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Ontem e hoje: um debate sobre a proteção ao emprego

Fim da estabilidade na iniciativa privada, no passado, e descaracterização do FGTS, no presente, são importantes para pensar o desemprego e a precarização do trabalho
Redação - EPSJV/Fiocruz | 11/07/2022 15h55 - Atualizado em 12/07/2022 16h18
Foto: Fernando Frazão/ABr

Num país com mais de 12 milhões de desempregados, pode até ser difícil acreditar, mas houve um tempo em que trabalhadores brasileiros da iniciativa privada podiam ter estabilidade no emprego. E, na avaliação de especialistas ouvidos por esta reportagem, foi exatamente a suspensão desse direito que marcou o início de um longo processo de flexibilização da legislação do trabalho, que atingiu seu auge em 2017, com a lei nº 13.467, da Reforma Trabalhista.

Esse tempo passou. E se é verdade que o fim da chamada estabilidade decenal representou o término do “direito ao emprego”, como diz a advogada e professora de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) Renata Dutra, também é fato que, contraditoriamente, a medida que foi posta no lugar – o FGTS, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – é reconhecida hoje como um benefício para os trabalhadores, apesar da descaracterização que vem sofrendo nos últimos anos.

Um pelo outro

A mudança foi em 1967, em plena ditatura empresarial-militar, atendendo a uma reivindicação do empresariado brasileiro que, segundo Murilo Pereira Neto, historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pressionava os governos desde o final da década de 1940. De acordo com o pesquisador, o discurso era em prol de uma “modernização capitalista” que passava por tornar o mercado de trabalho “menos rígido”, dando ao empregador a “liberdade para demitir e contratar”. De acordo com o artigo 492 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o trabalhador que completasse dez anos na mesma empresa adquiria estabilidade na medida em que, para demiti-lo sem justa causa, o empregador teria que pagar uma indenização robusta, que, em geral, não valia à pena. De acordo com Pereira Neto, alguns empresários demitiam os funcionários pouco antes de completarem dez anos de casa, como forma de burlar a lei, mas essa não era a regra, tanto que o que se viu foi a pressão por uma solução definitiva. “Instaura-se o FGTS, pelo qual o trabalhador vai acumulando ao longo do vínculo e recebe esse depósito como uma indenização quando é dispensado. Mas, em contrapartida, agora ele pode ser dispensado sem motivo”, compara Renata Dutra. Com a mudança, na letra da lei, os trabalhadores passaram a poder optar entre permanecer no regime da estabilidade decenal ou abrir mão dela e passar a ter direito ao FGTS, formado pelo pagamento de 8% do salário pela empresa. “O trabalhador que já era estável só mudava se quisesse. Agora, no momento da contratação, você falar que o trabalhador tem o direito de optar é indiferente, porque quem escolhe mesmo é o empregador”, analisa. 

Segundo a professora da UnB, o fim da estabilidade decenal “modificou completamente as relações de trabalho no nosso país”. E isso gerou um efeito cascata. “Uma série de prescrições da CLT se tornaram vazias”, diz. Um exemplo é o direito a férias. De acordo com a legislação, quem marca as férias dos funcionários é o empregador, mas, se ele não fizer, o trabalhador pode recorrer à justiça do trabalho para demandar o agendamento. “Qual trabalhador que, podendo ser demitido a qualquer momento sem motivo pelo seu empregador, vai à justiça do trabalho, durante o contrato de trabalho, pedir para um juiz marcar suas férias?”, questiona, reforçando que o medo permanente de ser dispensado inviabiliza a reivindicação de vários outros direitos.

É direito ou não é?

Corta a cena para 2022. Na iniciativa privada, a estabilidade não existe mais desde a Constituição de 1988, quando o direito de optar instituído em 1967 acabou definitivamente, com a universalização do FGTS. A estabilidade foi mantida apenas para servidores públicos, mulheres grávidas, trabalhadores acidentados e dirigentes sindicais – neste último caso, por tempo determinado. Aprovada em 2017, a Reforma Trabalhista criou uma nova modalidade de rescisão contratual, a “dispensa consensual”, em que os funcionários podem sacar o FGTS sem que o empregador precise arcar com todos os custos da demissão sem justa causa – o argumento foi que, na vida real, já eram feitos ‘acordos’ que permitiam sacar o dinheiro do fundo com a devolução informal da multa ao empregador. No mesmo ano, alegando a necessidade de injetar dinheiro na economia, a lei 13.466, resultado da aprovação de uma Medida Provisória pelo Congresso, autorizou o saque de contas inativas do FGTS – ou seja, a ‘poupança’ gerada a partir de empregos anteriores, que normalmente fica intacta quando o trabalhador pede demissão ou é demitido por justa causa. Desde 1990, o recebimento desses recursos de contas antigas era autorizado apenas para quem estivesse há três anos sem qualquer nova conta no FGTS. A questão é que, apesar do que a palavra ‘inativa’ sugere, esse dinheiro guardado no Fundo não seria perdido: ele existe como uma segurança para o momento em que eventualmente o trabalhador for desligado de qualquer outro emprego sem justa causa, para que não fique desamparado, ou como um reforço no momento da aposentadoria.

Não parou por aí. Em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, uma nova liberação extraordinária do FGTS foi autorizada, no valor máximo de um salário mínimo e atingindo não mais as contas inativas. Este ano, no momento em que esta reportagem está sendo escrita, 42 milhões de trabalhadores já sacaram ou ainda vão sacar mais uma parcela do seu FGTS, agora de até mil reais. Os argumentos utilizados em favor dessas medidas são a necessidade de garantir mais renda à população em meio à crise sanitária e de injetar mais recursos na economia. “O próprio Fundo de Garantia, que vem flexibilizando direitos anteriores, agora está sendo flexibilizado nessa nova era do neoliberalismo”, analisa Murilo Pereira Neto.

“Em momentos de crise econômica e de emprego, ou mesmo dentro das conjunturas eleitorais, têm sido criadas medidas de uso dos recursos do Fundo de Garantia para ações pontuais que não têm afinidade com a proposta original”
Murilo Pereira Neto

Alguns analistas vêm chamando atenção de que as exceções têm virado regra. “Em momentos de crise econômica e de emprego, ou mesmo dentro das conjunturas eleitorais, têm sido criadas medidas de uso dos recursos do Fundo de Garantia para ações pontuais que não têm afinidade com a proposta original”, alerta Pereira Neto. Apesar do baixo rendimento, pela lei e pelo princípio que o criou, o FGTS deve funcionar como uma ‘poupança compulsória’ do trabalhador, portanto, com possibilidades restritas de saque fora do momento da demissão ou aposentadoria. A compra da casa própria e a necessidade motivada por doenças graves, como câncer e HIV/Aids, são exemplos de situações em que a retirada antecipada do Fundo é permitida.

A administração dessa ‘poupança compulsória’ a partir de um fundo público possibilitou também que esse dinheiro guardado fosse investido em políticas públicas. Na origem, o foco principal era o financiamento de moradias e obras de desenvolvimento urbano. “Embora você tenha uma realização de depósitos, na lógica de que cada trabalhador tem uma conta, a limitação do manejo dessa poupança fazia com que o recurso desse fundo pudesse ser pensado em uma perspectiva coletiva”, explica Renata Dutra, ressaltando que também isso fica comprometido com a liberação individual do recurso guardado para “injetar dinheiro na economia”. “Em um país [como o Brasil] onde não tem garantia nem emprego, o estrago já foi feito”, resume.

No Brasil de 2022, em que, desde 2017, como uma novidade na série histórica, há mais trabalhadores informais e ‘por conta própria’ do que na formalidade, todo esse debate sobre direitos que dependem de vínculos não-precários pode parecer coisa do passado. “A Reforma Trabalhista foi muito nesse sentido perverso, de defender que, como esses direitos não alcançam mesmo o mercado de trabalho todo, podemos revogá-los. É a lógica do ‘vamos generalizar a precariedade’”, argumenta Dutra.

Ela, no entanto, defende que, contra esse cenário de desemprego e a precarização do trabalho, é importante lutar tanto pela restrição do poder de demissão dos empregadores, que foi perdida com o fim da estabilidade na iniciativa privada, quanto por um sistema indenizatório para os que acabarem sendo desligados, nos moldes do projeto original do FGTS. Junto com a redução da jornada de trabalho, diz, a proteção do emprego é a pauta mais prioritária no contexto de desocupação que o Brasil vive atualmente. “Você poderia criar mecanismos que estendessem as proteções que existem hoje para outros grupos, com prazos maiores e que, sobretudo, disciplinassem o poder do empregador para aplicar essa dispensa. Submeter ao diálogo, dar ao trabalhador a possibilidade de contestação e defesa no ato da dispensa já é uma maneira de democratizar esse exercício de poder do empregador”, defende.

Marcos legais

Longe de ser uma proposta inusitada, essa argumentação tem referência legal e normativa. No artigo 7 da Constituição Federal, que lista os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais no país, o primeiro item cita a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”. O texto aponta para uma “lei complementar, que preverá indenização compensatória”. Como é comum na história do pós-1988 no Brasil, essa outra legislação nunca veio. “Mas os trabalhadores conseguiram inserir isso como prioridade na Constituição”, destaca Dutra.

Não é só. Em 1985, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) pôs em vigor uma norma que tinha objetivos semelhantes. “Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”, diz a Convenção 158. Além disso, o texto garante ao trabalhador a possibilidade de se defender quando a demissão for justificada por falhas no comportamento ou desempenho e de recorrer a um “organismo neutro” caso considere “injustificado o término da sua relação de trabalho”. E, nesse caso, cabe ao empregador provar que havia razões para a demissão. “O empregador deveria ter motivos de natureza técnica, econômica ou disciplinar para justificar [o desligamento], teria que assegurar ao trabalhador devido processo legal para aplicar uma dispensa”, explica Renata Dutra, que considera que, no Brasil, essa convenção da OIT acabaria cumprindo o papel da lei complementar que deveria ter regulamentado o texto constitucional.

“A gente está há mais de 30 anos sem nenhum tipo de proteção universal contra a dispensa individual"
Renata Dutra

A adesão do Brasil a essa convenção foi aprovada pelo Congresso em 1992, ratificada em 1995 e promulgada em 1996. Mas, no mesmo ano em que entrou em vigência, foi denunciada formalmente pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o que acabou levando o país a deixar de ratificar essa normativa. Em resposta, foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), nº 1625 contra a suspensão. Até hoje, mais de 25 anos depois, o julgamento não foi concluído.

Entre os 34 países que ratificaram a Convenção 158 estão Espanha, Finlândia, França, Portugal, Austrália e Suécia. A forma como isso influencia as políticas de cada lugar pode variar, mas Renata Dutra acredita que a simples existência desses mecanismos de disputa pela proteção do emprego por parte dos trabalhadores já modifica o cenário. Ilustrativo disso, segundo ela, é como, na contramão da defesa do direito ao emprego, o Brasil naturalizou o fenômeno da demissão em massa. “A gente está há mais de 30 anos sem nenhum tipo de proteção universal contra a dispensa individual. E com a Reforma Trabalhista [de 2017], a dispensa coletiva se equiparou à individual para todos os efeitos”, alerta Dutra, ressaltando que, em junho deste ano, o STF finalmente julgou inconstitucional esse artigo da nova lei. “Essa era uma das medidas da Reforma que nos colocava em situação de barbárie porque o empregador podia destruir a vida econômica de uma cidade, de um setor, sem ter nem que negociar com o sindicato, e sem ser responsabilizado por isso”, explica.

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