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Entrevista: 
Luiz Carlos de Freitas

‘Todo o projeto educativo da revolução está ligado à construção do socialismo’

Foi há exatos 100 anos que um levante de trabalhadores, muitos deles do campo, pôs fim ao governo absolutista. Às lutas contra a opressão e o autoritarismo da Monarquia, somou-se uma reivindicação mais ampla, por um tipo de liberdade que não cabia nos limites da República liberal que o governo provisório, que chegou ao poder com a queda do czar, podia oferecer. Foi em outubro de 1917 que, sob a condução do Partido Bolchevique, o mundo assistiu, atônito à primeira revolução socialista da História. Para esse novo mundo que surgia, era preciso construir “um novo homem e uma nova mulher”, tarefa que deu origem a uma experiência única – e pouco conhecida – de educação, mediada por uma nova concepção e prática do trabalho. É sobre essa “pedagogia socialista”, herança da Revolução Russa, que o professor Luiz Carlos de Freitas nos fala nesta entrevista, feita por email. Aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, já na década de 1990 ele desenvolveu estudos sobre a “teoria pedagógica” em Moscou. Desde então, Freitas tem sido um dos principais incentivadores dessa discussão no Brasil, por exemplo, através da tradução das principais obras que retratam as discussões daquele momento, de autores como Krupskaya e Pistrak. Ao recuperar os conceitos orientadores das mudanças educacionais em meio à revolução, ele destaca a noção de politecnia e suas especificidades no projeto de construção de uma sociedade sem classes. Além disso, descreve as mudanças que esse processo sofreu, com embates e inflexões importantes durante o período estalinista. Por fim, fala sobre o legado – e o aprendizado – que essa experiência pode trazer para a educação crítica nos dias de hoje.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/10/2017 12h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Quais as características principais da escola socialista nascida e posta em prática na Rússia com a revolução?  O que era a “escola única do trabalho”?

Falar da educação na Revolução Russa exige que periodizemos e reconstruamos as etapas pelas quais ela passou. A própria historiografia russa faz isto e nela, um dos períodos mais férteis e importantes, em minha opinião, é exatamente o que vai de 1917 a 1931 – 1917 porque é o início da construção socialista em seu período de transição e 1931 porque é o ano em que a política educacional russa faz um giro considerável, com a implantação da primeira reforma educacional já sob [Josef] Stalin e o impacto de sua revolução cultural. O fundamento de todo o plano educacional deste período da revolução é criar uma nova escola com a finalidade de dedicar-se à formação de um novo homem e uma nova mulher, com vistas a viver em uma sociedade sem classes. Krupskaya [revolucionária russa, liderança no campo da educação, que foi casada com Lenin], no prefácio da publicação da ‘Escola Comuna’, dirá: “A maioria [dos pedagogos da revolução] sabia apenas uma coisa: que a nova escola não deveria parecer-se com a antiga”. Nesta nova organização social sem classes, as instâncias de participação coletivas são uma peça fundamental na organização da vida social – os soviets ou conselhos. A “sovietização” da sociedade implica estabelecer novas finalidades para a educação voltadas, durante o período de transição ao socialismo, para a preparação da juventude para a participação ativa na construção da vida coletiva em uma sociedade sem classes sociais, as quais se extinguem no decorrer do período de transição. No entanto, este processo só é possível quando as classes operária e campesina se tornam “donas da própria produção” e cumprem seu papel histórico.

Os pioneiros da educação russa são prescientes da necessidade de uma formação ampla e de massa para o futuro da revolução. Isso inclui a preparação técnica e profissional para o trabalho, mas vai muito mais longe. Como neste período ocorre uma rápida industrialização da economia russa, que demanda mais e mais técnicos, esta será uma tensão que permeará os rumos da educação. Dessa visão ampliada derivam as novas finalidades da educação sob a revolução – tanto em forma como em conteúdo. E, portanto, a nova escola se torna única, ou seja, um mesmo caminho por onde se formam todos os jovens, ressalvadas as inclinações dos estudantes. A escola deixa de ter caminhos que são definidos pela origem de classe.

Pelo baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas, aliado, depois, à carência própria dos momentos de guerra, o trabalho era um elemento central para a garantia das condições materiais de sobrevivência da população e das conquistas da revolução como um todo. Como o projeto de educação se encaixa nesse contexto?

Aproximadamente até 1922 as condições do país obrigaram a educação a funcionar de maneira precária. Existiam milhares de crianças órfãs deixadas pela guerra. Faltava tudo. Nestas condições a ideia de unir o trabalho com a educação passou muitas vezes pela forma do trabalho como autosserviço ou trabalhos simples em oficinas. A economia estava desestruturada. Mas, seja por isso ou pelo entendimento do papel do trabalho no desenvolvimento humano e social, todo o projeto educativo da revolução está ligado à construção do socialismo e sua defesa. Krupskaya dirá que o jovem soviético em uma mão segura o fuzil para defender a revolução e na outra o martelo para construir a nova ordem social. À medida que a economia se estrutura e se desenvolve, novas e mais complexas formas de união do trabalho com a educação são ensaiadas, especialmente em escolas experimentais-demonstrativas que têm a finalidade de orientar a política pública. No processo de assenhorar-se da produção da vida, onde todos se constituem como produtores da vida, o trabalho é cada vez mais tomado como a categoria central de organização do sistema educativo, do início ao fim.

Para fugir da escola antiga, livresca, o conteúdo da escola tem que estar “justificado” pela vida e, tanto quanto as formas que a escola assume, ser correspondente às finalidades da nova sociedade dos “soviets”. E como já não faz sentido a divisão entre trabalhadores que pensam e trabalhadores que executam, emerge um sistema politécnico de preparação para a participação ativa na vida coletiva que organiza as várias instituições sociais participantes deste processo, com destaque para o papel da escola como um centro cultural inserido na comunidade. Daí que a nova escola seja uma escola única e do trabalho. Pela porta de entrada do trabalho socialmente necessário, chega-se à vida, à auto-organização (pessoal e coletiva) e ao conhecimento sistematizado, em estreita ligação com o estudo da atualidade – que em última instância valida a forma e o conteúdo da nova escola. Em geral, a proposta organiza um sistema politécnico que faz com que os anos iniciais de escolarização sejam preparatórios para a politecnia do trabalho exercitada de forma mais elaborada no segundo grau e, igualmente, preparatória para especializações em ramos definidos após os 17 anos – excepcionalmente após os 15. O trabalho perpassa todo o sistema educacional e é modulado segundo os objetivos da educação para aquele nível de ensino e segundo a idade da criança: nos anos iniciais, autosserviço, trabalho socialmente necessário e em oficinas escolares; nas idades mais avançadas, chega ao trabalho produtivo em fábricas e no campo em determinados ramos da produção.

Pistrak [um dos principais educadores socialistas do período] mostrará como a escola do trabalho russa pode ser só uma escola do trabalho (sem atingir um estágio de politecnia, ainda, devido ao entorno onde se localiza) ou uma escola do trabalho politécnico, significando, neste caso, a existência de um entorno que permite e exige o domínio de formas de trabalho tecnologicamente mais complexas em vários ramos da produção. Este é o coração estratégico da proposta dos pioneiros da Revolução Russa, que norteia igualmente a nascente Pedagogia Socialista.

Na discussão sobre o conceito de politecnia, nos deparamos frequentemente com uma compreensão do trabalho como sinônimo da forma assalariada que ele assume na sociedade capitalista.  Qual a diferença entre uma educação que prepara para o trabalho e para “especializações”, no contexto de uma sociedade de classes, como a nossa, daquela desenvolvida na sociedade socialista?

O trabalho na sociedade capitalista obedece a relações sociais diferentes, construídas em torno da propriedade privada e do assalariamento da força produtiva. Neste contexto, o trabalho tem que ser visto em suas positividades e negatividades.  A forma mais fácil de lidar com essas contradições é declarar que na sociedade capitalista o trabalho está corrompido e pronto. Não estou certo se isso ajuda, pois nos retira do debate e possivelmente da luta. Há um caminho mais difícil, que é enfrentar o problema. Também na Rússia, durante o período de transição, havia quem achasse que não era hora de se pensar em uma escola do trabalho e que somente finda a transição ao socialismo isso seria possível – durante a transição bastava uma boa escola. Os pioneiros recusaram essa interpretação e defenderam que a escola do trabalho era algo imediato, mesmo que não fosse politécnica, naquele contexto. Por mais que aquela realidade seja diferente da nossa, é curioso ler a argumentação de Pistrak para justificar sua posição. Após examinar um longo trecho escrito por Marx para o Congresso de Genebra da I Internacional, ele dirá que  “fica claro para nós que Marx apresentou no programa dos trabalhadores a exigência de uma escola politécnica, ainda que apenas para filhos de operários, mesmo nos marcos da sociedade capitalista e muito antes da moderna etapa do capitalismo”. Se a interpretação procede, então, Marx via de forma dialética o envolvimento com o trabalho na sociedade capitalista.

Deve-se considerar ainda que não é em qualquer condição que a conexão com o trabalho pode ser mais exitosa. Certamente, fala-se de uma conexão politécnica – portanto formação geral e politécnica, não profissionalizante – com o trabalho. Existirão situações, por exemplo, no campo, em que a conexão da escola com o trabalho – mesmo que simples e não politécnico – poderá ser mais exitosamente obtida do que possivelmente em uma área urbana. Isso é muito importante do ponto de vista da pesquisa e desenvolvimento de novas formas escolares. Pistrak também defendia esta posição em relação ao campo. Por isso, entendemos que é fundamental a conexão com os movimentos sociais organizados onde a escola está inserida em um projeto alternativo.

Especificamente sobre o período estalinista, há críticas de que, sob o argumento do atraso das forças produtivas, teria havido uma exploração do trabalho tão intensa quanto nos sistemas capitalistas. Essa crítica encontra correspondência em mudanças ocorridas na política de educação?

É importante notar que o conceito de “intensificação da produção” tem outro contexto quando os trabalhadores deixam de ser assalariados para serem “donos da produção”. Portanto, isso não pode ser visto de forma simplificada. Mas o conflito básico entre profissionalização e formação politécnica ampla permeou o período e emerge com força sob Stalin, pressionado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Os conflitos entre o Comissariado do Povo para a Educação e o Comitê Central comandado por Stalin são claros, inclusive no entendimento do que deveria ser um sistema nacional de educação voltado para a preparação da juventude para uma sociedade sem classes.

Segundo Larry Holmes,  pesquisador americano que estudou a educação na Revolução Russa, em fevereiro de 1929 o conflito entre Lunacharsky, então comissário do Povo para a Educação, e Stalin, atinge o limite com uma carta em que Lunacharsky faz objeção à prática de realizar expurgos de estudantes nas escolas. Em tom sarcástico, Lunacharsky diz que esta prática provoca ódio e atividade contrarrevolucionária na juventude que, se ficasse nas instituições escolares, talvez pudesse desenvolver uma compreensão nova. Logo depois da carta, ele pede demissão do Comissariado do Povo para a Educação, no que teria sido seguido por Krupskaya, Pokrovsky, Iakovleva e Epshtein, segundo este autor.

Shulgin, entusiasta do desenvolvimento da escola politécnica junto às fábricas e do “método de projetos” (importado das escolas novas europeias e americanas e remodelado para as finalidades da escola soviética), defendia sua generalização compulsória nas escolas russas com o objetivo de envolver estudantes e professores em campanhas relevantes para a revolução cultural, a coletivização e a industrialização. Krupskaya se opôs e advertiu energicamente para o fracasso dessa iniciativa. Mesmo assim, a partir de 1929 tenta-se implantar na escola o método de projetos. Outro não foi o resultado senão o fracasso.

Foi um grande retrocesso na política educacional russa que facilitou a vitória da proposta de profissionalização precoce (já no ensino de segundo grau) que Krupskaya, com a força de Lenin no Comitê Central do Partido, havia objetado. A nova onda já não podia ser detida. Em 1931, ante o fracasso evidente das medidas introduzidas após 1927 e especialmente em 1929, que afastavam a educação do projeto dos pioneiros, o Comitê Central do Partido Comunista começa a intervir diretamente nas políticas educacionais, com uma série de deliberações que se seguirão até 1936. A tentativa de introduzir à força o método de projetos resultou em amplo fracasso que serviu como um dos argumentos para a reforma educacional de 1931. Nesta reforma, a escola volta a ser parecida com a escola capitalista.

Que legado a pedagogia socialista da Rússia revolucionária deixou para o mundo mesmo após o fim das principais experiências do socialismo real?

São vários. Um legado importante diz respeito à reorganização do processo educativo a partir de uma crítica tanto do conteúdo como da forma da escola capitalista e do exercício prático de uma escola voltada aos interesses da classe trabalhadora. No Ocidente, temos criticado muito o conteúdo da escola capitalista, mas não temos insistido suficientemente em uma crítica da forma escolar vigente. E nisso reside um aspecto essencial: a forma atual está destinada a formar trabalhadores submissos.

No interior desta crítica, emerge da experiência pedagógica russa a noção de “complexos de estudo”.  Como se pode ler nos materiais orientadores distribuídos aos professores durante o período, os complexos são um método científico que exige o estudo das coisas e fenômenos não de forma isolada, mas em suas interrelações, nas ligações de uns com os outros, na sua totalidade, na sua “complexidade”. A noção de “complexo” está colada na noção de “método dialético”. Os complexos são um método de estudo e não um método de instrução. Não são um método de dar aulas. Isso provocou já durante a Revolução Russa uma enorme discussão sobre o próprio conteúdo e método de cada uma das disciplinas escolares. Outro legado importante é a posição dada ao trabalho socialmente necessário (em variadas formas) como base do processo formativo e de articulação com a atualidade da vida. Destaque-se todo um sequenciamento da relação entre educação, trabalho, politecnia ao longo dos anos escolares que permanece largamente inexplorado no Ocidente.

A ênfase dada pelos teóricos russos ao desenvolvimento da auto-organização (pessoal e coletiva) dos estudantes é fundamental. Sem isso, os trabalhadores não poderiam se desenvolver como efetivos “donos da produção”. Finalmente, é importante registrar a recusa da Revolução Russa em restringir sua proposta educativa a aportes específicos, por exemplo, da Psicologia, direcionando-se para uma “Pedagogia Social” baseada na conexão da escola com a vida, pelo caminho do trabalho.

Existem, no Brasil e no mundo, experiências contemporâneas que possam ser associadas, semelhantes ou fortemente inspiradas pela pedagogia socialista construída nesse período?

Não há no Brasil nenhuma proposta pedagógica que tenha atingido o grau de análise e complexidade da educação russa na sua época de ouro. Nossa materialidade nos limita e tem nos empurrado para deduções mais teóricas do que experiências práticas, quando não nos levado a distorções, em especial na área urbana. Isso significa que, ao invés de nos dedicarmos a reinventar a pedagogia a partir de Marx, em um esforço autônomo, deveríamos estudar o esforço russo dos anos iniciais. Neste processo, sempre teremos como base o materialismo-histórico-dialético e, portanto, não corremos o risco de fazer uma cópia da produção russa, pois se somos de fato marxistas, estaremos fazendo uma análise permanente da realidade na qual estamos trabalhando, procurando lidar com os ensinamentos russos em meio a seus erros e acertos. É deste patamar que temos que partir. Este é o sentido da Pedagogia Socialista como um processo de acúmulo de experiência da classe trabalhadora internacional na construção de sua própria educação, formulada nos marcos dos processos sociais de transformação onde a materialidade permitiu ensaiar uma nova escola dentro de um novo projeto social. Mas é urgente que se saia de uma espécie de “bairrismo acadêmico” e analisemos experiências revolucionárias concretas e seus impactos práticos na educação. Certamente, a principal experiência disponível hoje é a Revolução Russa. Mas há outras.

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) tem trabalhado há décadas na construção de propostas que recolham os fundamentos e avanços realizados pela Revolução Russa, entre outras. Tais propostas têm sido ensaiadas, nos limites das dificuldades materiais, pois ali encontram as condições que favorecem o desenvolvimento de uma forma de se fazer a formação da juventude que consegue ter uma conexão muito grande com um projeto social com algum grau de materialidade – e, com isso, criam-se as bases para se tomar o trabalho (e a vida) como fonte da educação. Mesmo que se possa ensaiar propostas alternativas em quaisquer outros ambientes educativos (urbanos ou não), do ponto de vista da pesquisa e desenvolvimento de novas formas e conteúdos educativos para a escola, o MST tem um potencial fantástico, entre outras coisas, pela qualidade de sua militância.

Isso é fundamental porque a nova escola não vai nascer nos gabinetes das universidades, ainda que estas possam ajudar. A estratégia geral para uma educação brasileira contra-hegemônica está traçada pela Pedagogia Socialista, com a contribuição inestimável dos pioneiros da Revolução Russa. Necessitamos efetuar as mediações necessárias com a realidade específica brasileira, não na forma de uma abstração geral, mas produzida com a autoria dos movimentos sociais, com a aplicação da análise poderosa do materialismo histórico dialético, nos coletivos existentes nos fronts de luta. A nova escola nascerá dessa luta, junto a um projeto alternativo de sociedade, em diálogo direto com o processo de produção da própria vida.