existem, mas como um modelo a ser superado e a luta dos educadores e movimentos sociais ligados à educação no Brasil tem se dado no sentido exatamente contrário, de ampliação de vagas e criação de um sistema de cotas nas escolas que já existem. “Essa proposta ignora toda a produção da história da educação no Brasil”, critica. E completa: “Trata-se de uma postura absolutamente elitista porque acha que deve haver o exemplo dos melhores. Precisamos de autonomia das escolas, espaços para que os sujeitos construam sua história e não de exemplos a serem copiados”.

A criação de escolas especiais aparece no documento como uma estratégia – que nem é a mais importante, segundo o ministro da SAE – de não “impor a mediocridade em nome da democracia”. “Todas as democracias do mundo enfrentam, na educação, a tensão entre os ideais de universalidade e igualdade, de um lado, e a determinação de assegurar espaço aos talentos, de outro”, diz o texto. Para Marco Antônio Santos, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, esse é um problema real, o que não quer dizer, na sua avaliação, que a solução proposta seja adequada. “Esse problema dos superdotados é delicado. Soa como se fosse elitismo, mas não necessariamente é. Há uma certa porcentagem da população que tem uma capacidade especial para determinadas áreas e ela tem que ser atendida do mesmo jeito que a população que tem dificuldade. Uma porção de alunos que não se adaptam e criam problemas de funcionamento na turma são aqueles com capacidade especial para cima”, diz. Murilo Vilaça concorda, mas questiona sobre o caminho a ser adotado: “A questão é: em que particularidades se investirá? Uma criança pode ter um potencial maravilhoso para o piano, mas na política produtivista, democratizadora e capacitante de que o documento fala, piano não parece prioridade. O plano nacional de pós-graduação mostra isso claramente. Quais são as áreas prioritárias do governo? Nanotecnologia, biotecnologia. A arte e as ciências humanas estão fora. A desigualdade existe entre as pessoas, mas a questão é como o país vai selecionar que desigualdades devem ser desenvolvidas, prestigiadas e que desigualdades vão ser simplesmente perdidas”.

Marise Ramos discorda também da avaliação de que as reformas educacionais de cunho empresarial não priorizam o currículo. Segundo ela, o currículo é parte de uma clara orientação mais ampla: formar o trabalhador  típico da contemporaneidade, flexível e tolerante com a instabilidade. “O empresariado não vai sentar para fazer o currículo, mas vai encomendar aos seus curriculistas. Porque ele está preocupado com o trabalhador que vai chegar lá”, diz. E explica: “Ainda que o empresário não esteja diretamente preocupado com o currículo e sim com a gestão, a gestão é o currículo do processo de trabalho. Não é por acaso que hoje, de forma mais completa, se conseguiu chegar a uma única noção que ordena o currículo e a gestão, que é a noção de competência”.

No documento preliminar produzido pela SAE, o conceito de competências não aparece nomeado, mas vem à tona na defesa da prevalência de “capacitações analíticas” em substituição à “decoreba enciclopédica” que, segundo o breve diagnóstico ali apresentado, é o que impera nos currículos brasileiros hoje. “O elemento comum mais importante são as competências, não os conteúdos”, diz Mangabeira Unger, referindo-se ao que deve orientar a construção da Base Nacional Comum. Segundo ele, muita coisa já é consensual no debate sobre o currículo. “O currículo deve dizer claramente o que os alunos têm direito a aprender em cada estágio da sua escolaridade; deve ter flexibilidade para que o aluno, sobretudo no ensino médio, possa ajudar a construir seu próprio caminho curricular, com matérias profissionais e escolhas, sem confundir essa flexibilidade individual com a especialização precoce, que é uma maldição histórica do ensino brasileiro; e deve romper com a decoreba e o enciclopedismo”, diz o ministro, elencando aquilo que, a ser ver, já é um consenso. As discordâncias são outras e, segundo ele, se dão entre “teses mais conservadoras e teses mais transformadoras”. O primeiro debate a ser feito, a partir daquele consenso inicial, explica o ministro, é se o currículo deve priorizar as “competências analíticas” – como raciocínio lógico e interpretação de texto, por exemplo – ou os conteúdos. “Eu defendo a tese da primazia das competências sobre os conteúdos”, avisa. O segundo ponto, diz, é se, no que diz respeito os conteúdos, deve prevalecer a abrangência ou a profundidade. O ministro aposta neste último, na forma de um “aprofundamento seletivo”. Isso significa, segundo ele, que “os conteúdos podem ser itinerantes ou variados”. Mangabeira elenca ainda um terceiro debate, que ele considera mais profundo, embora não apareça de forma específica no documento, entre “a ortodoxia universitária e o preparo para a rebeldia”. “Eu sustento que o currículo do ensino básico, e sobretudo do ensino médio, deve apresentar cada método e cada área do conhecimento sob pontos de vista contraditórios. Que imunize o jovem contra o conformismo e o prepare para uma rebeldia necessária à libertação da mente”, explica. O quarto tema em debate, por fim, seria a “reconciliação entre o compromisso igualitário e o reconhecimento dos talentos individuais”, que aparece encaminhado no documento, entre outras coisas, com a criação das escolas especiais.

Para a professora Marise Ramos, que estuda a pedagogia das competências, no entanto, o “consenso” citado pelo ministro existe apenas entre aqueles que estão no seu mesmo “campo ideológico”. “Existe um dissenso anterior: a própria crítica à pedagogia das competências demarca uma diferença de visão de mundo, de sociedade, de ser humano e de educação”, anuncia. E compara: “Primeiro essas conclusões estão orientadas por uma compreensão de que o ser humano é uma espécie guiada pelos seus interesses, ou seja, de que, deixados livremente aos seus interesses, eles estabelecerão relações de harmonia e de funcionalidade na sociedade. E como se estruturam os interesses dessa espécie? Mediante o desenvolvimento das suas capacidades e das suas competências. O desenvolvimento de competências seria, então, o aprimoramento desse ser que é capaz de reconhecer seus interesses e agir guiado por eles para ter êxito na sociedade. Mas existe outra perspectiva, que acredita que o ser humano é um ser que produz a sua existência social e coletivamente, a partir de pressupostos comuns de construção da história dessa mesma espécie. Então, os interesses não são individuais, mas sociais. Outra divergência é sobre para que vale o conhecimento. Naquela primeira concepção, os conhecimentos são instrumentos dos quais essa espécie interessada se vale para atingir seus objetivos. São apenas insumos que, ao se articularem com os elementos cognitivos, vão constituindo competências operativas e eficazes. Numa outra visão, o conhecimento é uma forma de apreender o que é a realidade material e social para que o ser humano se aproprie do que foi produzido por ele mesmo e seja capaz de transformá-la. A lógica das competências compreende o conhecimento como instrumento e os conteúdos de ensino, que são o conhecimento convertido pela escola em algo a ser ensinado, como insumos. Por isso se defende que vale a pena aprender umas coisas mas não outras: é sempre na lógica instrumental. Já na nossa perspectiva, o conhecimento é patrimônio científico, social e cultural, que todos os sujeitos precisam aprender para agirem sobre a realidade”. Ela diz, no entanto, não ter dúvida de que a concepção que orienta o documento é hegemônica. “A disputa não está colocada nem por dentro do MEC, nem por dentro das políticas de educação”, conclui.

PNE: debate ampliado

Uma das críticas mais contundentes que tem sido feita à proposta da SAE é o fato de ela não considerar a existência do PNE, que foi fruto de ampla mobilização da sociedade civil e de discussão no Congresso Nacional. Um documento da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) que avalia a proposta preliminar da SAE, por exemplo, é contundente: “o norte da Pátria Educadora deve se concentrar no cumprimento integral da Lei 13.005, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE, 2014-2024), observando-se o conjunto de diretrizes do Plano (art. 2º da Lei) e os prazos para implementação das 20 metas e das 254 estratégias”, diz a introdução do texto.

Diferente da versão preliminar mais geral, no novo documento que acabou de sair, explorando o eixo sobre o “federalismo cooperativo”, a SAE já faz referência direta ao PNE. Antes, como resultado das primeiras críticas que surgiram, o ministro Mangabeira Unger produziu um pequeno texto de esclarecimento sobre o que ele considerou alguns “mal-entendidos e divergências” suscitadas na reunião de 26 de abril, em que o documento foi apresentado. Sobre a “objeção” de que a proposta contradizia o PNE, o texto explica: “Não há conflito. O Plano Nacional de Educação é uma lei-arcabouço. Fixa metas e define procedimentos. Invoca conceitos abstratos como o do regime de cooperação dentro da Federação sem dar-lhes conteúdo institucional. A proposta preliminar da Pátria Educadora começa a dar conteúdo a estas diretrizes. Demarca trajetória para transformá-las em realidade”. O senador Cristóvão Buarque também se coloca na contramão dessas críticas, defendendo que o grande mérito do documento da SAE é exatamente fazer com que se saia da discussão do PNE. “Esse PNE não vai resolver nada, foi uma coisa feita para atender aos interesses das corporações. São metas soltas, não diz como fazer nada”, critica.

Apesar de reconhecer que, por conta da correlação de forças, o PNE aprovado expressa muitas derrotas dos movimentos sociais, Luiz Araújo discorda dessa avaliação. “Opor o documento ao PNE é uma boa estratégia para impedir que o Plano fique na gaveta e apareçam vária propostas mirabolantes para o problema, que concentrem recursos públicos sem ter sido isso fruto do debate do PNE”, diz, completando: “Vai ser um movimento contraditório: o movimento social vai brigar para fazer valer aquilo que é progressista no PNE. E vai haver uma briga muito grande para cumprir metas quantitativas em função do ajuste fiscal”.

Para além do debate sobre a relação com o PNE, o professor-pesquisador Marcelo Mello, que é assessor da vice-direção de ensino da EPSJV/Fiocruz, considera urgente o questionamento sobre com quem será feita a “obra de construção nacional” que a proposta da SAE anuncia no subtítulo do documento preliminar. Ele ressalta, por exemplo, o fato de o documento citar o Sistema Único de Saúde (SUS) como referência para algumas iniciativas relativas ao federalismo, sem considerar que o SUS foi resultado de um processo histórico de luta coletiva.

Alertando que essa versão preliminar elaborada pela SAE tem o objetivo de “suscitar o debate”, e que não deve, portanto, ser “transformada em fetiche e interpretada como se fosse o anúncio de políticas públicas”, o ministro Mangabeira Unger insiste que o grande desafio é fazer com que o debate “envolva toda a nação”. Mas avisa: “Não deve ser um debate dominado por técnicos especialistas nem por representantes corporativos do capital privado ou do sindicalismo”.

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