Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
José Marcelino de Rezende Pinto

‘A PEC acaba com a maior conquista da educação brasileira’

Nesta entrevista, o professor da Universidade de São Paulo (USP), José Marcelino de Rezende Pinto, especialista em financiamento da educação, fala sobre os impactos do congelamento de recursos previsto na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados. E avisa: o teto de gastos transforma o Plano Nacional de Educação em letra morta. “Nós temos os números. A dificuldade está na batalha da informação porque a mídia divulga um pensamento único”.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 21/10/2016 10h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

A decisão de que o teto só começa a valer em 2018 para saúde e educação muniu o governo e a base aliada de argumentos de que essas áreas vão receber mais recursos por causa da mudança. Como avalia essa manobra?

É uma faca de dois gumes. Por um lado, foi uma vitória porque o governo teve que recuar. Quer dizer, para um governo que está aí tomando posse, com toda a televisão apoiando... Mas qual é o perigo? Pode ser que o gasto continue caindo até 2018 e, com isso, tenhamos que partir de um patamar ainda mais baixo. Isso porque o último dado que a gente tem é de 2015, quando a União aplicou 23% de sua receita líquida de impostos em educação. O que seria 18%, segundo a determinação constitucional, estava em 23%. Então, digamos o seguinte: o governo poderia cumprir a Constituição. Acho que a mudança foi realmente para ganhar a votação, mas temos que estar atentos. Pode ser uma estratégia. Tanto que o MEC já rebateu, dizendo que 2017 vai ser maior do que 2016. Mas precisamos ver se é maior contando a inflação ou não contando. E orçamento é orçamento. Há, sim, o risco de ser um valor menor do que 2016. Aí a gente partiria de um patamar mais baixo.

Isso porque nós não sabemos como 2016 vai fechar?

Eu acho que uma das estratégias do governo é dizer: olha, com recessão é melhor a PEC do que a vinculação [já que a arrecadação de impostos diminuiu]. E aí é uma cortina de fumaça porque o que a gente está discutindo é o futuro do Brasil. Para que a PEC seja boa, nós temos que torcer para que o Brasil fique em recessão, um negócio absurdo.

E os outros elementos que a PEC não atinge são cotas do salário-educação e do complemento para o Fundeb, que é um mecanismo de financiamento da educação básica. Certo?

Isso. Pegar o salário-educação seria um absurdo, mas é uma vontade antiga. Até o Palocci e o Sandro Mabel tinham cada qual uma proposta para acabar com o salário-educação. Seria uma tragédia. E também não tem como congelar algo que é uma contribuição. Seria roubo. Uma contribuição social, pela sua natureza jurídica, é vinculada. Estamos falando em 0,3% do PIB. O salário-educação acaba sendo um mecanismo de escape para as políticas de assistência ao estudante. É o que financia alimentação escolar, eventualmente uniforme. Porque é proibido usar os 18% para isso.

A questão do complemento ao Fundeb é outra jogada. Em primeiro lugar, o valor é muito baixo ficando em 10% daquilo que colocam estados e municípios. Alguma coisa na ordem de 0,2% do PIB. Segundo, com a recessão o governo está lucrando, porque como está caindo a arrecadação dos recursos que compõem o Fundeb, na verdade a União vai colocar menos recursos ainda. Em 2015, a arrecadação foi abaixo de 2014 em termos reais. Em 2016 há uma probabilidade grande de cair em relação a 2015. Então, na verdade a União vai pôr os 10%, só que vai ser menos, 10% de um montante menor, percebe? É um discurso demagógico. Mas não se percebe essa demagogia porque muita gente acha que o Fundeb é da União, então você aproveita um pouco a desinformação das pessoas.

E o que está se escondendo também? Nós estamos em 2016 e o CAQi [Custo Aluno Qualidade] já tinha que estar implementado desde junho. A principal função do CAQi seria elevar o complemento da União para o Fundeb dos atuais 0,22% para 1,1% do PIB, um valor cinco vezes maior do que o atual. Isso está na lei do Plano Nacional de Educação. Enquanto a PEC não está em vigor. É mais uma cortina de fumaça que esconde o fato de estar havendo um descumprimento legal por parte do governo.

Agora, como o complemento para o Fundeb ficou de fora do teto, se algum governo com orientação distinta quiser investir esse percentual do CAQi, vai poder mesmo com a vigência da PEC?

Pode. Mas qual é o problema da vigência da PEC? É que o governo que quisesse fazer isso, na verdade, seria o governo que teria de derrubar a PEC.

Mas talvez o governo não tenha a maioria no Congresso para derrubar a PEC, mas queira remediar um pouco do mal...

Digamos que seria um bom artifício... Seria uma alternativa para um governo que tivesse de fato preocupado. O que surpreende é que o mesmo parlamento que está discutindo a PEC aprovou o Plano Nacional da Educação que tem como meta a ampliação dos gastos públicos em educação para 10% do PIB.

Por que esses elementos – salário-educação e o complemento do Fundeb –, foram objetos da negociação no parlamento para que se aprovasse a PEC nessa primeira rodada de votação na Câmara?

São os elementos ideais de barganha em clima de eleições municipais porque contemplam interesses diretamente vinculados aos municípios e aos estados, mas não representam grande impacto financeiro para a União. Eu acho que houve o conhecimento da máquina do parlamento, o que faltou ao governo anterior. O salário-educação atinge todos os municípios e estados, poderia se questionar a legalidade de se colocar uma contribuição social na PEC. A questão política também está presente no Fundeb. Agora são oito estados que recebem o complemento: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Quer dizer, eram bases do governo anterior já viraram bases do governo atual. Ou seja, você diminui as resistências sem muito risco financeiro. Porque, como eu disse, a probabilidade é o complemento cair agora nesse período.

Quais são os impactos financeiros da PEC 241 para a educação? O senhor calcula que nos primeiros dez anos, a área deve perder R$ 58,5 bilhões.

É a guerra dos números. Quer dizer, o quanto perde, o quanto ganha, vai depender de qual estimativa de crescimento econômico você usa. Eu acho que o que tem que estar claro para todo mundo é o que a PEC faz sem dizer que está fazendo. A PEC acaba com a maior conquista da educação brasileira que foi a vinculação de um percentual da receita de impostos, definidos em um mínimo de 18% para a União e de 25% para estados e municípios. E é importante dizer que depois de a vinculação ter sido incluída na Constituição brasileira, lá em 1934, extinguir a vinculação só ocorreu em dois momentos: na ditadura do Estado Novo e na ditadura militar. No Brasil, a vinculação é uma marca da democracia.

Qual é o espírito dessa vinculação?

É a ideia de que uma parte da receita de impostos, obrigatoriamente, é carimbada para a Educação. É um dinheiro sagrado. É isso que a Constituição estabeleceu. A quantidade de dinheiro vai depender do crescimento econômico do país. Com a PEC, daqui pra frente, quanto mais o Brasil crescer, maior será a perda de recursos. Fizemos os cálculos de quanto dinheiro vamos perder usando a estimativa de crescimento da receita de 3% ao ano. Pode-se dizer que é uma estimativa otimista, mas como estamos em recessão violenta, é óbvio que, com a saída dela, fica mais fácil crescer. Depois de 20 anos, é como se nós trocássemos uma vinculação de, no mínimo, 18% dos impostos para uma vinculação de 10,3%. Isso representa uma queda, em termos reais, de 43%, considerando os últimos dados que temos que são de 2015 [quando se aplicou 23%]. Se o atual governo continuar reduzindo os gastos até 2018, quando se iniciaria o congelamento, a queda real de gastos da União pode superar os 50%. É um bom negócio ou uma perda significativa? Não tem muita dúvida de que não vai sobrar política pública, pedra sobre pedra.

Para quem contesta essas estimativas, vocês têm apresentado outros números baseados em dados históricos, não?

Isso. Existem várias formas de se medir o impacto para a educação da PEC 241 e todas elas revelam um futuro sombrio. Podemos fazer um cálculo que não depende de estimativa. É como se a gente olhasse para trás para perceber como teria sido o orçamento da Educação caso a PEC tivesse sido aprovada antes. A Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados fez um estudo que mostra que se a PEC já estivesse em vigor em 2010, o governo federal teria deixado de investir R$ 73,6 bilhões, que, corrigidos pela inflação, dariam praticamente R$ 90 bilhões. Dá para imaginar o que isso teria representado para as universidades federais? Outro dado interessante: de 2012 a 2015 já houve uma redução de R$ 15 bilhões no gasto federal com manutenção e desenvolvimento do ensino. Ou seja, não é um cenário só para o futuro, é um cenário que já vem sendo desenhado. A diferença é que o futuro é muito mais sombrio.

Tem que deixar claro o seguinte: a PEC não mexe no pagamento de juros da dívida pública. Esse não tem limite. A soma do gasto primário total, essa não pode alterar. Um documento do Fórum 21 mostra que há probabilidade de que os gastos primários, que estão na ordem de 20%, caírem em dez anos para 16% ou até 12%. Como é que vai caber um Brasil dentro disso? Você cria dois países. O Brasil dos 200 mil mais ricos, que estão fora dos efeitos da PEC e têm o Bolsa ‘Família-rica’, que são os juros, e o Brasil do resto, onde mais de 200 milhões de pessoas vão sofrer as consequências. É uma elite que pratica um processo de destruição do país e acha que vai conseguir continuar boiando. Um processo que parece até o Haiti. Nós não tivemos um terremoto físico, mas é outra espécie de terremoto muito cruel para um país que tem um baita de um potencial.

Um dos argumentos do governo e da base aliada é que, para Saúde e Educação, o teto não é teto, vai ser um piso, porque nada impede que o governo defina essas áreas como prioridades, desde que corte outros gastos. O que isso implica em termos de escolhas?

É a escolha de Sofia. Vamos pode escolher entre manter as universidades ou matar os velhinhos. Em algumas áreas o gasto vai crescer, é o caso da Previdência. Você tem mais gente ficando mais velho, é um dado da natureza. Então mesmo que eu não ajuste acima do salário mínimo os benefícios, como vinha acontecendo, na prática o que vai acontecer é achatar onde os gastos são mais elásticos, na Educação, na Saúde. E vai provocar, provavelmente, achatamento salarial. Porque a inflação joga a favor do governo. Se o governo dá um reajuste mais baixo do que a inflação, ele sai ganhando.

O que o governo quer fazer é pôr a Saúde brigando com a Educação, Educação brigando com a Previdência. Nem na ditadura militar você teve um ministro que cuidava ao mesmo tempo da Fazenda e da Previdência, que é de longe o maior programa social brasileiro. A Previdência é o que impede o Brasil de virar um Haiti. São auxílios e benefícios que atingem uma população gigantesca.

Quais são as alternativas à PEC 241?

Aumentar a tributação em cima dos mais ricos, como acontece em vários países. O Brasil recolhe de ITR, Imposto Territorial Rural, 0,01% do PIB. Em um país com oito milhões de quilômetros quadrados, parece uma piada. O imposto de herança, que se chama ITCM, Imposto de Transmissão Causa Mortis – olha que nome macabro, só para não falar ‘herança’ –, a maior alíquota dele na prática é 5%, o máximo permitido é 8%. Nos países ricos essa alíquota é acima de 50% para os patrimônios maiores. A nossa maior alíquota de Imposto de Renda é 27,5%, começando em pouco mais de R$ 4 mil. Quer dizer, se você ganhar R$ 5 mil vai ter uma alíquota igual a quem ganha R$ 50 mil. Então, além de a alíquota ser baixa, ela é achatada. Era isso que o Brasil deveria estar discutindo. Nós estamos exatamente naquele momento do bônus da população. Então veio a crise? Vamos investir na educação porque é a única forma de fazer um esforço para garantir crescimento econômico lá na frente. Mas o movimento é inverso. Nós vamos produzir uma geração de jovens sem uma escola de qualidade que vai gerar problemas profundos para os próximos 30 anos, quando o problema da Previdência, o problema da Saúde vai estar mais agudo. Estamos jogando nosso futuro fora.

Dentro da própria Educação, com base nos anos anteriores, nas políticas anteriores, a gente pode fazer algum tipo de prognóstico de como esse orçamento congelado deve ser alocado? Porque a gente percebe que cresceu muito o direcionamento do investimento do fundo público para políticas que dependem diretamente de instituições privadas de ensino superior, do Sistema S. Então, além de tudo, há uma disputa entre o público e o privado dentro da própria área, não é?

Comparando com a Saúde, a Educação teve uma luta um pouco mais vitoriosa na garantia de recurso público para a escola pública, e o recurso para a escola privada só não lucrativa e em caráter excepcional. Quer dizer, no último governo houve algumas derrotas significativas. O Prouni [Programa Universidade para Todos, que concede bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas] eu entendo como um mecanismo porque liberou isenção para instituição lucrativa. O Fies [Fundo de Financiamento Estudantil], a gente sabe que na verdade é um programa gigantesco de transferência de recursos para corporações multinacionais. A dívida do Fies é impagável, e esse governo já sinalizou que vai apoiar o Fies, embora tenha feito alguns cortes. Mas nós estamos falando de um patamar de R$ 18 bilhões já, mais ou menos o equivalente ao que recebe toda a rede de universidades federais. É muito dinheiro que esse segmento tem. E num contexto desses, obviamente esse segmento está sendo fortalecido, apoiado.

Na questão do Fundeb também se abriu uma janela para os convênios, e aí como você tem uma pressão progressiva do Ministério Público – a meu ver correta – pelo ingresso na educação infantil, há uma sinalização também para as instituições privadas porque o custo é mais baixo, porque a qualidade é mais baixa. Então, quer dizer, esses elementos de privatização que já existiram muito fortes no passado brasileiro, e que a Constituição de 1988 foi um divisor de águas, voltam com fôlego. Hoje mais de 80% da matrícula da educação básica brasileira é pública. É um número significativo. Na educação superior, 75% da matrícula é privada, então é outra lógica. A base de apoio desse governo é muito privatista. Com um congelamento de recursos, o pouco que sair tende a sair exatamente para esse segmento. Então, voltando à questão inicial, o PNE vira letra morta. É o primeiro a ser destruído. Mas vamos lutar para que isso não ocorra.

A PEC terá impacto também no salário dos profissionais de educação?

Hoje, 85% do que você gasta com Educação vai para pessoal. Então, o que é mais natural em qualquer política de contenção de gasto, vai ser redução de gasto com pessoal. Isso já está ocorrendo em algumas federais, volta o que era comum no período do Fernando Henrique Cardoso, que é o professor temporário. A USP também já está criando essa figura, então não é só na rede federal. E um achatamento... Porque, digamos o seguinte, com a correção pela inflação, a conta não vai fechar. Então, a forma de a conta fechar é achatar o salário porque aí você ganha a diferença para eventuais destinações para o setor privado, para eventualmente crescer alguma coisa porque tem uma pressão grande por crescimento. E no caso federal, o pior é que você faz a interrupção exatamente no momento do Reuni [programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais], em que as universidades e os institutos federais estavam num impulso de crescimento. Isso é terrível, é como tirar água de uma planta no momento em que ela mais precisa.

Há esperança de reverter a aprovação dessa PEC?

Estamos na luta. Ontem teve manifestação no Brasil todo, eu acho que a batalha não está perdida. Esse governo, como eu brinco, é a mistura de um traidor com um feitor. É um governo que não tem legitimidade, não tem legalidade. E acho que daí vem uma energia para brigar. Isolando em argumentos, não acho que a batalha está difícil. Nós temos os números. A dificuldade está na batalha da informação porque a mídia divulga um pensamento único. Faz aquela metáfora com a [economia da] casa quando não é nada disso.

Leia mais

Nesta entrevista, Francisco Funcia, economista consultor da Comissão de Financiamento e Orçamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), faz as contas das perdas de recursos que a aprovação da PEC 241 representará para a área da saúde. Projetando cálculos para frente e simulando a existência da PEC em anos anteriores, com números concretos, ele contesta o discurso do governo de que, com as mudanças inseridas de última hora no texto, não haverá queda de investimento na saúde. E desafia: “Não existe sequer um estudo que defenda a PEC 241 com dados estatísticos para mostrar que não tem perda”.
Aula Aberta na EPSJV debateu a PEC que congela os gastos públicos por 20 anos, mas não limita as despesas com o pagamento da Dívida Pública
Esta semana foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que congela os gastos federais por 20 anos. Anunciada pelo governo Temer como o único remédio para a crise que o país atravessa e comemorada pelo grande empresariado, ela está longe de ser consenso entre os economistas e tem gerado muitas reações negativas entre entidades, movimentos sociais e instituições de pesquisa ligadas a áreas como saúde e educação. Nesta entrevista, a economista Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, caracteriza a PEC como um ato de terrorismo e faz uma denúncia: segundo ela, o texto esconde um esquema que visa inscrever na Constituição o desvio de recursos do orçamento para o sistema da dívida pública. Na prática, diz, isso significa que os gastos sociais serão congelados, mas a porteira que beneficia o capital financeiro ficará ainda mais aberta.

Comentários

Brilhante entrevista, Zé Marcelino!! Concisa, explicativa e posicionada! Que venham outras!

Os atuais ministros são discípulos do Delfim Neto, quando utilizava uma progressão aritmética para salários mínimos e uma progressão geométrica para os preços na ditadura militar.