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Manifesto dos Pioneiros, marco da defesa da escola pública, universal e laica, faz 90 anos

Publicado nos principais jornais da época, o documento defende o modelo de educação da Escola Nova e aborda temas como a escola única, condenando a dualidade estrutural e a importância de não se antecipar a especialização na educação básica, na contramão do que defende hoje a Reforma do Ensino Médio
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 07/12/2022 13h37 - Atualizado em 08/12/2022 12h34
O principal redator do manifesto, Fernando de Azevedo, em visita a colégio no Rio de Janeiro. Em 1926, Azevedo foi responsável por realizar o ‘’Inquérito sobre a Instrução Pública em São Paulo” a pedido do jornal O Estado de S. Paulo. Foto: IEB/USP

Um texto clássico é aquele que força a reflexão sobre o momento atual. E esse é exatamente o caso do que ficou conhecido como o “Manifesto dos Pioneiros”, lançado há 90 anos nos jornais de circulação nacional. Seu título completo era “A Reconstrução Educacional no Brasil: Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova – Ao Povo e ao Governo”, e o povo ali não é mero acaso, diz a professora Libânia Xavier, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Era uma forma de comprometer o governo, uma vez que o documento seria lido pela elite letrada, enquanto a maioria da população era analfabeta”. E ainda que se falasse em “reconstrução”, para José Eustáquio Romão, um dos fundadores do Instituto Paulo Freire, o documento é a “certidão de nascimento da educação brasileira, com todas as suas ambiguidades, é um dos instrumentos mais importantes dessa história”. Um documento que defende “com muita ênfase a educação como direito de todos e de todas, sua obrigatoriedade e gratuidade”, diz o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas Gerais) Carlos Jamil Cury.

Além disso, lembra a professora da Universidade de São Paulo (USP) Carmen Sylvia Moraes, o texto se opõe à diferenciação de um ensino para as elites e outro para a classe trabalhadora. Sua lembrança se dá em oposição a recente implantação da Reforma do Ensino Médio em alguns estados – com ideias opostas ao que se defendia há quase um século e classificada por ela como “apartheid social” ao direcionar precocemente a classe trabalhadora ao ensino técnico. “O ensino médio sempre foi o algoz da educação por marcar a dualidade de um ensino para as elites e outro para classe trabalhadora. Na carta está bem clara a proposta de que o conteúdo curricular fosse ao alcance de todos”, diz. Romão completa: “o manifesto é importante porque reuniu esses educadores em um movimento com duas tendências muito fortes: a unificação daquilo que poderia se chamar no futuro de sistema nacional de educação, uma vez que só existiam sistemas estaduais e da profissionalização da educação, porque antes a educação era quase uma missão amadorística”.

As consequências não vieram apenas das ideias expostas, mas também pelos cargos de gestão que alguns dos signatários assumiram e se refletem até hoje. “A perspectiva da reprodução de profissionais para atuarem na educação básica – formando uma consciência nacional e uma mentalidade mais racional –, bem como para exercerem as atividades de pesquisa e ocuparem postos nas universidades e na administração pública, nos permite traçar uma linha temporal que articula o conjunto de iniciativas empreendidas pelos signatários do Manifesto de 1932”, escreve a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Clarice Nunes, no artigo “O Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932): o compromisso com uma vida educada”.

E por que o manifesto foi lançado?

Reprodução A virada da década de 1920 para 1930 foi marcada por movimentações políticas intensas no país e que levaram à chamada Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas na presidência do governo provisório, seguida pelo início da ditadura de Vargas em 1937. Um momento de aceleração no processo ainda incipiente de industrialização do país, da criação das universidades e do começo da institucionalização da ciência no país. “Esse é um período em que havia um esforço de reorganização da sociedade brasileira, que transitava de uma sociedade agrária exportadora para uma sociedade urbana industrial. E nesse terreno, os Pioneiros elaboram qual seria a educação adequada para essa nova sociedade, a sociedade urbana industrial”, contextualiza Lucelma Braga, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Diante de um desejo de mudança geral, os Pioneiros acreditavam que ela viria a partir da democracia e da educação.

No entanto, nem tudo era novo. As propostas que os Pioneiros traziam já estavam sendo gestadas desde a década de 1920, diz Clarice Nunes em seu artigo. “A década de 1920 representa o tempo de afirmação de propostas: as reformas estaduais; a batalha com os católicos e com o atraso educacional; mais amplamente, a afirmação modernista, a de partido político democrático; enfim, a vigorosa proposta de um republicanismo, não de fachada, mas autêntico”.

O estímulo para a elaboração da carta vem do próprio governo provisório, que propôs aos organizadores da 4ª Conferência Brasileira de Educação, realizada em dezembro de 1931, que elaborassem um documento com as demandas nacionais da educação ao final do encontro. O mesmo governo já havia criado, ainda em 1930, o que hoje é conhecido como o Ministério da Educação (MEC). A Conferência foi organizada pela Associação Brasileira de Educação (ABE), criada em 1924, que já estava dividida entre aqueles que defendiam uma educação laica e os que queriam a continuidade do ensino religioso. Diante do impasse, o coordenador da conferência, o jornalista e professor Carlos Nóbrega da Cunha, declarou que não seria possível elaborar o documento. Ele então encarregou Fernando de Azevedo, responsável por implementar na década de 1920 uma reforma educacional do Distrito Federal, então localizado no Rio de Janeiro, como responsável por redigir as propostas. Ao lado dele, outros 25 intelectuais e educadores signatários que defendiam um modelo de educação laico, obrigatório e gratuito baseado no modelo pedagógico proposto pela Escola Nova.

Com isso, aqueles que eram favoráveis ao ensino religioso deixaram a ABE e criaram em 1933 a Confederação Católica Brasileira de Educação, organização que garantiria a inclusão do ensino religioso na Constituição de 1934. “Praticamente todos eram católicos, mas o que havia era uma interferência muito grande da Igreja Católica em assuntos educacionais”, diz Carlos Carvalho, professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Já Clarice Nunes escreve que o manifesto “promove um deslizamento da crença dos educadores, até então canalizada predominantemente pelos valores das instituições religiosas (no caso, sobretudo, a Igreja), para os valores científicos capazes de produzir, quando aplicados à educação, um novo ethos”.

E o que eles defendiam?

“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade o da educação”, começa o texto. Mais a frente, os autores questionam o pouco reflexo das mudanças da sociedade na educação. “Porque os nossos programas se haviam ainda de fixar nos quadros de segregação social, em que os encerrou a república, há 43 anos, enquanto nossos meios de locomoção e os processos de indústria centuplicaram de eficácia, em pouco mais de um quartel de século? Porque a escola havia de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, como uma instituição enquistada no meio social, sem meios de influir sobre ele, quando, por toda a parte, rompendo a barreira das tradições, a ação educativa já desbordava a escola, articulando-se com as outras instituições sociais, para estender o seu raio de influência e de ação?”.

Naquela época, a educação não estava organizada como política pública nacional e os Pioneiros apresentam uma proposta para suprir essa lacuna e que foi aperfeiçoada ao longo dos anos, explica Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Tanto Ramos quanto José Romão ponderam que ainda que não existia uma legislação específica para o Sistema Nacional de Educação (SNE), uma demanda antiga e que teve seus desdobramentos mais recentes abordados na Poli nº 83. “A Lei de Diretrizes e Bases, por exemplo, é uma lei nacional; as diretrizes gerais que o Conselho Nacional de Educação formula são válidas por todo território nacional. Então, na prática existe um sistema. Ele pode ser não muito bem articulado, tem defeitos e muitos educadores consideram que é necessário aprovar uma lei com o nome sistema nacional de educação do ponto de vista legal. Eu também acho que é importante, mas o sistema existe na prática e teve seu começo no manifesto”, diz Romão.

Na configuração elaborada pelos signatários, caberia ao Estado ser o grande articulador desse sistema. Uma proposta inspirada também em experiências concretas, uma vez que alguns dos signatários foram gestores dos sistemas de ensino estaduais ou municipais. Esse é o caso de Fernando Azevedo, responsável por reformas no Rio de Janeiro e São Paulo; Manuel Lourenço Filho no Ceará e Anísio Teixeira na Bahia e Rio de Janeiro. Na proposta, à União caberia a educação em todos os níveis, enquanto os estados seriam responsáveis pela gestão no interior. Na estrutura indicada por eles, deve haver o respeito a autonomia das regiões e a realização de uma gestão descentralizada, ao mesmo tempo em que cabe ao Ministério da Educação zelar pelo cumprimento dos princípios constitucionais e previstos em leis relativas à educação. “Ao governo central, pelo Ministério da Educação, caberá vigiar sobre a obediência a esses princípios, fazendo executar as orientações e os rumos gerais da função educacional, estabelecidos na carta constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde haja deficiência de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural”, diz o texto.

Atentos às questões econômicas e às variações de orçamento, o texto também pede a garantia de recursos para assegurar os meios e os materiais para a administração da função educacional. “A autonomia econômica não se poderá realizar, a não ser pela instituição de um “fundo especial ou escolar”, que, constituído de patrimônios, impostos e rendas próprias, seja administrado e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional, pelos próprios órgãos do ensino, incumbidos de sua direção”, escrevem. Um pedido que foi atendido pela Constituição de 1934, que em seu artigo número 156 diz “a União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal, nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos”. Uma determinação que não chegou a ser concretizada com o início da ditadura de Getúlio Vargas.

Para além de uma educação como direito de todos, laica e pública, o manifesto também defende uma outra maneira de educar as crianças e jovens de sete a 18 anos de ambos os sexos, uma novidade em comparação ao que defendia as escolas de ensino religioso. “A educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida”, disparam os signatários do manifesto, sem deixar de reconhecer que a educação está vinculada à filosofia de cada época. A velha estrutura que mencionam é uma educação que está desvinculada de um saber científico e está voltada para aqueles que têm maior poder econômico. Essa noção deveria ser substituída por uma educação que assuma um “caráter biológico”, “reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitiam suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social”, diz o texto.

Para Libânia Xavier essa defesa do biológico pode causar estranheza nos dias de hoje, mas se trata principalmente de uma defesa da ciência e do questionamento de privilégios. “Essa ideia do direito biológico está baseada na percepção de que a sociedade era um organismo vivo e que a escola, como instituição social, deveria proporcionar um desenvolvimento cognitivo. Naquele momento a psicologia ainda está muito calcada nos testes de inteligência, acreditando que era possível e interessante cientificamente você estabelecer escalas de coeficiente de raciocínio e que por meio dessas escalas fosse possível adequar o ensino ao desenvolvimento biológico e cognitivo de cada aluno ou dos alunos”, argumenta.

Carlos Cury reforça que a menção ao biológico se deve a uma visão de educação integral, da sociedade como organismo e completa: “o manifesto adere claramente à pedagogia escolanovista em oposição a uma escola em que o aluno era um mero receptor, então propõe uma visão de um aluno que seja estimulado no seu potencial a pesquisar, a buscar fontes, a fazer estudo do meio, a invadir a biblioteca, é esse tipo de aluno ativo. Então a gente pode dizer que se trata de uma passagem de uma educação centrada no professor para uma educação centrada no aluno”, diz.

E qual era a proposta pedagógica defendida?

IEB/USPOs pesquisadores ouvidos por essa reportagem lembram que, apesar de diverso, o grupo de 26 signatários defendia o modelo de educação da Escola Nova com um maior ou menor grau de radicalismo democrático, ainda que socialistas estivessem presentes nas figuras de Paschoal Leme e Roldão de Barros. O movimento escolanovista era um movimento internacional e teve como seu principal nome o filósofo norte-americano John Dewey e tinha propostas liberais clássicas. O que significa “defender a laicidade do Estado, as liberdades individuais e a liberdade de mercado. Naquele momento, o pensamento liberal estava se opondo ao pensamento conservador que se condensava com as monarquias e era o mais avançado naquele momento porque se opunha tanto à monarquia quanto ao poder da Igreja”, explica Marise Ramos.

Como um modelo que desloca a atenção do professor para o estudante, há uma defesa da participação dos alunos na gestão da escola. Isso foi experimentado, conta Libânia, no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no Rio de Janeiro, o primeiro a passar pela mudança, mas construído ainda na época do Império. “Essas experiências, infelizmente, não tiveram prosseguimento, mas ela traz para dentro da escola o questionamento da sociedade e a possibilidade de que a escola pode formar pessoas que queiram criar um mundo diferente”, defende. Ao mesmo tempo, a professora da UFRJ diz que há limites para essa mudança. “[O modelo baseado na democracia americana] não vai questionar a existência de classes sociais, mas ela vai querer, no caso do Anísio Teixeira, aprofundar e ampliar a igualdade social. Ele acreditava que por meio de uma experiência democrática vivida na escola, a sociedade poderia se transformar e ampliar a participação”, explica. “Classe não é um conceito para os liberais nem para o manifesto. A escola deveria ser voltada para os interesses e possibilidades dos estudantes e democratizada. É uma ampliação do direito, mas delimitado a sua condição de classe”, acrescenta Ramos.

E mesmo entre defensores da Escola Nova havia divergências. “O Anísio Teixeira, que depois vem a se constituir em um dos principais intelectuais no campo da educação no Brasil, tinha uma visão muito mais aberta, muito mais inovadora do que quem redigiu o manifesto que foi o Fernando de Azevedo. O Anísio era o defensor mais radical e isso o aproximava do Paschoal Leme, dessa ideia da educação pública, gratuita e laica”, acrescenta o professor da UFU Carlos Carvalho. Entre outras diferenças existentes dentro das propostas da Escola Nova defendidas pelos signatários está a possibilidade de participação de escolas privadas, diz o professor. Enquanto Fernando de Azevedo defende a participação privada nesse processo, Anísio Teixeira se opõe aos subsídios às escolas particulares. No entanto, o que aparece no texto é a concepção de Azevedo, ainda que como medida temporária, onde se lê: “Afastada a ideia do monopólio da educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas, a ‘escola única’”. Um temporário que dura até os dias de hoje, sem que o ensino comum a todos tenha sido implementado.

Apesar da comparação frequente entre as concepções democráticas defendidas por Fernando Azevedo e por Anísio Teixeira, é Azevedo e o principal redator do texto. Já Teixeira é considerado um dos nomes mais progressistas entre os signatários. Como foi também, diz Romão, “a grande educadora que não é reconhecida assim, mas apenas como poeta, que é a Cecília Meirelles, uma das poucas mulheres que assinou o manifesto”. Se não foi a voz de destaque no primeiro manifesto, não foi por falta de proximidade com as ideias da Escola Nova. Teixeira foi discípulo direto de John Dewey e estudou com o educador nos Estados Unidos. “E de lá trouxe ideias para concepção das escolas parque”, continua Romão.

“Classe não é um conceito para os liberais nem para o manifesto. A escola deveria ser voltada para os interesses e possibilidades dos estudantes e democratizada. É uma ampliação do direito, mas delimitado a sua condição de classe”, Marise Ramos, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz

E o ensino profissional?

“A escola socializada, reconstituída sobre a base da atividade e da produção, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (aquisição ativa da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os homens, o espírito de disciplina, solidariedade e cooperação, por uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes”. Esse trecho do manifesto mostra o quanto o trabalho é uma pauta importante para os Pioneiros. A crítica ao combate à dualidade do ensino também é colocada expressamente e, propõem que o ensino secundário – o que hoje se entende por segunda metade do ensino fundamental e ensino médio – seja pautado por um currículo que não divorcie atividades manuais das intelectuais em seu primeiro ciclo. “A escola secundária, unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais, terá uma sólida base comum de cultura geral (3 anos), para a posterior bifurcação (dos 15 aos 18)”, em seção de preponderância intelectual (com os 3 ciclos de humanidades modernas; ciências físicas e matemáticas; e ciências químicas e biológicas), e em seção de preferência manual, ramificada por sua vez, em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais, decorrentes da extração de matérias primas (escolas agrícolas, de mineração e de pesca) da elaboração das matérias primas (industriais e profissionais) e da distribuição dos produtos elaborados (transportes, comunicações e comércio)”, propõe
o texto.

Ainda que existam diferenças de perspectivas pedagógicas, Carmen Moraes defende que havia trocas entre os educadores, embora se conheça pouco dessa história. “Dewey esteve na União Soviética e tem um diário em que ele conta uma passagem de encontro com educadores que estavam discutindo a educação para o trabalho, o trabalho como princípio educativo. Então ele provavelmente assimilou algumas práticas pensadas ali voltadas para a organização do ensino. Ao mesmo tempo em que a Rússia publicava livros da Escola Nova”. Moraes acrescenta que o formulador da Escola Nova foi um grande defensor dos direitos humanos e que protegeu, nos Estados Unidos, pessoas que estavam perseguidas pelos regimes nazista, na Alemanha, e stalinista, na União Soviética. “Inclusive deu guarida para [um dos líderes da Revolução Russa] Leon Trotsky”. Ao mesmo tempo, “Dewey acreditava na potencialidade civilizatória do capitalismo”.

Para se referir ao modelo de integração entre ensino profissional e intelectual, os pioneiros falam em escola única, um nome bastante próximo daquilo que foi proposto por Antonio Gramsci, como escola unitária. Mas a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Marise Ramos entende que é preciso diferenciá-las. Em livro sobre as correntes pedagógicas no Brasil, Ramos argumenta que a Escola Nova pauta o aprendizado de maneira psicobiológica e é organizada a partir das áreas de interesse do aluno. “Na base dessa proposta está a crítica à compartimentalização e estratificação do conhecimento em disciplinas isoladas. Em contraposição, as matérias seriam desenvolvidas em conexão ativa e concreta com o mundo, por meio de temas relativos à vida dos alunos”, escreve. Em seguida, ela acrescenta que ao considerar estudante e professor individualmente, o modelo torna-se idealista por considerar a educação como motor de modificação da sociedade, sem considerar as condições históricas e sociais dessas pessoas e dessa forma, entendido como um modelo de educação não-crítico.

Fundação Anísio TeixeiraEssa perspectiva se contrapõe à proposta de Gramsci que pauta o modelo educacional pela ideia de que os sujeitos não podem estar descolados do tempo em que vivem. “A educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, de modo que a escola cumpre a função de colocar o estudante em contato com a história humana e com a história das coisas, sob o controle do professor”, escreve Ramos ao explicar a proposta gramsciana, de inspiração marxista. Em outras palavras, a contradição está na realidade e não no pensamento, acrescenta. Ideias que surgiram diante do aumento de escolas profissionalizantes em seu país durante o regime fascista de Mussolini e que levaram o educador Dermeval Saviani a elaborar o método histórico-crítico de educação, que prevê a existência de escolas politécnicas ou unitárias, nesse caso usados como sinônimos. “A diferença é que na proposta de Saviani você tem a formação não apenas de um trabalhador competente no âmbito da sua inserção profissional, que ele seja um bom médico, advogado, um bom trabalhador em empresas, mas ele tenha um conhecimento crítico daquilo que envolve o seu fazer profissional, e ele possa então em função disso caminhar no sentido de diminuir as desigualdades, diminuir a exploração, mas também dos entraves que dificultam que esses trabalhadores tenham o acesso a um compartilhamento dos bens sociais que eles ajudam a produzir. Isso realmente não aparece no manifesto”, diz o professor da PUC-Minas Carlos Cury.

É a reforma de São Paulo que vai orientar o ensino nacional. “O ensino nacional vai ser orientado pela reforma paulista e não pela educação que estava na carta, que defendia um ensino democrático, de acesso a todos, com ensino médio mais longo e aí seguindo aqueles princípios liberais de que todos devem ter as mesmas condições de disputa”, Carmen Sylvia Moraes, professora da Universidade São Paulo.

Consequências e legado

Apesar da defesa dos Pioneiros de uma mesma educação para todos, não é essa a proposta implementada nos anos seguintes. E essa divisão é implementada justamente pelo principal responsável pela carta, quando assumiu o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, em 1933, e promulgou o código de educação do estado. “Fernando de Azevedo fez um grande movimento para ouvir educadores e essa proposta foi importante para São Paulo porque elevou o ensino técnico do primário para o secundário, mas faz na forma dual”, diz Carmen Moraes. E é a reforma de São Paulo que vai orientar o ensino nacional. “O ensino nacional vai ser orientado pela reforma paulista e não pela educação que estava na carta, que defendia um ensino democrático, de acesso a todos, com ensino médio mais longo e aí seguindo aqueles princípios liberais de que todos devem ter as mesmas condições de disputa”, continua.

A dualidade do ensino é a marca do período de Getúlio Vargas no poder. É dessa época a criação de estatais como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (CRVD), Petrobras e Fábrica Nacional de Motores (FNM) e diante de um forte movimento para a industrialização do país, não apenas composto por estatais, Vargas faz um convite para que os empresários participem da criação de um sistema para a educação tecnológica. O professor da PUC-Minas conta que inicialmente houve resistência diante de uma proposta que incluiria mais impostos para o que seria hoje “a turma da Faria Lima”, mas após ouvirem que a segunda opção seria a gestão por parte dos sindicatos, a elite industrial aceitou o pedido. E assim foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em decreto de janeiro de 1942. O responsável por efetivar o ensino dual no país foi Gustavo Capanema, ministro da Educação entre 1934 e 1945. Reforma Capanema foi como ficaram conhecidas as Leis Orgânicas que passaram a organizar a educação no Brasil em âmbito nacional e separaram o ensino profissionalizante do ensino regular ou propedêutico. E mais do que dividir as formas de ensino, aqueles que cursaram o ensino profissionalizante não tinham a possibilidade de validar seus estudos e seguir para uma universidade. Instituições, é verdade, ainda bem raras no Brasil. A Universidade de São Paulo, por exemplo, foi criada em 1934, também com apoio do principal redator do Manifesto dos Pioneiros. É de apenas três anos antes do Estatuto das Universidade Brasileiras, que obrigava as instituições - públicas ou privadas - a oferecerem pelo menos três dos seguintes cursos: Direito, Medicina, Engenharia, Educação, Ciências e Letras. A possibilidade de equivalência dos estudos vem com a primeira Lei de Diretrizes e Bases de 1961. No entanto, conforme explica reportagem da Poli nº 72 a LDB segue com a divisão do que hoje chamamos de Ensino Médio: o curso de formação de professores, o ensino técnico e o secundário. Essa divisão, na prática, permitia a elaboração de currículos diferentes e dificultava a entrada daqueles que não cursaram o secundário, curso destinado àqueles que seguiriam para a universidade.

Entre os bons exemplos vindos dos Pioneiros, Anísio Teixeira assumiu no final de 1931 a Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal, que na época era a cidade do Rio de Janeiro. “Na gestão de Anísio Teixeira, no ensino primário, a questão da quantidade, em termos de ampliação de vagas, via reorganização das matrículas e criação dos novos prédios escolares chegou a um ponto que alterou a qualidade da escola”, escreve Clarice Nunes, da UFF.  A construção de novos prédios escolares chegou a 25, no entanto era apenas a terça parte do inicialmente planejado e em 1935 havia 106.707 crianças matriculadas em um universo de 142.392. Anísio também chegou a normatizar um fundo para garantia de recursos como previsto no texto de 1932, mas não conseguiu concretizá-lo. Também foi com dificuldades que conseguiu recursos para a construção dos prédios escolares e quando renunciou ao cargo, em 1935, ainda havia escolas em espaços alugados.  “Os prédios de aluguel ainda  existiam,  mas  as  exigências de suas condições, em termos de espaço e outros requisitos, haviam sido legalmente  ampliadas  pelos  editais  de  concorrência”, detalha o texto da professora da UFF. Além da atuação no ensino primário, continua Nunes, os cursos de continuação e aperfeiçoamento de adultos - realizados em escolas técnicas secundárias entre 1934 a 1936 - alcançaram grande êxito. O motivo? Grande repercussão na imprensa e pelas associações de classes, que recebiam informes do também signatário Paschoal Lemme e mais próximo a ideais socialistas, coordenador de projeto. Em 1959, Anísio Teixeira passa ser o grande nome de uma nova carta que pede mudanças na educação “Mais uma vez Convocados: Manifesto ao povo e ao govêrno” em que voltam a defesa da escola pública, em um texto que serviria de inspiração para a primeira LDB, e mais uma vez a legislação acaba por conciliar interesses do Estado com privados. E a situação piorou com a chegada da ditadura empresarial-militar em 1964. É durante esse período, em 1971, que morre Teixeira, em circunstâncias ainda mal explicadas.

Rovena Rosa/Agência BrasilPara a professora Carmen Moraes, os grandes protagonistas dos ideais da educação não dualista nos ‘anos de chumbo’ foram os movimentos operários e seu papel de capacitação dos trabalhadores das fábricas, nesse caso, com uma formulação mais próxima da escola gramsciana ou politécnica. “Nós tínhamos escolas no Brasil inteiro nesse movimento clandestino e que se consolidaram como escolas operárias”, diz e continua: “Esse movimento fertilizou a nova organização do ensino médio, que influenciou a concepção de educação dos Institutos Federais. Não podemos esquecer também do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), cujas elaborações têm essa concepção de educação como base e que vão fomentar o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja)”. Discussões também incorporadas na elaboração da Constituição de 1988, quando ela prevê o acesso universal em todos os níveis de ensino à escola pública e nos debates da nova LDB, aprovada em 1996, e que pouco leva em conta o trabalho como princípio educativo.

Sem deixar de reconhecer a importância do manifesto lançado há 90 anos para a defesa da escola pública, Carmen Moraes considera o lançamento de um novo documento, diante de tantas mudanças sociais na educação profissional e no mundo do trabalho. Entre as questões levantadas por Moraes está a possibilidade de oferecer cursos técnicos de duração cada vez menor e focados em resolver problemas, sem tempo para que o domínio do processo e o conhecimento científico envolvido seja explicitado. A comparação feita por ela se dá em relação a chegada do Pronatec, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, criado em 2011 e que limitou o Proeja ao dar prioridade aos cursos do Sistema S. “Com o Proeja, tanto o Ministério do Trabalho como da Educação começaram a usar o termo “arco educacional” e eliminar o termo “competência”, o que significa que o trabalhador vai ter uma compreensão para além do técnico, que engloba outros fazeres, e que permite que ele tenha um leque maior de opções de posições, porque ele tem um domínio maior do seu processo de trabalho. Se você não entende física, química, sua qualificação vai ser muito baixa. Você precisa do conhecimento que dá sustentação aos saberes operacionais”, reflete. E fazendo um exercício de vislumbrar o que deveria ser dito em um novo manifesto, a professora aponta a necessidade de um diagnóstico do trabalho em um país que se desindustrializou desde a década de 1970 e da perda da proteção social com as recentes reformas da previdência e trabalhista. “Não podemos pensar a escola sem pensar na economia, no contexto social como um todo. Podemos ter uma escola boa com essa reforma trabalhista, que precariza tudo? São trabalhadores que estão vivendo eternamente o tempo presente, com uma reforma da previdência que não garante que o trabalhador possa gozar do seu direito de descanso”, finaliza.