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Comunicação e saúde

“Comunicação é desses temas de que todo mundo entende um pouco e sempre tem uma opinião”. Essa afirmação abre o primeiro capítulo do livro ‘Comunicação e saúde’, de Inesita Araújo e Janine Cardoso, pesquisadoras do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz). As concepções são mesmo diversas e, se abrirmos um dicionário como o Houaiss da Língua Portuguesa, vamos nos deparar com definições do senso comum, como: “o processo que envolve a transmissão e a recepção de mensagens entre uma fonte emissora e um destinatário receptor” e “a ação de transmitir uma mensagem e, eventualmente, receber outra mensagem como resposta”.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/07/2010 11h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Comunicação é desses temas de que todo mundo entende um pouco e sempre tem uma opinião”. Essa afirmação abre o primeiro capítulo do livro ‘Comunicação e saúde’, de Inesita Araújo e Janine Cardoso, pesquisadoras do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz). As concepções são mesmo diversas e, se abrirmos um dicionário como o Houaiss da Língua Portuguesa, vamos nos deparar com definições do senso comum, como: “o processo que envolve a transmissão e a recepção de mensagens entre uma fonte emissora e um destinatário receptor” e “a ação de transmitir uma mensagem e, eventualmente, receber outra mensagem como resposta”. Sob essa ótica, uma boa comunicação é aquela em que o receptor entende justamente o que o emissor deseja que ele entenda. “Só que a comunicação não é só isso”, adverte Janine, em entrevista à Poli. “Qualquer processo de comunicação envolve repertórios culturais, agendas de prioridades, diferentes percepções do mundo. Quando se reduz o processo à mera transmissão de informações, conhecimentos e valores, a comunicação fica restrita às figuras clássicas do emissor e do receptor – o primeiro, muito poderoso e com maior direito à palavra, e o segundo com o direito apenas de receber e entender exatamente o que foi dito”, explica a pesquisadora.

Diferentes teorias

A interação entre comunicação e saúde, no campo das políticas públicas, não é recente. Em seu livro, Inesita e Janine contam que ela se constituiu de maneira mais explícita nos anos 1920, quando o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) começou a se utilizar da propaganda e da educação sanitária. Na década de 1940, isso se consolidou com a criação do Serviço Nacional de Educação Sanitária (SNES), que produzia materiais educativos veiculados pelos meios de comunicação, e do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que seguia a mesma linha. De acordo com Janine, a visão dominante era a de que as pessoas faziam determinadas coisas porque não sabiam que poderiam trazer riscos para a saúde. “A ideia era informar as pessoas, que, a partir daí, modificariam seus hábitos”, diz a pesquisadora.

Nos anos 1950, estudos na área da comunicação começaram a apontar para uma nova concepção. Os pesquisadores Paul Lazarsfeld e Elihu Katz apresentaram o modelo da ‘comunicação em dois fluxos’, que identificava, entre o emissor e o receptor, a presença de ‘mediadores’. “O mediador, também chamados ‘líder de opinião’, pode ser um líder político, um padre, um médico, um líder sindical ou qualquer personalidade local que goze de certa confiança por determinado grupo”, exemplifica Janine. E se essas lideranças endossam aquilo que os meios de comunicação divulgam, isso traz uma repercussão mais favorável. Embora tenha mais de 50 anos, esse modelo ainda está muito presente na saúde. A figura do agente comunitário de saúde (ACS), por exemplo, é um mediador utilizado como ‘ponte’ entre as populações e os serviços. “Ele precisa conhecer as comunidades, com seus gostos, preferências e resistências, porque assim consegue se comunicar melhor. Daí o envolvimento com a comunidade ser um pré-requisito para a seleção do agente”, aponta Janine.

Hoje se fala muito no ‘protagonismo dos participantes’, e as práticas têm sido atualizadas pelas novas tecnologias, incorporando a internet e as redes sociais, reconhecidas por possibilitarem maior interatividade. Apesar disso, Janine acredita que a ideia da transferência de informação ainda está presente em boa parte das estratégias no campo da saúde. “Os problemas entre as instituições de saúde e os segmentos da população ainda tendem a ser reduzidos a uma questão de entendimento: seja porque não fomos capazes de falar de forma compreensível, seja porque não conseguimos chegar até as pessoas com os meios adequados”, aponta a pesquisadora.

Só que, de acordo com ela, as experiências concretas têm mostrado que não se trata apenas disso: “Temos visto – e os casos da AIDS e da dengue são exemplares – que conhecer determinado aspecto não é suficiente para que as pessoas mudem automaticamente seus hábitos e valores. Há outros componentes, no seu repertório cultural, nas suas relações, que interferem. Por isso, é preciso não apenas divulgar informações, mas entender o que está motivando as pessoas a terem condutas diferentes ou até mesmo focos de resistência em relação às mudanças propostas”, explica, refletindo: “Grosso modo, décadas atrás o discurso era o de que boa parte das doenças enfrentavam uma doença transversal, que era a ‘doença da ignorância’. Esse discurso, atualizado, afirma que o grande problema é a desinformação. Hoje, a informação é muitas vezes apropriada na perspectiva dos cuidados individuais, da maior responsabilização do indivíduo sobre seus estilos de vida, sobre suas condutas. E isso acontece, em geral, acoplado a uma descoletivização dos riscos, que acaba também muitas vazes representando uma diminuição do Estado”.

Entre os anos 1970 e 1980, ganhou força o conceito de polifonia, desenvolvido pelo linguista russo Mikhail Bakthin, que Janine identifica como mais adequado às discussões do campo da saúde. A comunicação deixa de ser vista apenas como transmissão de informações e passa a ser considerada um “processo de produção dos sentidos sociais”.

“Na contramão do SUS”

Universalidade, equidade, integralidade , descentralização, hierarquização e participação social : os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo Inesita e Janine, deveriam ser seguidos também na comunicação. Mas “a comunicação, no campo da saúde, caminha na contramão do SUS”, escrevem as pesquisadoras. Elas explicam que a área não se configura como uma empresa comercial, que lida com clientes e tem o lucro como objetivo e, portanto, sua comunicação não pode se confundir com o marketing. E completam: “No campo da saúde, a comunicação não se dissocia da noção de direito, é dirigida a ‘cidadãos’, objetiva o aperfeiçoamento de um sistema público de saúde em todas as suas dimensões e a participação efetiva das pessoas na construção dessa possibilidade.

Em consequência, não pode ter a persuasão como estratégia, nem trabalhar apenas com a ideia de divulgação: o objetivo deve ser, minimamente, estabelecer um debate público sobre temas de interesse e garantir às pessoas informações suficientes para a ampliação de sua participação cidadã nas políticas de saúde”.

Segundo Janine, uma comunicação coerente com o SUS passa sempre pelo “ouvir mais do que falar”, deixando de lado, de uma vez por todas, aquela ideia de comunicação bipolar, calcada nos modelos clássicos. A universalidade, por exemplo, corresponde à comunicação como direito de todos, o que não significa apenas o acesso ampliado às informações, mas também a possibilidade de as pessoas serem ouvidas durante o processo de comunicação.A equidade, que aponta para a necessidade de tratar de maneira diferente os desiguais, é respeitada quando se leva em conta a produção social dos sentidos apontada por Bakthin, percebendo sempre o contexto no qual a comunicação se dá. A integralidade, por sua vez, se opõe à fragmentação e à especialização.

A descentralização também não é ainda uma realidade: as autoras escrevem que é o Ministério da Saúde (MS) que detém a maior parte dos recursos destinados à comunicação, enquanto os municípios, mais próximos da realidade da população, são pouco contemplados. De acordo com elas, o MS deveria ser responsável por “repassar recursos e apoiar tecnicamente os estados e municípios no seu esforço comunicativo (e estes, os movimentos e as organizações lociais)”. Por fim, a participação social é definida pelas autoras como a “pedra de toque da comunicação” – para concretizá-la, é preciso desenvolver espaços que possam ampliar as vozes mais periféricas para além dos conselhos.

Saúde e empresas de comunicação

Existe uma máxima no jornalismo que diz: se um cachorro morde um homem, isso não é notícia; por outro lado, se um homem morde um cachorro, então é. Acaba ‘virando’ notícia o que é insólito, enquanto nem tudo o que é relevante e mereceria um debate permanente aparece nos veículos de comunicação. “A lógica de construção da notícia, muitas vezes, ‘desfavorece’ os objetivos da saúde”, diz Janine. De acordo com ela, há que se reconhecer que o sistema de saúde está na lista de interesses desses veículos, sendo um dos temas predominantes. “Mas por que viés? Essa é muitas vezes uma questão que sai das páginas de saúde propriamente para ocupar o lugar do espanto, com as críticas de corrupção, ou as filas nos hospitais, ou mortes por erros médicos. Ou então é o viés das descobertas científicas e tecnológicas, ou ainda o dos cuidados da alimentação, até porque isso tem a ver com uma visão de corpo e de saúde determinada pelos nossos padrões de beleza. Há uma perspectiva muito ligada à saúde individual, que se obtém pelo consumo de bens e serviços – ou seja, que caminha na contramão daquele conceito de saúde ampliado, preconizado pela Reforma Sanitária e pelo SUS. É uma visão da saúde mercadológica”, critica Janine.

E não é apenas no jornalismo que a saúde está presente: é cada vez mais comum vermos temas como uso de drogas, deficiências físicas, gravidez precoce, aborto, câncer e outras questões de saúde pública abordados também em novelas. Isso é válido? Segundo Janine, a estratégia é importante para fazer com que os problemas de saúde adquiram grande visibilidade social, sobretudo quando acontece em programas de grande audiência. “Isso entra na agenda das pessoas, que passam a pensar, a falar, a reconhecer que o problema existe. Isso é inegável”, afirma. Mas ela alerta: “Ainda carecemos de mais pesquisas para avaliar a estratégia. Hoje, a análise é rasa, avaliando se as pessoas lembram qual personagem das novelas têm esse ou aquele problema. Mas ainda é preciso entender melhor como isso entra no repertório das pessoas, que tipo de apropriação elas fazem, até para saber o que se está produzindo efetivamente com essas estratégias”, conclui.