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Gira mundo, ao reverso

Para Jaime Breilh, é preciso entender a nova subjetividade que emerge de um capitalismo cada vez mais acelerado
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 07/11/2018 09h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Jaime Breilh na conferência, ao lado da mediadora Anakeila Stauffer Foto: Ana Paula Evangelista

"Vivemos uma época de turbulência, o Brasil especialmente. Há um giro do pêndulo: político, mas também epistemológico. Vamos ter que lidar com isso nos próximos anos, no plano estrutural, cultural e das possibilidades políticas". O resumo feito pelo epidemiologista Jaime Breilh deu a chave de leitura para sua conferência no seminário internacional organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) em comemoração aos 30 anos do SUS e dez anos da revista Poli. Durante a fala, que aconteceu no dia 31 de outubro, Breilh costurou a 'crise do capital, a conjuntura política e as políticas sociais na América Latina'. Para o reitor da Universidade Andina Simón Bolívar, no Equador, vivemos a era da quarta revolução industrial e é preciso resistir e lançar mão da melhor das armas – o pensamento crítico – para compreender o que se transforma.

Em busca de respostas

Nos anos 1980 e 90, lembrou, sua geração viveu "com espanto" o neoliberalismo, entendido como "a intenção de corresponder na política ao que eram as necessidades do capital". Isso, de acordo com ele, veio acompanhado da forte presença de uma corrente filosófica para justificar esse giro – o neoconservadorismo – que teve várias expressões, mas começou a ser sentida em todos os campos disciplinares. "Eram os tempos do fim da História e das ideologias. Os discursos sobre o fim da totalidade capitalista eram retrógrados, e as pessoas que se expressavam nesses termos taxadas de dinossauros", resgatou, lembrando que  no caso latino-americano, o neoliberalismo experimentou um freio graças à organização social e popular. "Mas agora, de novo, vem o giro", constatou.

Para Breilh, esse novo giro se apresenta em novas condições e tem a intenção de acomodar um capitalismo acelerado com uma filosofia alienada. “Não pode haver um giro da materialidade capitalista se não houver um giro da episteme, da espiritualidade", ensinou.

Para entender o que está acontecendo é, na sua avaliação, hora de lançar mão da memória profunda – aquela que tenta puxar o sentido do que somos e para onde vamos. "[Eduardo] Galeano nos diz que a história é um profeta que olha para trás. Nosso desafio em relação ao SUS é mirar o futuro, identificarmos com orgulho e autoestima o que fizemos e não nos deixar desanimar. Contra o que foi, anunciamos o que será", instou. 

De acordo com o epidemiologista, a memória da saúde é uma dialética integradora onde convivem o campo das práticas, os atores individuais e coletivos, a realidade de cada sociedade e a história do pensamento. "Às vezes prestamos mais atenção aos feitos e às práticas, descuidando da história das ideias. Cremos que a intenção progressista é suficiente para enfrentar a realidade adversa e as práticas reacionárias. Mas temos que cuidar das ideias...", recomendou. 

Para Breilh, o "sentido profundo" das comemorações em torno do SUS repousa no nascimento de um sistema público universal na "contracorrente" neoliberal, pensado para garantir acesso a todos desde o ambulatório até o transplante de órgãos. "Princípios e diretrizes do Sistema, como universalidade, integralidade, equidade e participação social, trataram de ser destruídos quando se redobra a pressão de um capitalismo acelerado que não pode perder o 'banquete' da saúde, a mercantilização de serviços preventivos, inclusive", analisou.

Esses princípios pelos quais o Brasil lutou nos anos da redemocratização integram uma "engrenagem" democratizante, que cola a noção de direito à noção de saúde. "Como acontece com outros sistemas públicos nacionais, como o NHS e o canadense, o SUS é criticado por falências como as listas de espera. Isso acontece no Canadá, na Inglaterra e, inclusive, no sistema de seguro social da Costa Rica", comparou. Mas para Breilh, o ataque principal contra esse grande "movimento" vem da comunicação. "Não se pode justificar a privatização senão destruindo a imagem do SUS", disse.

É também nesse campo de disputas entre os interesses privados e o interesse público que se encontram variados exemplos. O epidemiologista citou o tabaco e os agrotóxicos. A ferramenta das empresas é semear dúvidas, considera Breilh. "Fake news, fake data é antigo na América Latina. Lançam mão toda vez que querem semear dúvidas sobre nossas conquistas", disse.

Aceleração

Mas se o capitalismo sempre foi concentrador, explorador e excludente, qual é a novidade? Para Jaime Breilh, o capitalismo da quarta revolução industrial se caracteriza pela aceleração e desencadeou uma série de processos que destroem os quatro princípios da vida – ou simplesmente, quatro 'S'. O primeiro deles é a sustentabilidade, base da relação dos povos originários com a natureza, tirando dela apenas o necessário para viver. Em seguida, vem a solidariedade, que supõe a construção e sustentação de laços sociais fortes. Por fim, a soberania dos povos é solapada não necessariamente por dominação territorial militar, com invasão de exércitos inimigos, mas por empresas do agronegócio, que exploram água, terra e recursos minerais, drenando os recursos vitais de uma nação e controlando a agricultura, com as sementes transgênicas e os pacotes tecnológicos fechados. O último S é a seguridade integral, que se opõe à fragmentação social e ao individualismo.

"É um problema ético? Moral?", questionou Breilh, para em seguida responder que não. Para ele, não se trata de uma falha dos dirigentes das grandes empresas, mas de algo estrutural. "O capitalismo destrói as quatro 'S' porque é uma necessidade objetiva da aceleração do capital". Dito isso, ensinou, não há capitalismo "benigno", tampouco "ingênuo". "Tem que destruir a vida porque sua essência não é trabalhar para o sujeito social ativo –o trabalho vivo –, mas para mercadorias – o trabalho morto", definiu.

Sob essa lógica, uma empresa de tecnologia para produzir uma bitcoin [moeda virtual] pode consumir, em segundos, a mesma quantidade de energia que um domicílio necessita para subsistir por uma semana, comparou. Num ciclo que se retroalimenta, as novas tecnologias, que poderiam ser instrumentos de emancipação, são mecanismos de aceleração do capital.

Esgotamento

Na América Latina, acrescentou, o ciclo que interrompeu o neoliberalismo também dá sinais de esgotamento graças a importantes erros táticos.  "Apostamos na participação social e a covertemos num instrumento burocrático a serviço do poder de turno", criticou. E emendou: "Se dizia que há um extrativismo 'bom', uma mineração 'boa' que se justifica porque permite gastos sociais, crescimento e desenvolvimento. Isso tem sérias consequências até mesmo na distorção das opções potenciais dos momentos históricos".

E essa distorção tem a ver com o nível subjetivo de dominação. Para Breilh, o que se expressa na acumulação e produção de mercadorias vem acompanhado de uma "civilização do capital", na qual grassam o individualismo extremo, o medo, a insegurança e a solidão. É como se essa "subjetividade conveniente" fosse uma espécie de óculos, através do que se enxerga o "mundo ao reverso".

Por isso, ressalta, a batalha das ideias é importante. Mas não é fácil. "Assim como não há correspondência entre informação e consciência, na ciência não há correspondência entre consciência e dados. Os feitos se apresentam através de certas noções que são obstáculos para entender o que se passa. Porque ignoramos as evidências boas, porque os dados não mudam as mentes? Crenças persistem, são resilientes. São rodeadas por tendências cognitivas e psicológicas, coletivos regidos por sua realidade", afirmou. E deu como exemplo uma foto que capta um indígena que leva no corpo uma suástica tatuada e clama por uma suposta "supremacia andina".

E onde entram as ciências da saúde e as universidades? Para Breilh, como qualquer operação simbólica, a ciência é transformada, transfigurada e, algumas vezes, faz com que fiquem irreconhecíveis as articulações de poder. "A ciência é uma ferramenta de controle social, o poder explicativo é uma ferramenta potente para construção de hegemonia e há pressão do poder econômico sobre a ciência", afirmou, acrescentando que as ciências da saúde são um termômetro disso.

Jaime Breilh defende, por exemplo, uma epidemiologia crítica que não separe "sujeito de objeto", "interno do externo", "mente do corpo", "cultura da natureza", "explicação de previsão". Nesse corolário, processos complexos se resumem a fatores de risco, com sentido probabilístico, quando poderiam ser vistos como determinações das causas. "A separação é artifício de dominação da ciência", resumiu.

Notícias do Rio

No final da conferência, o agente comunitário de saúde Jorge Nadais falou sobre a grave crise da saúde no Rio de Janeiro. O trabalhador leu uma carta do Conselho Gestor Intersetorial de Manguinhos escrita especialmante para o seminário internacional dos 30 anos do SUS. O texto denuncia os cortes de R$ 755 milhões anunciados pela gestão Marcelo Crivella (PRB), propostos para a pasta a partir de 2019. As unidades mais atingidas, de acordo com o documento, serão os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que vão perder 30% do orçamento. Já a atenção básica é a área mais afetada, com redução de 34%. "A população não está tendo acesso às informações que indicam a gravidade desse processo", alertou Nadais. E acrescentou: "Convocamos todas as redes da saúde, acadêmicas, populares, profissionais e de serviços, para mobilizar e politizar a população".