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Entrevista: 
Tania Maria Fernandes

‘A população brasileira é muito receptiva à vacinação’

No momento em que instituições, pesquisadores e profissionais de saúde se mobilizam para reverter as baixas coberturas vacinais, que trazem o risco de retorno de doenças já controladas ou mesmo eliminadas do país, como o sarampo e a poliomielite, esta entrevista relembra as dificuldades e o êxito da primeira grande campanha de vacinação brasileira, contra a varíola. É verdade que naquele remoto início do século 20 a população do Rio de Janeiro se insurgiu contra a vacinação obrigatória, mas a pesquisadora Tania Maria Fernandes, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), lembra que esse não foi um movimento apenas contra a vacinação: estava presente ali a indignação de parte da população com um ambiente de opressão, expressando uma insatisfação social que ia muito além da vacina. Além disso, ressalta, num tempo em que não havia internet e a maior parte da população brasileira sequer sabia ler, as estratégias de informação e conscientização eram mais difíceis mas, embora houvesse boatos que amedrontavam, nada era comparável às atuais fake news. A entrevista foi realizada como parte da reportagem de capa da Revista Poli nº 83, sobre a queda das coberturas vacinais no Brasil.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 18/05/2022 11h04 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Eu queria que a gente caracterizasse as diferenças e as semelhanças possíveis entre a epidemia de varíola no início do século passado e a pandemia de Covid-19 agora.

Tanto vacina como doença são construções históricas, são fenômenos sociais estruturantes de uma sociedade, de um cenário político institucional e social. Cada coisa no seu lugar, cada momento no seu lugar. Então, não é possível olhar esses dois momentos pensando em uma articulação, uma conexão. A Revolta da Vacina aconteceu em 1904. Mais do que um movimento antivacina, foi o movimento de uma conjuntura de muita contestação porque existia uma situação de pressão social muito forte. Não foi um movimento brasileiro, foi um movimento do Rio de Janeiro, contra a implantação de uma vacina de forma obrigatória. Era a vacina antivaríola, que já vinha sendo utilizada no Brasil desde o século anterior, como no mundo inteiro. Houve, então, uma resposta popular a que se deu o nome de Revolta da vacina, mesmo ela tendo outras causalidades. Houve quebra-quebra. Tinha até um apelido de Revolta dos Lampiões porque houve quebra-quebra dos lampiões de rua.

Era um momento de grandes descobertas de doenças transmissíveis e de maneiras de evitá-las, e isso rapidamente chegou ao Brasil. Muitas vacinas que foram criadas foram colocadas no cotidiano da população de uma maneira muito tranquila ao longo do século 20. Atualmente, a população brasileira é muito receptiva à vacinação, a gente tem o Programa Nacional de Imunizações, que é um sucesso internacional. Mas, naquele momento [da Revolta da Vacina], principalmente por causa da obrigatoriedade, houve vários movimentos também no parlamento, tinha senadores que concordavam e que discordavam.  E existia um movimento popular muito pequeno de negação da ciência. O que se chama hoje no Brasil de negacionismo é um outro movimento, é importante colocar que a expressão ‘negacionismo’ não se aplica ao início do século.

O negacionismo que aparece forte na década de 1940, do pós-guerra, dava conta de outra coisa, era completamente diferente daquele movimento do início do século

Por quê?

Com a Revolta da Vacina, o que nós vimos lá foi uma negação da ciência por parte de algumas pessoas, uma negação da obrigatoriedade. Existiam dúvidas ainda com relação à vacina, ela era fabricada na vaca e aí havia questões [sobre a segurança de se] pegar uma substância da vaca e aplicar no corpo humano. Tem uma coisa bastante complexa que envolveu esse primeiro movimento contra a vacina antivaríola, que depois foi sanado e absorvido pela população brasileira com tranquilidade. E mesmo nas instâncias mais políticas e estatais, o negacionismo que aparece forte na década de 1940, do pós-guerra, dava conta de outra coisa, era completamente diferente daquele movimento do início do século. Era próprio da virada do século a incorporação de várias ações médicas que eram completamente diferenciadas das anteriores. O negacionismo de hoje é embasado no discurso e numa política de Estado como um processo induzido socialmente para a promoção deliberada de ignorância e incerteza. É uma política estatal que induz o esvaziamento político e financeiro da ciência, instalando um caos social, a falta de confiança das pessoas. A falta de informação é política estatal.

Mas você comentou que no início do século havia também questionamentos a respeito da ciência, de procedimentos médicos etc. Isso não está presente hoje?

Isso também existiu agora, só que o negacionismo aparece como uma política de Estado. Acho que isso é importante. ‘Negacionismo’ é um conceito criado a partir de olhares de historiadores para outras situações sociais, em outros países. Não é só uma negação da ciência, aqui a população é induzida à ignorância e à incerteza pela falta de informação e de conscientização. O negacionismo de hoje no Brasil é uma política intencional de produção de ignorância e desinformação. É óbvio que de 2020 para cá esse tema do negacionismo foi popularizado e as pessoas começaram a usar esse termo de uma maneira muito corriqueira. Começaram a aparecer muitas charges e alguns movimentos de rua mesmo, da direita principalmente, dando uma ressignificação à Revolta da Vacina. Houve até uma resposta da [Margareth] Dalcolmo [médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz] dizendo que a gente precisava agora de uma revolta pela vacina. Houve pessoas queimando máscaras, representações teatrais com agulhas enormes, dizendo que eram contra a vacina... A gente continua vendo até hoje [discursos de] que as pessoas iriam virar jacaré, que as vacinas tinham chips, que as pessoas iriam ficar comunistas, que teriam mudanças genéticas... Isso tudo faz parte de um movimento de desestabilização social e de implantação dessa incerteza.

Mas a gente está vendo esse movimento antivacina no mundo todo hoje e em outros países não necessariamente houve esse respaldo no Estado a que você se refere. A Alemanha é um exemplo: o governo estava combatendo a pandemia a partir do discurso científico e o movimento antivacina na sociedade civil cresceu. E um dos argumentos para se contrapor à vacina obrigatória é exatamente a defesa da liberdade individual, muitas vezes casada com a desconfiança na ciência. Essa mesma mistura esteve presente na Revolta da Vacina ou em outro momento da história brasileira?

O movimento antivacina brasileiro é muito fraco. Teve a Revolta da Vacina, mas que não foi só por causa da vacina. Esse é meu ponto de vista e de vários historiadores. Não foi só sobre a vacina, tinha um contexto muito sério, muito importante naquele momento. A adesão à vacina no Brasil é muito superior à maioria dos países. A vacinação foi se tornando obrigatória gradativamente. Nós conseguimos implantar o PNI [Programa Nacional de Imunizações] e levamos para fora essa ideia, que foi copiada em vários países. Por conta da eficácia do PNI, o movimento antivacina no Brasil é muito fraco. Na Alemanha, na Inglaterra, ele é muito mais forte e sempre existiu. O artigo do médico [Andrew Wakefield] no Lancet associando a vacina do sarampo ao autismo ganhou uma proporção enorme rapidamente na Europa. As pessoas acreditaram naquilo. A queda da vacinação não aconteceu só no Brasil. Agora, a queda de vacinação de sarampo no Brasil se deu também porque o SUS foi quase “desativado”, a gente está com o PNI completamente enfraquecido. O movimento antivacina no Brasil é muito fraco, mas ele é muito forte em outros países, sem a participação do Estado. É mais fácil encontrar essa negação à ciência, como as [de base] religiosa e cultural, em outros países, por questões sociais mesmo.

O fato de a vacina contra Covid-19 ter sido produzida num prazo muito rápido foi usado como argumento para alimentar a desconfiança de parte da população. É possível fazer algum paralelo entre essa caracterização lá do início do século de uma insegurança em relação a uma vacina que também era uma novidade? E é possível uma comparação entre a circulação de boatos sobre a história de a vacina vir da vaca no início do século e o fenômeno das fake news que alimenta o negacionismo hoje?

Sim. Inclusive isso causa estranheza porque nós hoje temos uma facilidade muito grande de divulgação de informações, falsas e verdadeiras, coisa que não tinha naquela época. A maior parte da população não sabia ler, então não adiantava distribuir folheto. Havia outras formas de convencer a população a absorver aquilo. Aquela vacina era aplicada e uma pessoa vacinada não morria, o meu vizinho foi vacinado não morreu, então eu vou vacinar. Entendeu? Teve muita produção de charge no jornal, que era uma maneira também de se comunicar com a população que não tinha escolaridade. Então, tinha fake News - que não se chamava assim -, e tinha movimentos contra a vacina intencionais, mas a grande maioria era por falta de informação. Depois, com a saúde pública muito bem consolidada, depois da criação do PNI, foi se conseguindo quebrar isso. Tem um quadro que mostra pessoas começando a criar pelos de vaca, por conta da vacina da varíola que vinha da vaca. Parecia um negócio muito estranho: vão tirar da vaca uma substância e botar na pessoa... Até hoje a gente acha isso uma coisa esquisita, imagina naquele momento...  Tinha um teatro para convencer as pessoas. Era um contexto muito diferente. Aos poucos os princípios [científicos] foram sendo absorvidos e ganhando espaço não só no corpo científico e político como na população.

Embora a Revolta da Vacina não tenha sido resultado de grupos organizados ou de uma ação intencional do Estado, como você disse, na época surgiu, no âmbito da sociedade civil, por exemplo, uma Liga contra a vacina obrigatória. Isso teve alguma relevância?

Foi um movimento do apostolado positivista, que inclusive estava pautado por uma tentativa de golpe estatal. Por isso eu estou falando que não é só a Revolta da Vacina, estava tudo misturado intencionalmente. O governo estava botando como obrigatória uma vacina que ninguém sabia o que era. E tinha um agravante: várias mulheres usavam aquelas roupas fechadas da cabeça até o pé e, para chegar à perna da moça [para vacinar], tinha que levantar a saia dela, no braço tinha que levantar a blusa, botar a pessoa quase nua. Isso também causou uma repulsa muito grande. Como é que vai botar vacina em um braço que está totalmente  tampado? Ou em uma perna com milhões de anáguas e saias? Mas o movimento político foi um movimento maior, tinha um golpe de estado por trás disso. Mas esse movimento dos positivistas foi amainado rapidamente, a Liga perdeu força completamente porque não tinha respaldo popular. O movimento popular foi para a rua quebrar lampião contra o Estado, contra a história de mandar todo mundo se vacinar, foi do centro da cidade até o Meier, até o Engenho Novo, lugares que inclusive eram pouquíssimo habitados. Era movimento social na cidade, não foi movimento brasileiro, não teve isso em outro lugar. Um monte de gente foi presa, alguns mortos.

Isso aconteceu em 1904. A procura pela vacinação caiu enormemente. O que aconteceu? Uma epidemia. Em 1904, no meio de toda essa confusão social, já havia um quadro epidêmico, por isso essa ideia de aumentar a vacinação. A legislação [que tornava a vacina obrigatória] não foi retirada. Em 1908 ressurgiu uma epidemia muito maior do que a de 1904, também na cidade do Rio de Janeiro, pela falta de vacinação. E conseguiu-se revacinar a população e vacinar os não vacinados. A partir dali, a vacinação foi crescendo paulatinamente, com a demonstração social de que quem se vacinou não teve a doença. Além disso, se não vacinasse a criança, ela não ia para a escola, o cabo não ia para o exército, a pessoa que passasse no serviço público não era admitida... Houve toda uma legislação que cercou e incorporou essa obrigatoriedade para a população. Você não viu no Brasil nunca mais movimentos antivacina, só agora.

De 1904 para 1908, o que mudou no comportamento da população foi a percepção de que as pessoas que se vacinaram não morreram, foi o medo de morrer propriamente quando a epidemia piorou em 1908? Foi a legislação com condicionalidades mais fortes? Teve também trabalho de educação e comunicação? Quais desses fatores influenciaram essa mudança de comportamento da população em relação à mesma vacina e à mesma doença de 1904 para 1908?

Eu acho que foi esse conjunto todo. E ficou claro que o movimento de 1904 não era só contra a vacina. O movimento foi debelado, a vacinação caiu, porque estava dentro desse contexto todo, e com isso ocorre uma epidemia fortíssima. E com essa epidemia fortíssima, e também com maior informação, houve corrida para a vacinação. Eu estudei um personagem chamado Barão de Pedro Afonso, que é quem coordenava o Instituto Vacínico, aqui no Rio de Janeiro. E o princípio dele era de fornecer informação e conscientização para as pessoas: tem que dar folheto no trem, botar postos de vacinação distribuídos nas paradas de trem e em vários lugares da cidade, facilitar que a população veja que a vacina estava ali e que bastava vacinar para não  ficar doente. É claro que essa distribuição de informação era completamente diferente do que seria hoje, com a capacidade de alcance de informação pela internet. A partir da década de 1920, você vê surgirem várias cartilhas sobre higiene e educação sanitária, com figuras e conversinhas rápidas entre dois personagens que você, só de olhar para a figura, já entendeu qual a história.  Falavam da importância de lavar bem as mãos para comer, lavar os alimentos, tomar banho, se tratar, tomar vacina... Estava tudo presente, porque já tinha outras vacinas aparecendo.

Em 1904, a saúde pública era vista de uma maneira muito hostil, porque era muito coercitiva

É correto dizer que houve uma mudança de estratégia de 1904 para 1908? Como se em 1904 a vacinação fosse imposta mais pela força, pela obrigatoriedade, e a partir de 1908 se começasse a apostar mais em ações de convencimento e informação?

Em 1904 você tinha o Oswaldo Cruz começando uma legislação que não dizia respeito só à vacina, era um controle social das casas. Tinha também as obras da Pereira Passos, não podemos esquecer isso. A cidade estava sendo remodelada, as pessoas estavam sendo retiradas dos cortiços com a justificativa de que aquele lugar era sujo e produzia doenças. Elas eram jogadas para as periferias da cidade. Em 1904, a saúde pública era vista de uma maneira muito hostil, porque era muito coercitiva. Os profissionais invadiam as casas, pulverizavam substâncias, tiravam as pessoas das casas para a construção de grandes avenidas no centro da cidade. Isso foi feito com o suporte da saúde pública. Se não fosse a saúde pública dando esse aval, eu acredito que eles teriam mais dificuldade de implantar essa nova cidade. Isso já não estava acontecendo em 1908. E a epidemia foi muito mais forte, foi facilmente perceptível pela população que estava morrendo mais gente e que quem se vacinava não morria. E havia essa preocupação de distribuir folhetos... Não era uma maravilha, mas a quantidade de vacinas entre 1904 e 1908 vai aumentando.

A obrigatoriedade com certeza levou as pessoas a buscarem vacinação, e houve também alguma conscientização

Vai-se observando um aumento de busca pela vacinação, independentemente de o Estado ir lá e pegar as pessoas. A obrigatoriedade de vacinar a criança, o adulto que vai trabalhar no governo ou se candidatar ao exército, à polícia ou a algum cargo estatal, estava tudo na legislação. A legislação de obrigatoriedade [da vacina] não é nova, vem desde 1840, vai sendo reeditada, reescrita e ampliada. No início era [obrigatório] só para as crianças. A obrigatoriedade com certeza levou as pessoas a buscarem vacinação, e houve também alguma conscientização. Mas a facilidade de vacinar em qualquer lugar, independentemente de procurar um posto de vacinação, o posto de vacinação estar ali perto, isso se deu de 1935 para adiante, mas pequenos postos só de vacinação, uma tenda, uma mesa que foram colocadas em vários lugares... Na epidemia de 1908, conseguiu-se debelar mais rapidamente a varíola por conta dessa ampliação de vacinação.

O Brasil foi o último país da América Latina a erradicar a varíola, mas produzimos uma campanha superexitosa, que foi repetida em vários países. Foi usado um monte de recurso no Brasil para alcançar principalmente as pequenas cidades, as periferias e o Brasil do interior, que não estava sendo alcançado até a erradicação. O sucesso foi tamanho que o Brasil foi ajudar a erradicar a varíola nos países africanos, na Índia... Na Somália a varíola foi erradicada com ajuda substancial dos profissionais brasileiros.  Por mais que tenha sido atrasada, a campanha de erradicação da varíola no Brasil foi muito exitosa.

*Esta entrevista foi produzida para subsidiar a matéria de capa da Revista Poli nº 83, sobre queda das coberturas vacinais

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