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Equidade

O projeto de mundo embutido na criação do Sistema Único de Saúde defende uma sociedade de iguais ou com iguais oportunidades? Zela pelo fim da desigualdade ou pelo reconhecimento da diferença e da diversidade? Todas essas questões, que não têm uma única resposta nem são mutuamente exclusivas, estão presentes no conceito de equidade, que foi eleito como um dos princípios do SUS.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2007 10h46 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O projeto de mundo embutido na criação do Sistema Único de Saúde defende uma sociedade de iguais ou com iguais oportunidades? Zela pelo fim da desigualdade ou pelo reconhecimento da diferença e da diversidade? Todas essas questões, que não têm uma única resposta nem são mutuamente exclusivas, estão presentes no conceito de equidade, que foi eleito como um dos princípios do SUS.

O que sustenta o princípio da equidade é a idéia de tratar de forma diferente os desiguais. Exemplos podem ser encontrados tanto na organização dos serviços, quando uma unidade de saúde prioriza o atendimento de quem precisa mais, quanto no financiamento, quando se decide que a região Norte do Brasil merece um tratamento diferenciado em relação aos recursos que recebe, já que apresenta um cenário de maior dificuldade para diversas ações, devido às longas distâncias entre municípios, dificuldades de acesso por questões geográficas, dentre outros.

Mas ilustrações como essas não dão conta da complexidade da discussão que existe em torno desse princípio. Em primeiro lugar porque, para alguns autores, não é possível pensar em equidade sem associá-la (por complementação ou oposição) à noção de igualdade. Célia Almeida, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), por exemplo, em um artigo que analisa o contexto da América Latina, explica que a ideia de eqüidade ganha força a partir dos anos 80, substituindo a noção de igualdade que havia sido soberana até a década de 70.

Essa relação entre equidade e igualdade é polêmica. Alguns autores ligados à filosofia política defendem que se trata de coisas diferentes. Nesse caso, o princípio da eqüidade é associado à ideologia liberal, enquanto a igualdade é vista como própria da visão de mundo socialista. Na verdade, a equidade seria a concepção liberal da igualdade. Sarah Escorel, pesquisadora da ENSP/Fiocruz, questiona essa distinção, num artigo que trata dos dilemas desse princípio na saúde. Diz ela: “Há uma tendência na bibliografia de tentar definir equidade diferenciando-a da igualdade. Os argumentos centram-se que igualdade é um princípio de justiça social, aborda a ética dos arranjos sociais, têm conteúdos francamente valorativos e está centrada nos direitos de cidadania”. E completa, mais adiante: “Ambos conceitos, igualdade e equidade, partem do princípio de que a humanidade é diversa, plural, que os seres humanos diferem entre si em suas personalidades, identidades e necessidades”.

No ‘Dicionário de Política’, organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, igualdade é definida a partir de 16 concepções diferentes. Uma delas, que parece se aproximar mais da noção de eqüidade que veio sendo formatada nas últimas décadas, é a de igualdade de oportunidades. Segundo o texto, o liberalismo acreditou que era possível alcançar essa igualdade de oportunidades por meio da determinação dos direitos fundamentais. “Mais tarde veio a reconhecer-se que a Igualdade de direitos não é suficiente para tornar acessíveis a quem é socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozam os indivíduos socialmente privilegiados”, diz. Outras concepções de igualdade apresentadas no dicionário são “regras igualitárias de distribuição”, “partes guais para todos”, “partes iguais para os iguais”, “partes iguais a um grupo relativamente grande”, “igualdade proporcional”, “a cada um segundo o próprio merecimento”, “distribuições desiguais correspondentes a diferenças relevantes” e “distribuições desiguais justas”.

Equidade e justiça

No desenvolvimento da noção de equidade ao longo do tempo, o raciocínio seguido foi mais ou menos o seguinte: por um lado, se a sociedade é desigual, tratar a todos igualmente ajudaria a manter a desigualdade; por outro, se a sociedade é diversa, isso significa que as pessoas têm necessidades diferentes. Como Sarah Escorel escreveu: ‘equidade é a introdução da diferença no espaço da igualdade”, que é o da cidadania. No dicionário Houaiss, no entanto, a definição de equidade fala de “julgamento justo”, um bom exemplo de como todo esse debate passa, necessariamente, por uma discussão da ideia de justiça social.

E é aí que mora o conflito. Embora o movimento sanitário venha defender, na verdade, que as pessoas têm necessidades diferentes de saúde, e que elas precisam ser consideradas na ideia de saúde como direito, o fato é que, no âmbito mais geral, a relação desse princípio com a ideia de igualdade mostra que um mesmo discurso pode servir a dois ‘senhores’ — ou a dois projetos de sociedade muito distintos.

A matéria de capa da Revista RET-SUS nº 12, de outubro de 2005, por exemplo, apresentava dois diagnósticos diferentes sobre pobreza e desigualdade no mundo. De um lado, o relatório desenvolvido por um brasileiro na Organização das Nações Unidas (ONU) defendia, baseado em dados quantitativos e qualitativos, que não bastava mais atacar a pobreza, era preciso investir em políticas de distribuição de renda que ajudassem a combater a desigualdade. De outro, o relatório elaborado pelo Banco Mundial não falava em igualdade/desigualdade, mas em equidade, entendida como igualdade não de renda ou de oferta de serviços, mas de oportunidades de acesso (à saúde, educação, emprego...). Um exemplo corriqueiro dessa distinção são os debates sobre políticas focais, como o Fome Zero, no Brasil.

Apesar de se colocar no meio de concepções diferentes de mundo, a noção de equidade pode, segundo Célia Almeida, no mesmo artigo que se refere à América Latina, possibilitar a “construção de consenso entre distintas correntes político-ideológicas”. Isso porque essa idéia se fortalece como resultado do que ela chama de “descalabro mundial do aumento das desigualdades proporcionado pelas políticas neoliberais”. Mas ela avisa: “O avanço em direção à superação da iniqüidade pode ser tão lento e gradual que, de fato, a adoção da eqüidade como princípio pode ser completamente inócua ou vazia de significado”.

Na saúde

Curiosamente, a equidade não aparece enumerada como um princípio do SUS na Lei Orgânica da Saúde (8080) . No capítulo dessa legislação que trata especificamente de princípios e diretrizes, está apontada a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.

Segundo Sarah Escorel, o termo equidade aparece em alguns textos do movimento sanitário anteriores ao SUS e no relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, vinculada ao acesso. A ideia de assistência equânime surge novamente na introdução das NOB 93 e 96. Sarah Escorel analisa esse movimento como uma ampliação do campo de abrangência da equidade, do campo de serviços para o modelo assistencial. “A expressão das diferenças em sociedades heterogêneas e complexas, com intensa fragmentação social vai conduzir a um projeto de igualdade que respeite as diferenças ou vai cristalizar diferenças transformadas em desigualdades? Este é um dos dilemas postos para pensar a eqüidade em
saúde”, aponta a pesquisadora, no artigo.

O fato é que hoje equidade é um princípio do SUS. Na publicação ‘O SUS de A a Z’, um dicionário de saúde elaborado pelo Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems), equidade é definida como “igualdade da atenção à saúde, sem privilégios ou preconceitos”. E o texto continua, explicando que isso significa que “O SUS deve disponibilizar recursos e serviços de forma justa, de acordo com as necessidades de cada um” e exemplificando a eqüidade com políticas voltadas para situações de exclusão social, como população negra e homossexuais.

Mas a polêmica não pára por aí. Outra questão que envolve o conceito de eqüidade especificamente no campo da saúde é a sua relação com o princípio da universalidade. O mesmo dicionário do Conasems diz que falar em universalidade “significa que o sistema de saúde deve atender a todos, sem distinções ou restrições, oferecendo toda a atenção necessária, sem qualquer custo”. Embora vários textos afirmem que a universalidade é a condição da equidade, há quem veja uma contradição na aplicação conjunta desses dois princípios. Como priorizar e reconhecer a diferença sem distinguir e restringir? Voltando à discussão do começo desta matéria, quais os limites da diferença para não reforçar a desigualdade?

Essas são questões com as quais o sistema de saúde brasileiro se depara todos os dias, nos mais diversos níveis. Se a noção de equidade gera polêmica, o consenso parece existir, no entanto, na relação do movimento sanitário com o seu inverso, já que, embora não seja capaz de eliminar a desigualdade, mais estrutural, o SUS é visto como uma política pública que deve se voltar necessariamente para o combate às iniquidades. Talvez o texto que abre o site da Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde faça uma boa síntese dessa polêmica. Diz assim: “As diferenças ou desigualdades na situação de saúde entre indivíduos ou entre grupos da população não são novidade para ninguém. (...) Todos conhecemos e aceitamos essas diferenças e as consideramos ‘naturais’. O que não tem nada de natural são aquelas diferenças na situação de saúde relacionadas ao que chamamos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), ou seja, desigualdades decorrentes das condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham. Ao contrário das outras, essas desigualdades são injustas e inaceitáveis, e por isso as denominamos de iniquidades”.