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Entrevista: 
Carlos Batistella

‘A Opas estima um déficit de 600 mil profissionais na força de trabalho em saúde da América Latina e Caribe’

Coordenador de Cooperação Internacional da EPSJV, Carlos Eduardo Batistella avalia a educação de técnicos em saúde de outros países como ‘um capital político importante para o Brasil’
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2024 11h08 - Atualizado em 12/04/2024 12h09

 

Em seu chamado ao Dia Mundial da Saúde de 2024, comemorado em 7 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que, em 2021, "pelo menos 4,5 bilhões de pessoas — mais de metade da população mundial — não receberam cobertura para serviços essenciais de saúde”. Dentre outros fatores que geraram o número alarmante está a falta de profissionais técnicos. Apenas na região das Américas, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), há um déficit de cerca de 600 mil desses profissionais. De acordo com o coordenador de Cooperação Internacional da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Carlos Eduardo Batistella, o Brasil pode ajudar a melhorar esse cenário através de sua Diplomacia em Saúde.

 

Que impacto da pandemia de Covid-19 permaneceu nas ações de colaboração internacional de educação e treinamento de técnicos na Saúde? A interlocução por meio de redes de comunicação se solidificou?

A popularização das plataformas de comunicação virtual, principalmente paras redes com as quais a EPSJV atua, até mesmo como secretaria executiva - RETS [Rede Internacional de Educação de Técnicos em Saúde], RIETS [Rede Ibero-Americana de Educação de Técnicos em Saúde], CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] - paradoxalmente se mostraram muito mais oxigenadas durante a pandemia que no período anterior. A comunicação virtual é muito apropriada para essa comunicação em rede, por permitir trocas de conhecimento e de informações com baixo custo.

 

E para ações específicas de educação?

Para algumas coisas foi vital. Houve um momento crucial na pandemia no qual as escolas técnicas se viam diante de um grande desafio para dar continuidade a turmas que estavam se formando. Era um momento de urgência por profissionais, para atuarem nas linhas de frente, e alguns países tinham um déficit muito grande de profissionais. A própria RETS proporcionou a troca de informações entre as várias escolas técnicas da América Latina e da África, que compõem a rede, e foram importantes para o enfrentamento à Covid-19.

 

Diante da possibilidade de futuras epidemias, ou mesmo uma pandemia, a estratégia tende a ser a mesma?

A EPSJV entende a educação como algo que vá além do acesso a conteúdos. A educação passa por encontros, afetos, compartilhamento de experiências, uma série de outras dimensões. Continuamos defendendo a formação de técnicos de modo presencial.

Para determinadas emergências, como foi o caso da Covid-19, fica mais nítido que precisamos usar diferentes recursos para aumentar a capacidade de salvar vidas. É assim que o Campus Virtual de Saúde Pública da Opas tem trabalhado. A EPSJV está com um projeto de pesquisa vigente para identificar o perfil e as trajetórias dos técnicos em saúde que acessam o Campus, um número ainda reduzido em relação aos profissionais de nível superior.

Vamos identificar quem são esses técnicos e onde eles estão e também será possível saber, através de sua localização, se as regiões remotas e desatendidas de nosso continente estão acessando o Campus.

Que conteúdos são mais acessados? E cursos? Por que são? Há demanda para outros treinamentos? Como melhorar a oferta desses cursos no Campus Virtual? São perguntas que vamos buscar responder. A Opas quer que o Campus chegue aos técnicos. Não são poucas as localidades da América Latina em que os técnicos são os únicos profissionais de saúde junto à população.

 

Diferentemente de um produto, como uma vacina, para a ”exportação” de conhecimento e educação a Língua Portuguesa é uma barreira?

Em parte, na América Latina somos o único país falante de Português e, de modo geral, entendemos muito melhor o Espanhol do que os falantes de língua espanhola nos entendem. Nosso esforço, claro, tem sido utilizar a tradução simultânea em todas as oficinas, seminários e debates virtuais que a RETS oferece.

Por outro lado, eu questiono: então por que a secretaria executiva da RETS, em especial da RIETS, continua sempre sendo referendada num país falante de Língua Portuguesa, no caso o Brasil? A explicação que encontramos é simples, são poucos os países com instituições de Estado que se mantêm fortes para sustentar uma proposta de rede. Participam das redes, muitas vezes, órgãos de governos frágeis sob o ponto de vista institucional, em que ao se mudar o governo, mudam as pessoas.

 

Então o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma fortaleza para nossa atuação?

Sem dúvidas.

O SUS é um modelo e um desafio para países nos quais não há a força de uma política nacional de saúde.

Apesar de todos os problemas que enfrentamos, temos a garantia de direitos que são, infelizmente, incomuns em outros países.

Ter uma instituição de Estado, como é a Fiocruz, por exemplo, é importante para as redes; e ter o SUS como um balizador no diálogo com outras políticas também é sempre um diferencial. Então, apesar de o idioma ser uma barreira, a força política e estratégica do Brasil, e o próprio fortalecimento da cooperação Sul-Sul, são diferenciais positivos para a educação de técnicos em saúde para além de nossas fronteiras.

 

O pedido de colaboração da Opas, para fortalecimento de seu Campus, ocorreu sob a gestão da Carissa Etienne ou já com o brasileiro Jarbas Barbosa?

Na gestão da Carissa Etienne. Durante a pandemia, nossa aproximação junto à Opas cresceu exponencialmente, com a colaboração do CRIS [Centro de Relações Internacionais da Fiocruz], nas figuras do Sebastian Tobar e do Paulo Buss. Com a intermediação do CRIS, nos aproximamos do Programa Sub-regional da Opas/OMS para a América do Sul (SAM-Opas/OMS).

Não se fortalece os sistemas nacionais de saúde sem uma atenção primária fortalecida.

Isso passa, claro, por fortalecer a força de trabalho em saúde, e, no nosso caso, os técnicos.

 

O perfil epidemiológico desses países é semelhante ao nosso? As necessidades de educação dos técnicos guardam semelhanças?

É difícil responder com precisão, mas em alguma medida sim. Nos países amazônicos, a questão da malária, em muitos países, a dengue é muito comum também. Então, não difere tanto.

 

A educação de profissionais de saúde para atuar com populações ribeirinhas e da floresta, por exemplo, pode ser objeto de diplomacia em saúde então?

Com visão estratégica, podemos prospectar essas possibilidades. É assim que procuramos trabalhar. Em 2024, a EPSJV completa 20 anos como Centro Colaborador da OMS para a Educação de Técnicos em Saúde. Estamos elaborando um novo plano de trabalho para o próximo ciclo de quatro anos, ouvindo os laboratórios da EPSJV para organizar as ações de cooperação com potencial de internacionalização, não só da América Latina e Caribe, mas também de países africanos e não apenas os falantes de Língua Portuguesa. Países não falantes do Português, na África, possuem perfis e necessidades que permitem ao Brasil se colocar como parceiro. Isso se vincula a um contexto mais global de presença política do Brasil.

 

Os técnicos compõem aa maior parte da força de trabalho em saúde. Isto está corretamente dimensionado nas ações de cooperação internacional do Brasil?

Em alguma medida isso acontece, mas a formação de técnicos pode sim ser um capital político importante para o Brasil. Ela é tão vital para um sistema de saúde quanto fazer a transferência de tecnologia para a produção de um medicamento ou de um fármaco. A Opas estima um déficit atualmente de 600 mil profissionais na América Latina e Caribe, podendo ser maior. Não é um déficit pequeno, ou seja, a importância dos projetos de formação continua visível para que o continente como um todo possa garantir aquilo que é o básico, uma Atenção Primária em Saúde (APS) de qualidade.

 

Em nossa conversa, você citou dengue e malária, além da Covid-19. O treinamento em vigilância epidemiológica também pode ser um ativo da diplomacia em saúde do Brasil?

Doenças como a dengue não podem mais receber o registro de doenças tropicais, cada vez mais isso cai por terra. Sabemos perfeitamente que os mosquitos vão refazendo seu comportamento à medida que vão domiciliando, e o calor também vai se expandindo, então, não são mais circunscritas a um determinado local. Na pandemia, vimos a incapacidade e até quase o equívoco de trabalhar com a ideia de fronteira fechada, é muito mais sensato trabalhar com políticas de cooperação internacional, de transferência de conhecimento, fortalecimento de experiências e planejamento de estratégias conjuntas pra problemas que são comuns. Acho que isso é um lema na cooperação e, claro, diante disso é natural que, tanto do ponto de vista, vamos dizer assim, mais específico, que diz respeito ao conhecimento das estratégias, é interesse da OMS dar visibilidade para isso, mas também há um recado político de que novos arranjos vão se fazendo. A política externa é muito desenhada em função de aproximações, articulações que vão se desenhando.

Estamos, na EPSJV, neste momento estratégico de elaboração de um novo plano de trabalho para o processo de redesignação como Centro Colaborador da OMS para a Educação de Técnicos em Saúde e de planejar algumas estratégias para que esses objetivos mais globais possam ganhar força. Em paralelo, pequenos projetos que, muitas vezes, nascem dessas articulações, surgem. É o caso do mapeio dos trabalhadores técnicos que atuam na APS na América do Sul, é um projeto muito modesto, mas surge de uma área de interesse com a articulação que estabelecemos com o SAM-Opas/OMS.